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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.3 no.2 Rio de Janeiro July./Dec. 2011

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Trajetórias no tráfico: jovens e violência armada em favelas cariocas

 

Trajectories in drug trafficking: youth and armed violence in Rio's favelas

 

 

Silvia Ramos

Cientista social, pesquisadora e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes. sramos@candidomendes.edu.br

 

 


RESUMO

As trajetórias múltiplas e heterogêneas de jovens envolvidos no tráfico de drogas e em grupos armados em favelas do Rio de Janeiro são objeto desse artigo. São apresentados resultados de pesquisas quantitativas realizadas com jovens da cidade e pesquisas qualitativas com jovens de favelas. O artigo discute as mudanças recentes ocorridas na cidade, com a crise do mercado de drogas e a implantação de Unidades de Polícia Pacificadora. A autora propõe que é necessário compreender os percursos de jovens que entram e saem do tráfico de drogas à luz das teorias contemporâneas sobre trajetórias juvenis.

Palavras-chave: juventude, violência, Rio de Janeiro, favelas, tráfico de drogas


ABSTRACT

The subjects of this article are the multiples and heterogeneous trajectories of young people involved in drug trafficking and armed groups in the favelas of Rio de Janeiro. Results of quantitative research conducted with young people of the city are discussed and qualitative research from the favelas are analyzed. The article discusses the recent changes in the city, with the crisis of the drug market and the creation of the Pacification Police Units. The author proposes that it is necessary to understand the pathways of young people in and out of drug trafficking in the light of contemporary theories of youth life trajectories.

Keywords: youth, violence, Rio de Janeiro, favelas, drug trafficking


 

 

O texto a seguir apresenta resultados de pesquisas quantitativas e qualitativas com jovens da cidade do Rio de Janeiro e reflexões sobre trajetórias de jovens de favelas envolvidos no tráfico de drogas frente a mudanças ocorridas no cenário das comunidades cariocas, em especial após a implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), a partir de 2009. Parte do material de campo foi colhida entre maio e dezembro de 2008 com jovens moradores de favelas - estudantes universitários, ex-traficantes, traficantes e "jovens de projeto" -, além de mães de adolescentes envolvidos com a criminalidade, lideranças comunitárias e assistentes sociais. Outra parte da pesquisa foi realizada por meio de entrevistas e interlocuções ocorridas ao longo de 2010, durante a implantação de UPPs Sociais em nove favelas do Rio. Em 2011, foram realizadas entrevistas com traficantes que deixaram o tráfico em meses recentes (1).

 

 

O material empírico é instigante, mas não pode ser tomado como uma reflexão sobre juventude e violência na cidade, pois guarda os limites das observações realizadas junto a jovens de favelas. A ausência de observações sobre jovens de classe média e de bairros não controlados por grupos ilegais armados pode contribuir para levar a conclusões que reiterem estigmas já bastante consolidados não só na sociedade como, involuntariamente, no discurso de pesquisadores, ativistas e autoridades que lidam com o assunto. Nesse sentido, é importante o alerta de que o problema da violência juvenil na cidade não se resume aos jovens moradores de favelas. Como vou procurar demonstrar, a violência e em especial a violência letal é um problema brasileiro com dimensões históricas e culturais profundas, sobre as quais ainda será necessário produzir estudos e reflexões. As contribuições aqui apresentadas são análises parciais sobre um segmento da juventude, e deveriam ser pensadas no contexto de discussões que são complexas e deveriam ser interdisciplinares.

 

1. O fenômeno da violência letal de adolescentes e jovens e o cenário particular do Rio de Janeiro

Analisar as mortes violentas intencionais num país, numa cidade ou numa cultura, é importante porque os homicídios representam a ponta de um iceberg. Onde há mortes resultantes de conflitos, há em escala ainda maior violências não letais, ameaças, violências simbólicas e crimes contra o patrimônio. A forma como as mortes ocorrem e se distribuem nos países e nas culturas (em que proporção predominam as mortes por causas naturais, ou as mortes por causas externas) expressa em grande medida a forma como as sociedades tratam os direitos humanos.

