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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.3 no.2 Rio de Janeiro July./Dec. 2011

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Psicanálise e direitos do homem

 

 

Alain Didier-Weill

Doutor em Medicina e Psiquiatria. Psicanalista e Teatrólogo. Autor de vários livros de psicanálise, três deles publicados no Brasil: "Lacan e a clinica psicanalítica"; "Nota azul Freud, Lacan e a Arte"(Contra Capa, Rio de Janeiro, 1997) e "Inconsciente Freudiano e transmissão da Psicanálise" (Jorge Zahar Editor, 1996)

 

 


RESUMO

A questão dos direitos do homem deixa a psicanálise exposta a um feixe de contradições. A primeira delas é estrutural: está ligada ao fato de que, assim que se abre à fala, o sujeito é solicitado por duas injunções antinómicas que o dilaceram. A primeira dessas injunções foi traduzida por Freud nos termos de "wo Es war sol Ich werden" - lá onde isso estava, tu deves advir! Imputa ao sujeito uma capacidade de advir por meio da qual lhe é suposta uma relação não impossível com a liberdade. A contradição à qual a psicanálise fica exposta pela existência do mandato "advenha lá onde isso estava" se liga à descoberta da existência de um mandato completamente diferente - a que Freud deu o nome de supereu - que tende à contradição radical do apelo a vir/a/ser, já que sua vocação é, justo o contrário, significar para o sujeito: "Não podes advir! Não és livre para fazê-lo."

Palavras-chave: Declaração dos direito do homem, direito natural, família humana universal, mandato simbólico, mandato superegóico, transmissão das "luzes", o que cessa de não se escrever.


ABSTRACT

The issue of human rights leaves psychoanalysis exposed to a bundle of contradictions. The first of these is structural: it is linked to the fact that, as one opens up the speech, the subject is requested by two antinomic injunctions that tear him up. Freud translated the first of these injunctions in terms of "wo Es war sol Ich werden" - there, where this was, you must become! It streamlines the subject to an ability to derive from by means of which it is supposed to him a non-impossible relationship with freedom. The contradiction to which psychoanalysis is exposed by the existence of the mandate " results there where it was" connects to the discovery of the existence of a mandate completely different - to which Freud gave the name of superego - which tends to the radical contradiction from the call to come/to/be, as its vocation is, just the opposite, it means to the subject: "thou canst not come! You are not free to do so."

Keywords: Declaration of human rights, natural law, universal human family, symbolic mandate, superegoic mandate, transmission of the "lights", which never ceases to not write.


 

 

 

Que consequências derivam do reconhecimento ou do não/reconhecimento do "homem" anunciado na Declaração universal dos direitos do homem? Aos que consideram que a crença em "o homem" universal contribui para a desordem do mundo, opõem-se aqueles que são levados a afirmar justamente o contrário, ou seja, que sua negação induz o mal-estar de nossa cultura. Para além da dimensão de universalidade, a expressão "o homem" evoca também um indeterminado. Este, ao propor a existência de um para-além do determinado, demanda que o filósofo, o homem político, o artista e o psicanalista se pronunciem sobre o sentido que a palavra "liberdade" adquire para eles nos dias de hoje.

 

UM FEIXE DE CONTRADIÇÕES

A questão dos direitos dos homens deixa a psicanálise exposta a um feixe de contradições. A primeira delas é estrutural: ela se liga ao fato de que, tão logo se abre à fala, o sujeito é solicitado por duas injunções antinômicas que o dilaceram, pois alguma coisa o leva a responder, simultaneamente, "sim" à injunção que o conclama a comparecer lá onde a liberdade é possível e "sim" à outra voz que diz: "Tu não és livre".

 

 

A primeira dessas injunções traduzida por Freud "wo Es war soll Ich werden" - lá onde isso estava, deves advir ! - imputa ao sujeito uma capacidade de vir/a/ser que pressupõe uma relação não impossível dele com a liberdade.

Este mandato ético comporta um paradoxo: se ele supõe uma liberdade, trata-se do dever de advir, "soll", que implica a relação com uma lei de alcance universal. Freud não tem nenhuma dúvida de que este mandato simbólico é universal, de que ele se dirige a todo homem que deve advir como homem e, sob esse prisma, ao receber do mesmo modo o mandato simbólico, todo homem pode ser dito semelhante àquele que, na partilha, recebe o mesmo mandato da fala.

A respeito disso, podemos dizer com Lacan que o homem é "filho da fala" e que um dos sentidos da palavra "fraternidade" é o laço que entretecem os seres que são "filhos" e "filhas" da linguagem.

