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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.3 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2011

 

RESENHAS

 

Um comentário sobre o mal-estar

 

 

Caterina Koltai

Psicanalista, Mestre em Sociologia, Dra. em Psicologia Clínica e professora da PUC-SP

 

 

O mal-estar na civilização - As obrigações do desejo na era da globalização. Coleção para ler Freud. Nina Saroldi. Editora Civilização Brasileira, 2011, (179 páginas).

Quando fui convidada a escrever um livro sobre Totem e Tabu para a coleção "Para Ler Freud", aceitei e agradeci a Nina Saroldi, o que não me impediu de lhe fazer uma pergunta indecorosa, a saber se, em vez de Totem e Tabu, eu não poderia ficar com Mal Estar na Cultura. Este é o meu livro predileto por ter sido através dele que entrei em contato com a obra freudiana o que representou para mim o inicio de uma belíssima aventura, uma vez que não há como negar que viajar pela descoberta freudiana é uma experiência que se renova dia a dia.

 

 

Gentil e delicadamente Nina respondeu que não, pois esse era o livro que ela, como coordenadora da coleção, reservara para si. Agora, ao ler essa pequena joia que escreveu, chego a conclusão de que estava coberta de razão, uma vez que ela não só consegue transmitir toda a atualidade e importância desse texto no qual Freud se debruça sobre o trágico da existência humana, como retoma grande parte do percurso freudiano no que diz respeito à questão da cultura, chamando a atenção do leitor para a importância de alguns outros textos freudianos, como por exemplo, Moral sexual "cultural" e nervosismo moderno, o próprio Totem e Tabu e Psicologia das Massas e Análise do Eu.

O livro de Nina mostra de maneira brilhante que Mal estar na Cultura não é o texto sociológico que muitos quiseram ver nele, nem uma elucubração filosófica, ainda que seus conhecimentos filosóficos a ajudem a estabelecer algumas pontes interessantes entre Freud e alguns filósofos, mas um escrito que questiona a psicanálise como práxis, atestando o desejo de Freud como analista.

Mal estar na Cultura é, como lembrou Lacan, um daqueles textos que a veneração humana revestiu, em outros tempos, dos mas altos atributos, na medida em que suporta a prova da disciplina do comentário, o que nos permite, não só recolocar uma palavra no contexto de seu tempo, como traz questões para nosso tempo, e nos permite refletir sobre o mundo em que vivemos, uma vez que nele, o mestre de Viena, como diria Nina, se refere àquilo que o sujeito vive como sofrimento ou impossibilidade de relacionamento com o mundo e com o outro, ressentido como uma dificuldade de ser. O mal estar do qual Freud fala é estrutural e não conjuntural e embora ele tenha se debruçado sobre as formas de mal estar da sociedade europeia da primeira guerra mundial e do entre guerras, podemos afirmar que o que se veio a constatar não se assemelha, em nada, a uma melhoria e sim muito mais a uma degradação manifesta.

Nina, em seu livro, não deixa pairar dúvidas quanto a atualidade de Mal Estar na Cultura, deixando claro para o leitor que o mal estar ao qual Freud se refere, nada perdeu de sua intensidade, como atestam os novos sintomas de nossa sociedade tecnocientifica que se caracteriza por saber fazer coexistir, coabitar e integrar as mais formidáveis conquistas científicas e técnicas com as mais extravagantes e monstruosas formas de marginalização e rejeição, revelando e acentuando o mal estar inerente à própria civilização.

 

 

Vivemos tempos curiosos nos quais apostar no futuro fica cada vez mais difícil, tanto no campo social quanto político e econômico e isso não tem como não produzir novos sintomas. Entre esses, a autora se debruça sobre o lugar que a depressão vem ocupando em nossos dias, a ponto de não me parecer exagerado afirmar que a depressão é de certo modo o sintoma princeps de nossos dias. E nem poderia ser diferente se levarmos em conta que o ser humano precisa de ideias e representações que se interponham entre o momento presente e a morte, e que são justamente essas ideias que parecem faltar ao individuo contemporâneo, que vive num mundo sem ilusões, onde a ideia da morte surge como único indicio temporal e espacial.