No Brasil, a cada ano, são assassinadas aproximadamente 50 mil pessoas. Tem sido assim por vários anos. Pelos dados do sistema de saúde relativos a 2010, com os 50.431 homicídios registrados, a taxa brasileira de homicídios é de 26,6 por 100 mil habitantes. O Brasil se situa entre os seis países do mundo com maiores taxas de homicídio, sendo o quinto em homicídio de jovens de 15 a 24 anos (WAISELFISZ, 2008). A taxa de homicídios no estado do Rio de Janeiro chegou a ser o dobro da taxa do Brasil, atingindo 50,9 assassinatos por 100 mil habitantes no início da década passada (em 2000) e recuou para 27,6 homicídios por 100 mil habitantes em 2010. A redução da violência letal no Rio de Janeiro é resultado de diversos fatores, alguns dos quais serão mencionados no presente artigo. Contudo, não se pode perder de vista que a taxa de mortes violentas do estado ainda é altíssima e representa uma das mais altas do mundo em termos de padrões países desenvolvidos (2). Além disso, é preciso ter em mente que a taxa de homicídios de jovens, isto é, de pessoas de 15 a 24 anos, é mais do que o dobro da taxa média do estado.

Quando se consideram apenas os homens, que representam 93% das vítimas de homicídio, obtêm-se índices impressionantes no Rio de Janeiro, com mais de 100 homicídios por 100 mil para jovens de 15 a 24 anos do sexo masculino. Quando examinamos a variável cor ou raça por faixas etárias, verificamos uma extraordinária concentração de mortes violentas intencionais entre jovens pretos e pardos, chegando ao espantoso índice de 250 homicídios em cada 100 mil jovens negros com 22 a 24 anos de idade. O mesmo ocorre quando analisamos as variáveis territoriais. Para os bairros da Zona Sul carioca, como Ipanema, Leblon, Copacabana e Botafogo, as taxas de homicídios são próximas às européias e à norte-americana, com 2 a 10 homicídios por 100 mil moradores. Quando olhamos as taxas de áreas onde estão situadas, por exemplo, as favelas de Vigário Geral e Parada de Lucas, ou áreas como a do Complexo da Maré ou de bairros pobres da Zona Oeste, as taxas ultrapassam 75 homicídios para cada 100 mil moradores (3). Esse três fatores associados à distribuição da violência letal - faixa etária, cor e área da cidade - têm sido definidos como idade da morte, cor da morte e geografia da morte (RAMOS, 2009).

Considerando que a variável cor ou raça pode ser tomada como variável proxy (aproximada) para classe social, escolaridade e local de moradia, teremos, então, uma concentração extrema de violência letal no Rio de Janeiro entre jovens pobres moradores dos bairros mais desfavorecidos. A idéia de que a violência intencional que leva à morte atinge principalmente os jovens do sexo masculino, moradores de favelas e dos bairros da periferia encontra respaldo nos números de mortes e na sua distribuição. Sabemos também que aproximadamente 80% dessas mortes são provocadas por armas de fogo (WAISELFISZ, 2011). Nesse sentido, parece razoável a equação que associa o problema da violência letal no Rio de Janeiro principalmente ao "tráfico de drogas envolvendo jovens de favelas", pelo menos como ponto de partida para uma investigação qualitativa sobre letalidade jovem.

Em pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, intitulada Juventude, Violência e Polícia (MUSUMECI & RAMOS, 2011), foram entrevistados 1607 jovens com idades de 15 a 24 anos na cidade do Rio de Janeiro. O survey amostral, representativo para toda a cidade, foi realizado nos meses de julho a novembro de 2009. Na investigação, foram explorados os aspectos relacionados à exposição à violência por jovens da cidade. Ou seja, não a vitimização por violência letal, mas a convivência cotidiana com situações de violência. Os resultados revelam a extrema concentração de exposição a situações de violência dos jovens que vivem em favelas. O trabalho concluiu que

"O resultado mais relevante diz respeito à importância decisiva da variável territorial associada à exposição à violência e às relações com o sistema de segurança pública, entre jovens de 15 a 24 anos. Em particular, mais do que a distribuição por regiões mais abastadas e pelas de menor poder aquisitivo da cidade, o fato de se residir ou não em favela, independentemente da área geográfica em que esteja situada (zonas sul, norte ou oeste), parece ter força explicativa mais evidente quando comparamos os resultados para experiências como ter visto muitos corpos de pessoas assassinadas, ter tido pessoas próximas mortas intencionalmente, ter visto pessoas andando armadas no bairro onde mora, pessoas usando drogas ou pessoas se agredindo fisicamente na vizinhança. Da mesma forma, é entre jovens que moram em favelas que experiências como ver de perto o veículo blindado da polícia ("Caveirão"), presenciar ou ouvir de perto troca de tiros entre policiais e bandidos, ter a casa revistada ou ter pessoas conhecidas assassinadas pela polícia se dão em freqüência significativamente maior do que em outros segmentos de jovens. (MUSUMECI & RAMOS, 2011:31)