Eis-nos, então, conduzidos a reconhecer que a ética freudiana do "advenha!" procede recapitulando os significantes que vem do fundo de nossas mais antigas tradições: a tradição bíblica inventa o significante "liberdade", a tradição grega o significante "igualdade", e a tradição cristã o significante "fraternidade".

No entanto, se o significante "advenha!" nos liga às nossas três heranças culturais, ele também nos liga ao político, pois, quando essas três palavras "liberdade, igualdade, fraternidade" foram associadas, foi então possível escrever o que se intitula, desde agosto de 1789, a "Declaração dos direitos do homem."

A contradição à qual a psicanálise fica exposta pela existência do mandato "advenha lá onde isso estava" tem a ver com a existência de outro mandato completamente diferente - a que Freud deu o nome de supereu - que procura contradizer radicalmente o apelo a advir, já que, exatamente ao contrário, sua vocação é significar para o sujeito: "Não advenha! Não és livre para fazê-lo, não és o semelhante nem o irmão daqueles que se tornam seres vivos, pois, ao me obedecer, tu consentes em permanecer oculto à visão, fixado sob o meu olhar que te significa que, só te prestas assim a ser olhado, porque és o filho silencioso do meu olhar e não o filho da fala."

É impressionante constatar que exista na psique uma voz que pode dizer, independente de qualquer contexto político, o que todo tirano é levado a dizer enquanto abole os direitos do homem: "Aqui não há liberdade, igualdade, fraternidade." Ao ensinar ao psicanalista que o inimigo dos direitos do homem não é apanágio dos partidos políticos fascistas, a voz do supereu levanta duas questões polêmicas.

A primeira é a seguinte: como sucede a um sujeito que ele se agarre tão intensamente ao inimigo interior, este perseguidor íntimo que o condena sem maiores explicações, pois, o que é espantoso, o sujeito aceita, sem apelação, o processo que lhe é feito. Certamente, ele pode fingir que o processo não o assusta, mas não pode fingir que, embora desconhecendo a razão, termina se submetendo a ele. Kafka é a testemunha genial desse paradoxo.

É possível que a psicanálise permita ao sujeito deixar de candidatar-se à paranoia, pois ele pode deixar de consentir no decreto de sua culpa. Nem por isso o psicanalisante terá chegado ao fim das suas penas: com efeito, como entender a angústia que o apreende justamente no instante em que ele poderia dizer "sim" ao seu desejo, por estar abolida a censura que lhe dizia "não"?

Se lhe acontece ter angústia, é que a experiência de liberdade que se abre quando não há mais culpa é a ocasião de um medo radical. Diante de que? Diante da possibilidade em que o sujeito está, desde então, de procriar uma nova existência: que seja sempre novo o brotar da existência como tal, eis o mistério do que há de mais real no humano.

O enigma frente ao qual esta experiência nos deixa é o seguinte: o sujeito humano pode assustar-se mais com apelo a dizer "sim" ao direito de existir do que com a injunção mortífera de dizer "não" a este direito.

O outro feixe contraditório a que a questão dos direitos do homem expõe a psicanálise é de ordem histórica e política: se é incontestável que a psicanálise, como Freud e Lacan sempre sustentaram, esteja filiada à grande corrente do século das Luzes que engendrou os direitos do homem, não é menos incontestável que ela nos leve a concordar com certo número de argumentos dos adversários das Luzes. Entretanto, por sua filiação às Luzes, a psicanálise chega a dizer: "Sim, por meio de sua atividade de criação, o homem pode contribuir em sua marcha no mundo e na marcha do mundo", mas, ao mesmo tempo, é conduzida a concordar com o argumento das anti-luzes: "O homem é procriado pela tradição que o precede, ele não possui a capacidade de criar a si próprio."

Ao enunciar que "lá onde isso estava, devo advir", Freud propunha uma articulação entre a aposta das Luzes (deves advir) e a da tradição (lá onde isso estava). Mas ele não avaliava a consequência política que se poderia depreender da interpretação do "lá onde isso estava": com efeito, somente a partir da suposição de tal subjetividade primordial, universal, pôde brotar a hipótese de um homem universal: "o homem", depositário de um direito natural.

Com efeito, este significante novo, ao supor a existência de "o homem", deu lugar a uma contestação virulenta dos direitos do homem. A contestação é tão mais interessante, porque partiu tanto de adversários da Revolução francesa (Burke, De Maistre), quanto de seus partícipes (Marx, Sartre...), para colocar em evidência a questão de uma visão do "homem" que ultrapassa o jogo estritamente político.