Nessa nova ordem social e econômica em que vivemos chamada de globalização constatamos o desmoronamento dos pontos de referência tradicionais, entre os quais merece destaque a situação da educação em nossos dias, para a qual, muito justamente, Nina chama nossa atenção. Sabemos desde Freud que educar é, assim como governar e psicanalisar, uma profissão impossível, o que não nos impede de constatar que as dificuldades com as quais vem se deparando nesse quesito as famílias e escolas, colaboram para a existência desses novos sintomas.

Tentando ser mais clara, se há uma ideia que percorre o livro da Nina de ponta a ponta, é a da renuncia, renuncia que a civilização exige de cada um de nós individualmente e dos humanos como um todo. Ao longo dos séculos a educação vem sendo um dos veículos dessa transmissão, ainda que em nossos dias os adultos parecem ter grandes dificuldades em exercer a função de autoridade que costumava ser a deles. A autoridade que decorre da diferença de lugares vem sendo cada vez mais desvalorizada, e todos aqueles que, até pouco tempo atrás nela se sustentavam, encontram-se em nossos dias órfãos da legitimidade que lhes permitia exercê-la corretamente, por mais que continuem tendo que fazê-lo.

Não por acaso muitos dos analistas com os quais Nina dialoga em seu livro afirmam que estamos vivendo em tempos de crise da função paterna. Sem entrar aqui nesse debate é fato que os adultos parecem, cada vez mais, ter dificuldades em reconhecer que eles e as crianças ocupam lugares assimétricos e que cabe a eles impedir que as crianças se instalem numa onipotência ilusória, já que dizer é uma obrigação dos adultos e uma necessidade para a criança. Quando eles se furtam a esse lugar de autoridade, lugar simbólico por excelência, na medida em que repousa sobre o reconhecimento dos lugares de cada um dos protagonistas, eles estariam deixando a geração seguinte sem um lugar para onde dirigir um conflito necessário, para que possam tornar seu aquilo que herdaram de seus pais.

Diante disto, cabe nos perguntar se o mal estar na civilização de nossos dias é ou não da mesma natureza daquele descrito por Freud. Estamos apenas perante novos sintomas, ou como parece pensar Charles Melman, autor ao qual Nina se refere em mais de uma ocasião estaríamos perante uma nova constituição psíquica, a do "homem sem gravidade". Tal constatação me parece um pouco alarmista demais e pessoalmente me contento em pensar que se o mal estar, como nos disse Freud, é estrutural, é normal que ele vá produzindo novos sintomas e apresente outras faces, como por exemplo, a diminuição do lugar da culpa e o crescimento do lugar da vergonha.

 

 

Nessa discussão final talvez valha a pena salientar a preocupação de alguns outros autores que consideram que, sob os efeitos dos genocídios e da barbárie, já estaríamos num além do mal estar, vivendo tempos de uma embriaguez pelo pior. Segundo eles, tal embriaguez se deveria a força de atração que o pior exerce sobre a realidade humana, ameaçando tanto a autoconservação individual quanto a conservação da espécie. Sempre segundo eles, a clinica atual seria aquela que Aganben chamou da vida nua, a vida desse individuo aglutinado em grupo, mas incapaz de fazer laço social. Retomando aqui uma das conclusões de Freud em Mal estar na Cultura, a da capacidade de domínio que os humanos teriam adquirido sobre as forças da natureza e que tornou mais fácil aos humanos exterminar-se uns aos outros, talvez tenhamos que nos perguntar como o homem contemporâneo pode conviver com tal saber. Freud deixou essa questão em aberto, e nós, que vivemos em sua posteridade, temos o dever ético de responder a ela, e é isso que Nina faz em seu belo livro que eu vos convido a ler.

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