Portanto, há evidências suficientes de que tanto a exposição permanente a situações de violência se concentra entre os jovens que vivem nas favelas, como de que as vítimas majoritárias da violência letal são jovens pobres e negros do sexo masculino. A expressão "vítimas" tem sentido epidemiológico e não corresponde à noção associada a "inocentes". Está claro que os jovens são vítimas e agressores. Não apresentamos dados sobre os "agressores", porque essas informações não existem. Os jovens que se encontram presos ou que tiveram passagem pelo sistema de justiça criminal não são uma amostra representativa do conjunto dos jovens envolvidos na criminalidade ou em redes de violência. A taxa de esclarecimentos de crimes no Brasil, e no Rio de Janeiro em particular, é baixíssima e mesmo o crime mais grave, o homicídio, alcança proporção inferior a 10% de elucidação. Ou seja, 90% dos homicídios não são esclarecidos e seus autores não são punidos. Os que estão nas prisões - a maioria esmagadora foi presa em flagrante portando drogas - são uma amostra enviesada composta pelos jovens envolvidos com a criminalidade mais despreparados, mais visados ou que têm menores recursos e apoios, sejam familiares ou das redes criminais.

Mas o fato é que nenhum estudo detalhado indicou quais são exatamente as dinâmicas geradoras de violência letal entre jovens pobres e negros moradores das favelas e dos bairros pobres da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O uso altamente frequente das armas de fogo é forte indicação de que as mortes se associam, direta ou indiretamente, aos grupos armados ilegais que dominam áreas da cidade e que se opõem a outros grupos armados ou se opõem à polícia. Mas não conhecemos a proporção de mortes que atingem os participantes diretos desses grupos ("traficantes", "milicianos", "policiais"), ou os participantes indiretos (amigos, familiares, cônjuges, usuários de drogas etc.) ou ainda os participantes contingentes (colegas, vizinhos, moradores de bairros próximos, pessoas presentes em um assalto em ônibus, passantes em uma via da cidade durante um tiroteio, envolvidos em uma briga de festa etc.) De fato, conhecemos pouco sobre as dinâmicas geradoras de letalidade até mesmo entre os participantes diretos, ou seja, dentro do recorte "mortes no tráfico".

Evidências indicam que as mortes não ocorrem apenas em tiroteios de facções ou em confrontos com a polícia (confrontos que efetivamente são responsáveis por parte das milhares de mortes violentas que o Rio contabiliza a cada ano) (4). Muitas ações letais ocorrem dentro dos grupos armados por acertos de contas ou razões de trabalho, e também por disputas amorosas e familiares, por rixas e conflitos banais que encontram desfecho letal na onipresença das armas e de uma cultura masculina agressiva e explosiva. Luiz Eduardo Soares (2005) refletiu sobre a "dinâmica fratricida que eles não controlam" falando sobre os "meninos invisíveis" que seguram as armas de fogo nas periferias brasileiras.

Nas entrevistas realizadas para esta pesquisa, encontramos inúmeros relatos de situações banais que, segundo nossos entrevistados, levaram ou poderiam ter levado à morte, fora das dinâmicas de confrontos entre facções e com a polícia. Como refletiu um ex-traficante que havia sido gerente de uma boca de fumo numa importante favela carioca, "inveja é o que mais tem no tráfico'". Ele contou a seguinte história em que quase ocorreu uma morte por causa de uma disputa adolescente entre um chefe e um traficante que roubou uma moto e a levou para dentro da favela:

"O cara pegou uma moto, levou pra dentro da favela, uma Twister. Ai eu falei 'qual é, me dá a Twister aí pra eu dar um rolé'. Botei o armamento nas costas e fui andar. Ai o cara falou: 'dá a moto, que é minha'. E eu: 'tu ta pensando que tu ta falando com quem? Se eu não quiser que tu tenha moto, tu não vai ter moto. Se eu achar que não tem que ter moto roubada dentro da comunidade, não vai ter. Fica na tua meu irmão'. Falei pra ele 'a parada é o seguinte, isso é um objeto roubado, pra nós não tem valor. Vai te levar a ter mais falsidade, vai chegar uma hora que isso vai te levar à morte, ninguém vai precisar te matar'. O povo da boca de fumo via aquilo ali, sabia que é um gesto de falsidade. (...) No tráfico, o cara pode armar pra você a qualquer hora. Existem muitos casos de traição, alguém armar pra tu, querer ficar com seu lugar". (Deco, ex-gerente do tráfico de Vigário Geral).