Ao afirmar nunca ter encontrado "o homem", mas apenas "os" Ingleses, "os" Belgas ou "os" Espanhóis, De Maistre propunha que "o homem universal", suposto pela Declaração, era uma abstração que não existia na realidade.

Marx, por sua vez, ao levar em consideração o conceito de "o homem" como uma mais-valia inventada pela classe burguesa para que os "sem culotes"1 esquecessem que os direitos do homem eram apenas a afirmação disfarçada dos novos direitos da burguesia, estava de certo modo concordando com De Maistre e Burke em um ponto fundamental: "O homem" indeterminado não existe: existiam somente "os" homens determinados por sua tradição ou por sua classe social.

Quer fosse positiva (para os anti-Luzes) ou alienante (Marx), a existência desta determinação tinha o traço comum de negar a questão de um real humano indeterminado, e universal. A psicanálise não pode desconhecer este real, nem que seja porque a primeira cisão que dilacerou a comunidade analítica opunha-se a Freud, sustentando a concepção que levou Jung a opor à ideia de um universal humano a de inconscientes locais: inconsciente esloveno, inconsciente ariano, inconsciente semita...

 

TRANSMISSÃO E CESSAÇÃO DE TRANSMISSÃO DAS LUZES

A herança das luzes faz surgir uma nova contradição, na medida em que se trata da herança de uma letra progressivamente desprovida de seu espírito. Evidencia-se, com efeito, que determinados significantes - liberdade, igualdade, universalidade - produzidos no rastro do discurso das Luzes, passaram a ser recebidos como palavras corriqueiras, banalizadas, sem o poder subversivo que outrora tiveram. Que as palavras possam perder o seu poder de surpresa, eis o efeito de uma atividade psíquica a que Freud o nome de recalcamento.

Ele foi o primeiro a levantar a questão: na medida em que esta atividade de esquecimento é inconsciente, será possível dar uma nova vida e um novo sentido aos significantes que caíram no esquecimento do túmulo?

Sim, ele o demonstrou, é possível que palavras como "sexo, vida, morte", que se haviam convertido em caixinhas vazias, reencontrem a significância perdida para renascer - nem que seja temporariamente - em uma nova vida. Por que temporariamente? Porque a inteligência da censura inconsciente é de tal ordem que, mais dia, menos dia, ela inventará uma nova maneira de fazer valer seu poder inquisidor e, em consequência disso, lançará novamente o homem, eterno herético, na obrigação de mais uma vez inventar uma maneira de afirmar a sua existência.

É porque um psicanalista é levado por sua prática a aprender que a conquista de um sujeito ao direito de existir só poderia advir como uma questão atordoante, que ele quer interrogar a perda de questionamento que se tornou contemporânea.

Este direito único, recapitulando os direitos da Declaração universal, é o direito de todo sujeito, apreendido na dimensão universal da linguagem, a se tornar um falante: portado pela fala e dela portador.

A questão colocada por um "existente - de direito" merece o desvio do retorno à situação histórica de 1789, ocasião em que, cessando de não se escrever, a escrita dos direitos do homem ensinou tanto aos desfavorecidos, quanto aos privilegiados, que eles tinham direito ao privilégio espantoso: pertencer à família humana universal. A universalidade que evoco aqui não é a de uma ideia, mas de uma experiência acessível a todos e a cada um.

Exemplificando-a, pode-se transmiti-la pela sideração que se produz no instante da explosão de um chiste: será que o poder que uma palavra detém de abolir todos os significados, toda a língua, não permite intuir, mesmo que seja durante um tempo infinitesimal, uma experiência universal?

Não se trata de dizer que tal experiência é coletivamente universal, mas que cada um, um a um, é chamado universalmente a responder enquanto sujeito herético, tragicamente dividido entre a lei escrita do nomos e a lei não escrita da phusis. De certo modo, esta é a resposta "sintomática" que ele dará ao logos, que, inscrevendo-se nele, faz existir um real ao qual se coloca a seguinte questão: "Neste lugar que é o teu real singular, o que há de universal em mim encontrou o meio de se escrever. O que farás com esta mensagem? Ficarás surdo, protegendo-te do peso que te compete no exato instante em que te tornaste o destinatário? Ou não ficarás surdo e serás, então, capaz de me responder: "a bom entendedor, ...!"?

 

SEIS QUESTÕES PERSISTENTES

Conflito da lei e do direito natural

Assim que começa a falar, o homem encontra um conflito que o divide: o próprio fato de falar o leva a atestar o direito de uma existência incontestável, uma existência que, enquanto tal, não tem de ser justificada. No entanto, no exato instante da atestação, uma contestação aparece: a da instância da lei que tende a limitar o direito à existência desse sujeito.