Em outras palavras, é necessário chamar a atenção para o fato de que a divisão clássica entre violência interpessoal de um lado (entre pessoas que se conhecem, sem fins lucrativos) e violência coletiva (ou crime organizado) de outro, não se sustenta. Na prática, o que observamos é que parte importante da violência letal ocorrida no contexto do chamado tráfico de drogas é resultante de conflitos e disputas interpessoais. As fronteiras entre naturezas criminais, no contexto de alta letalidade de jovens de favelas, se encontram indefinidas.

Esses comentários preliminares sobre a incidência de mortes violentas e a exposição de jovens de favelas a situações de violência reafirmam a gravidade do problema da violência letal e não letal no Rio de Janeiro, apontam sua extrema concentração entre adolescentes e jovens negros moradores de favelas e reiteram a importância política de compreender suas dinâmicas. Contudo, servem também para alertar sobre as grandes áreas de desconhecimento, os pontos cegos e os convites ao equívoco, aquilo que leva a enxergar apenas o que já se sabe e que se quer confirmar. Ou seja, não é possível ter visões estereotipadas do tráfico de drogas, onde apenas os tiroteios e os confrontos cinematográficos entre facções ou com a polícia produzem as mortes e reproduzem a violência. O "mundo do tráfico" está repleto de elementos contraditórios, paradoxais, mutantes e heterogêneos. É o que surge quando acompanhamos "entradas" e "saídas" no tráfico, como este artigo pretende indicar. Antes, é necessário compreender o panorama que se estabeleceu nas favelas cariocas e as mudanças ocorridas nos últimos anos.

 

2. O que aconteceu com as favelas cariocas a partir da década de 1980 até o final da década passada: do controle de território pelos grupos armados às UPPs

A principal característica da violência no Rio de Janeiro foi até pouco tempo o controle de territórios urbanos por grupos de criminosos armados. Não se trata de fenômeno em áreas rurais ou em locais distantes do centro urbano, ou de uma dinâmica localizada, em um bairro ou outro. No Rio, na totalidade de suas aproximadamente 600 favelas, e em diversos bairros pobres, nos últimos 25 anos, desenvolveu-se e consolidou-se um cenário em que bandos armados passaram a dominar centenas de morros, bairros e seus moradores. A cidade se tornou um caso raro, com poucos paralelos no mundo, em que áreas desenvolvidas, abastadas e reguladas por normas democráticas, conviviam lado a lado com áreas sob controle de grupos armados, onde predominavam - e ainda predominam em muitos locais - ditaduras de traficantes ou milicianos, que impõem normas na base das armas e onde liberdade de expressão, o direito de ir e vir, o direito de reunião e outros não estão assegurados.

As sucessivas políticas de segurança durante esse longo período contribuíram para aprofundar essa situação anômala e foram em parte responsáveis pelo quadro que se consolidou a partir dos anos 1980 e predominou até 2009. As políticas de segurança foram, via de regra, baseadas em confrontos policiais com grupos criminosos e produziram milhares de mortes. A polícia do Rio de Janeiro se tornou não apenas uma das mais violentas do mundo, mas também profundamente afetada por desvios de conduta e corrupção. As relações complexas entre polícia e criminalidade estão descritas em obras das ciências sociais e da literatura (ver especialmente SOARES, 2000 e 2010).

Depois de anos de experiências de segurança pública mal sucedidas, incluindo projetos de policiamento de proximidade que não prosperaram ou se degradaram (por exemplo, o Mutirão pela Paz em 1999 e o GPAE, o Grupamento de Policiamento Especializado em Áreas Especiais, em 2000), em dezembro de 2008, teve início uma experiência de policiamento comunitário em uma das favelas do Rio, o Morro Santa Marta, em Botafogo. Essa experiência foi intitulada Unidade de Polícia Pacificadora. A partir desse piloto, outras favelas foram retomadas do controle territorial de grupos armados. Após três anos, ou seja, no final de 2011, 20 áreas tinham sido ocupadas e 18 tinham recebido UPPs (5). Elas envolviam nessa altura aproximadamente 350 mil moradores de 40 comunidades (várias UPPs compreendem mais de uma comunidade) e 3500 policiais. O governo afirma que há a previsão de implantar 40 UPPs até 2016.

O que caracteriza as UPPs e as distingue de experiências anteriores é: 1) A retomada do território é precedida pela ocupação por uma tropa especializada que minimiza os confrontos e assegura que as armas não circulam mais na comunidade. 2) Após essa etapa, um contingente de policiais com expressão numérica ingressa na comunidade e fica permanentemente em campo, sendo constituído majoritariamente por policiais jovens recém formados, sem histórico de corrupção ou violência e sem experiências de confrontos em favelas. 3) Esses policiais são melhor preparados e ganham mais do que os policiais comuns, por meio de um convênio com o município, e têm escala e condições de trabalho melhores (invertendo a tendência histórica na PM, oferecendo o melhor da corporação para as favelas, e não o pior). 4) Presença permanente em campo de um oficial, o comandante da Unidade, um capitão ou capitã. Esse oficial supervisiona o efetivo diretamente, estabelece relações com a comunidade, recebe reclamações dos moradores, participa de fóruns com lideranças comunitárias e é responsável por estabelecer as bases do chamado "policiamento de proximidade". 5) Finalmente, a principal característica das UPPs é que elas correspondem a uma política do governo, que estabeleceu metas na área da segurança pública baseadas na expansão dessas Unidades ao longo dos próximos anos, com planejamento e orçamento definidos.

Os resultados da implantação das primeiras 18 UPPs, do ponto de vista dos indicadores de criminalidade, estão sendo basicamente positivos. As taxas de homicídio caíram dramaticamente em todas as favelas com UPPs, sendo que em várias delas a taxa zerou. Em geral, os crimes contra o patrimônio (especialmente roubos de veículos e a transeuntes) no entorno das favelas com UPPs também caíram. O efeito inesperado (queda geral da criminalidade dentro e no entorno das áreas pacificadas e no conjunto da cidade e do estado) deve ser atribuído à perda do domínio territorial pelos grupos criminosos, que usavam as favelas dominadas como territórios onde tinham o poder de vida e morte sobre os moradores, ofereciam ou impunham serviços, como venda sinal furtado de televisão por assinatura, gás de cozinha com ágio, transporte com motos ou kombis, e onde poderiam esconder veículos, cargas e bens oriundos de diversos delitos. Do ponto de vista da satisfação dos moradores, até aqui as sondagens mostram que predomina a satisfação pelas melhorias que a UPP está trazendo para as favelas. A partir da normalização da vida no território, serviços públicos e privados, passaram a ser oferecidos aos moradorescom frequencia e qualidade maiores.

 

 

A constatação de que mudanças fortes e decisivas estão ocorrendo nas favelas cariocas em relação ao cenário anterior de dominação de grupos armados, de exposição dos jovens à violência e de envolvimento de parte da juventude nos grupos armados do tráfico, não deveria, contudo, nos deixar esquecer os grandes desafios pelos quais a cidade ainda terá que passar. Em primeiro lugar, será preciso universalizar a experiência das UPPs nas centenas de favelas cariocas ainda dominadas por grupos criminosos, sendo que um risco é afastar o som do tiroteio dos bairros mais abastados e tolerar que as populações com menor capital social, de favelas distantes da Zona Norte ou de bairros da Zona Oeste continuem vivendo sob a barbárie e o mando de traficantes e principalmente sob a violência de milicianos. Outro problema é o risco de degradação da experiência positiva das UPPs. Apesar de contar com o apoio da maioria das populações locais, ocorrem ainda tensões entre moradores e policiais, muito especialmente os moradores mais jovens, que agora passam a ser abordados e revistados pela polícia quando chegam em sua comunidade. Se não forem criados mecanismos permanentes de diálogos entre polícia e população, como fóruns comunitários, e sistemas de regulação cidadã na relação com o poder público, há o risco de que se estabeleçam relações autoritárias ou anti-democráticas, como havia no passado em relação ao tráfico e à milícia. O que se deseja é que as favelas sejam reguladas pelo mesmo regime da cidade. E um terceiro desafio é a implantação e universalização das UPPs Sociais, ou seja, de esferas de coordenação de políticas sociais de saúde, educação, limpeza, saneamento, urbanização e cultura, de forma que em alguns anos as favelas possam estar integradas à vida da cidade (para uma discussão sobre as UPPs Sociais, veja HENRIQUES e RAMOS, 2011).