O problema do supereu e da censura

Uma vez que a lei simbólica não tende a renegar, mas a limitar a existência, a psicanálise descobre a ação de outra lei - referenciada por Freud como censura inconsciente - que, esta sim, tende a negar a existência do sujeito falante: conduzido a falar com a liberdade oferecida pela situação analítica, ele descobre a existência de uma voz interior que lhe diz: "Tu não és livre, não és igual, não és fraterno."

O enigma que deve ser resolvido é o seguinte: o que acontece para que um sujeito, eventualmente um defensor ferrenho da liberdade de outrem, possa ser levado a renunciar à sua, obedecendo, apesar de si mesmo, à voz da censura?

Consciência da lei, inconsciência do direito natural

Que esta censura seja inconsciente é o que explica, ao menos parcialmente, a diferença de acolhimento que o sujeito dá à lei e ao direito natural: na medida em que ele não ignora a lei, ele se torna consciente do ato de transgressão ao qual pode ser conduzido, se lhe acontece de matar, roubar ou praticar infração... estranhamente, contudo, ele pode estar perfeitamente inconsciente - no racismo, por exemplo - de transgredir o direito natural de outrem.

As duas heranças e o universal

A dupla herança de que somos os depositários, por intermédio da filosofia e da Bíblia, contribui na assunção conflituosa através da qual nossa cultura recebe a noção de universal.

Ao passo que a noção de natureza e de lei natural universal é descoberta pelos filósofos e trágicos gregos por meio de um conhecimento permitido pela razão, na Bíblia, inversamente, é por meio de um reconhecimento místico que se chega à dimensão de um deus universal doador da lei à qual Lacan atribui a função universal de interdição do incesto. Ou seja, a função de proibir aquilo que poderia impedir ao dizer humano nascer e desenvolver-se.

As Luzes e as anti-Luzes

A questão da universalidade dos direitos do homem faz surgir o conflito das Luzes e das anti-Luzes: os partidários das "anti-Luzes" sustentam que "o homem" universal é uma abstração que não existe, pois existe apenas "um" homem particular - um Inglês, um Francês, um Belga... - determinado pelo que recebeu de sua história, de sua tradição.

Confrontando-se a eles, os homens das Luzes afirmam a existência de o "homem" que, em nome de sua "natureza" universal, não é joguete do que o precede, mas agente procriador de sua própria existência.

A psicanálise não decide a favor de um ou outro campo: ao reconhecer que o homem é determinado pelo que o precede, ela não recusa a tradição. Mas, reconhecendo simultaneamente que, em sua aptidão a advir, o homem também se determina, ela se filia às Luzes. Não se trata da síntese de duas posições opostas, mas do reconhecimento da existência de um terceiro ponto -a dritte person, o inconsciente - a partir do qual o sujeito pode gerar novos significantes, já que, ele próprio, foi gerado pela linguagem.

Paradoxo do que se escreve e do que não cessa de não se escrever

Se quisermos esquecer a deriva contemporânea, que consiste muitas vezes em esquecer o impacto subversivo dos direitos naturais e, outras vezes, até mesmo na vontade de ridicularizá-los, é preciso reconhecer a existência de um paradoxo: o direito natural - cuja heroína é Antígona, tem a particularidade de remeter a uma lei não escrita, cuja eficácia desaparece quando cessa de não se escrever. A dimensão trágica do homem é imediatamente posta em perigo (o aparecimento do terror revolucionário não é justamente o efeito do desaparecimento da dimensão trágica?).

A psicanálise mantém vivo o direito do homem a advir como o que ele ainda não é, acentuando - para além dos diferentes artigos da declaração universal - a existência de um artigo único e absoluto: direito do homem que se tornou falante a se reconhecer e a se fazer reconhecer como falante: ao mesmo tempo endividado e libertado pela fala.

Este direito é tão mais vivaz e tão mais subversivo, quanto não se deduz não do que está legitimamente escrito, mas de um real que não cessa de não se escrever: por isso, o sujeito está destinado a ser um herético, exposto à possibilidade de inventar, na solidão em que o deixa o fato de não ser garantido pela lei. Para isso, lhe é necessário suportar a angústia inerente ao fato de ter de criar ex-nihilo. Frequentar o "nihilo" torna a angústia de procriação talvez mais radical do que a angústia diante da morte.

 

 

Tradução: Vera Pollo
1 No original "sans-culottes", denominação dada pelos aristocratas aos artesãos, trabalhadores e até pequenos proprietários participantes da Revolução Francesa a partir de 1771, principalmente em Paris. O "culote" era uma calça típica da nobreza, que se ajustava na altura dos joelhos.