Efetivamente, as UPPs vieram quando o tráfico já sofria uma forte crise em relação aos lucros exorbitantes a que estava acostumado na década de 1980 e 1990. A redução dos rendimentos obtidos pela venda das drogas foi um dos consensos verificados ao longo da pesquisa de campo desenvolvida em 2008. Os valores recebidos pelos que ocupavam diferentes funções na estrutura da boca de fumo se mostraram bastante inferiores aos chamados lucros estratosféricos, que fazia com que um garoto de 15 anos empregado no tráfico ganhasse muitas vezes o salário de seu pai. Tudo indica que esses valores decresceram dramaticamente na década passada.

Na pesquisa Nem soldados nem inocentes, coordenada por Otávio Cruz Netto, em 2000, com adolescentes cumprindo medidas sócio-educativas, 40% declararam receber valores superiores a 2 mil reais por mês. No estudo de Dowdney, realizado em 2002, os vapores (6) recebiam entre R$ 1.500,00 e R$ 3.000,00 mensais, dependendo da localidade. Os soldados recebiam R$1.500,00 a R$ 2.500,00. Os fogueteiros ou olheiros (falcões) recebiam em média R$ 50,00 por dia, o que representava cinco vezes o salário mínimo vigente. A pesquisa Rotas de Fuga - Caminhada de crianças, adolescentes e jovens na rede do tráfico de drogas no varejo do Rio de Janeiro - identificou claramente o fenômeno de queda nos rendimentos e observou que, em 2004, 75% dos 230 entrevistados recebiam entre um e três salários mínimos, e aproximadamente 20% ganhavam menos de um salário mínimo. Em 2008, na pesquisa de campo realizada pelo presente estudo, a situação havia se deteriorado consideravelmente em algumas áreas.

Alguns depoimentos são expressivos dessa situação: uma liderança cultural de favelas disse: "tem favela tão pobre que nem a milícia quer?". A mãe de um adolescente que cumpria medida sócioeducativa revelou: "a situação no tráfico tá tão ruim que os fogueteiros vivem pedindo comida. Vão lá em casa, mexem nas panelas: 'pô, tia, não tem um rango, não? Tô cheio de fome""". Boré, um ex-traficante do Complexo do Alemão, que levou um tiro, ficou paraplégico, foi preso, cumpriu pena e atualmente vende bala nos sinais, disse: "com certeza, eu trabalhando no sinal, ganho mais dinheiro do que vagabundo que trabalha no morro. Não só os novinhos não, tô falando de gerente".

De fato, o mercado do varejo das drogas tornou-se extremamente heterogêneo, sendo difícil estabelecer valores médios recebidos pelos adolescentes e jovens trabalhando nas diversas funções. Ou seja, as remunerações são variáveis não apenas de favela para favela, mas também de uma semana para outra, de um mês para outro. Uma liderança cultural nos revelou que alguns meninos do tráfico dizem "tem semana que a gente recebe R$50,00. Mas às vezes, na sextafeira, o gerente fala pelo rádio 'hoje não vai ter nada não' e reclama que o arrego (propina paga à polícia) naquela semana foi alto'".

Outra consequência da crise é a instabilidade de comandos nos territórios controlados. Uma técnica experiente e com atuação em duas favelas distintas disse: "Uma das mudanças que eu vejo no tráfico é que o chefe era uma coisa assim, ele estava há muito mais tempo, as pessoas tinham uma referência maior de quem era o chefe. E o que a gente vê agora é que tem o chefão do chefão, mas os outros é muito variado. Como tem muita gente de fora, agora as pessoas não sabem mais ao certo quem é que está mandando ali. O tráfico não está mais tão organizado quanto era. Tem determinados chefes ou subchefes que não são bons pra comunidade. Na verdade eles estão reprimindo tanto a comunidade quanto a polícia".

Entre as razões para a crise da venda de drogas no varejo estariam: o fato de que as vendas no varejo nas favelas atendem principalmente a um mercado interno, com menor poder aquisitivo, e não mais a compradores de fora ou de classe média, que deixaram de ir às favelas por causa da violência dos próprios traficantes e da polícia; o ingresso no mercado de drogas sintéticas, especialmente o ecstasy (muitas vezes chamadas "balinhas" nas entrevistas e grupos focais), atualmente preferidas pelos jovens de classe média (e também por muitos jovens de favelas), que seriam importadas e chegariam aos consumidores sem passar pelas favelas. Nesse aspecto, a cocaína, droga altamente rentável que inundou o mercado carioca nos anos 1980 e passou a ser consumida por pessoas de classe média, teria encerrado seu império, devido aos prejuízos provocados pela contínua e crescente intervenção da polícia, seja em operações de confronto, seja em extorsões.

A chegada do crack às favelas cariocas, especialmente a partir da segunda metade da década de 2000, corresponderia, segundo essas hipóteses, à necessidade de oferecer mercadoria compatível com o pequeno poder aquisitivo de parte de seus consumidores, pois a pedra de crack é mais barata e tem poder entorpecente maior que o da cocaína, ainda que seus efeitos desapareçam mais rapidamente. Também ouvimos durante a pesquisa a interpretação de que o crack teria entrado no Rio inicialmente como uma contrapartida imposta pelo PCC (Primeiro Comando da Capital, facção criminosa paulista), que passou a fornecer drogas e armas para algumas favelas do Comando Vermelho do Rio de Janeiro.

Com o surgimento das UPPs, a partir de 2009, a crise do tráfico se acentuou. As duas maiores facões criminais da cidade sofreram fortes abalos. É muito importante compreender as mudanças no cenário do tráfico, porque os processos de "saída" de jovens da rede do tráfico tendem a se intensificar em muitas partes da cidade. Seja porque já não estava valendo a pena e o negócio das drogas havia se tornado pouco lucrativo e perigoso (entre outras razões pela desestruturação dento das próprias bocas de fumo), seja porque as favelas foram ocupadas por UPPs, e os adolescentes e jovens adultos que trabalhavam na periferia do tráfico ficaram numa condição que muitos moradores, durante a implantação das UPPs Sociais, chamaram de "órfãos do tráfico". Uma capitã, comandante de uma UPP da Zona Sul disse em uma entrevista: "o que mais me intriga são os meninos que ficam na escada: eu passo de manhã e eles estão sentados na escada, passo de tarde, eles estão na escada, eu vou embora à noite e eles continuam na escada. Eles estão esperando o quê? Já está na hora de eles entenderem que vão ter que arranjar outra coisa pra fazer". Um coordenador de uma organização religiosa da favela do Borel, que fazia atendimento a dez adolescentes (de 11 a 18 anos) usuários de drogas, anteriormente ocupados com pequenos trabalho na boca de fumo, quando o tráfico mandava na comunidade, disse: "agora depois da UPP, esses meninos ficam vagando pela favela. Eles acordam e não têm para onde ir. Não existe mais a boca, eles não têm como conseguir a droga ali mesmo e nem como fazer pequenos trabalhos para conseguir algum dinheiro. Eles não estudam, não trabalham e ninguém gosta deles. Onde eles encostam, as pessoas dizem 'sai daqui, vasa!'E ainda são revistados pela polícia o tempo todo... eles ficam como zumbis pela favela ".

Como indicarei nas próximas seções, a crise das drogas e a chegada das UPPs provocaram tantas mudanças na estrutura e na lógica do tráfico, a ponto de a separação clássica que distingue os grupos urbanos de jovens em "gangues", "galeras" ou "quadrilhas" (Zaluar, 1997) precisar de nova compreensão. O agrupamento com fins lucrativos que caracterizava as bocas de fumo como quadrilhas criminais, em algumas favelas que receberam UPPs está ressurgindo na forma de pequenas gangues de adolescentes usuários de drogas. Algumas vezes, inconformados com a presença permanente da polícia, em gestos desesperados atiram pedras nas viaturas.

 

3. Entradas e saídas: razões para entrar no crime e trajetórias que desmentem as "razões"

"Eu acredito que eu entrei por safadeza. Nem sei explicar..., minha mãe criou sete filhos sozinha, mas nunca deixou faltar nada em casa". (Mário, ex-traficante do Complexo do Alemão)

"Todos os adolescentes são candidatos (a entrar para o crime). Eu olho no baile funk a exibição dos fuzis e me vejo na minha adolescência na Inglaterra. Eu era como um daqueles meninos, queria ser aceito, entrar para a turma, queria atrair as meninas". (Damian Platt, pesquisador e escritor)

"Na favela, não existe a possibilidade de ser jovem e não ter contato com o tráfico. Você pode não ter diretamente, mas seu amigo tem, seu primo tem, seu irmão tem. A boca de fumo é um espaço de socialização obrigatória. Precisa ver como vai se relacionar com isso, mas é impossível não ter relação nenhuma (Charles Siqueira, produtor cultural e diretor de ONGs de cultura no Morro dos Prazeres)

Na pesquisa de campo em favelas, perguntamos em todos os grupos focais e entrevistas: por que alguns jovens entram para os grupos armados ilegais que dominam as favelas e outros não? Por que alguns saem e outros ficam, morrem, matam, vão presos, se ferem? Que razões levam um adolescente (7) a escolher uma experiência arriscada, mal paga, estigmatizada - uma "vida errada", na expressão de vários entrevistados - e que leva a algum desenlace rápido e sombrio ("um dos três cês: cadeia, cadeira de rodas ou cemitério", como ouvimos mais de uma vez). O interessante é que, invariavelmente após considerações genéricas sobre as razões que contribuem para adolescentes buscarem o caminho do crime, imediatamente se seguiam histórias que contradiziam as razões apontadas pelo próprio interlocutor.

Nossas páginas de material bruto reuniram um repertório considerável de registros em que o jovem não precisava de dinheiro ("ele tinha tudo"), não vinha de família desestruturada (tinha casa, mãe, irmãos, estava na escola), não estava deslocado de seu grupo de amigos (pelo contrário, era integrado, querido, enturmado), não estava "ocioso" (além da escola, ele fazia parte de "projetos" na favela). Em muitos casos adolescentes declaram que vão para o tráfico em busca de dinheiro, alternativa profissional, para fugir de famílias violentas, para escapar de pais ou mães alcoolizados e violentos, ou por outros motivos socioeconômicos "clássicos". Mas é importante perceber que em tantos outros casos as trajetórias de vida não correspondem às razões tidas como mais óbvias, e que de alguma maneira esperamos que nossos interlocutores reiterem.

Procurando fazer uma lista de situações e condições que mais levam os jovens a entrarem para o crime, além da necessidade financeira e do desejo de visibilidade (8), as razões mais frequentes surgidas nos grupos focais e entrevistas foram: ter vivido uma situação de injustiça (por parte da polícia, na escola, dos amigos ou de outros jovens); ter alguém da família envolvido no tráfico; família desestruturada, ausente; não ter perspectiva de futuro.

Contudo, cada uma dessas razões deveria ser vista com bastante cautela. Sobre a idéia de que famílias desestruturadas produzem candidatos mais frequentes ao envolvimento com a violência, uma assistente social falou: "eu tenho uma certa implicância com esse negócio de família desestruturada, porque quando a gente fala família estruturada e desestruturada, já pressupõe que tem um modelo certo. Que tem uma estrutura que é a correta. E isso não existe. Pelo menos hoje, as formações de família que a gente vê: é mãe que cuida dos filhos sozinha, é a avó que cuida, é o pai que cuida sozinho... Mas na verdade, não quer dizer que morando com pai e mãe certinhos, dentro de casa, que está tudo certo, sendo cuidada. As vezes as crianças vão vivendo, dorme, acorda, dorme, acorda e ninguém olha por elas. Elas ficam ali circulando e ninguém olha de verdade".

Ouvimos muitas histórias (inclusive de traficantes e ex-traficantes) em que a existência de alguém da família no tráfico favoreceu o ingresso do jovem. Seriam "as más companhias". De fato, família parece ser um ponto-chave nas histórias de entrada, mas também e principalmente nas histórias de saída de jovens dos grupos armados ilegais. Por outro lado, ouvimos muitas histórias em que, exatamente por vir de uma família em que um pai ou um irmão tinha ido para o tráfico, tudo tinha sido feito para que aquele jovem não entrasse. Ou seja, o veneno era o antídoto.

No grupo focal com jovens universitários moradores de favelas, ouvimos relatos que mencionavam um membro da família envolvido com redes armadas, ou pais drogados, mães violentas etc. precisamente como fatores motivadores da busca pelo caminho da universidade pública. Ou seja, a construção discursiva não era: "eu entrei para o tráfico por causa da minha mãe alcoólatra". A construção era: "por causa da minha mãe alcoólatra, eu vi que teria que ter outra vida, e por isso estudei, fiz vestibular comunitário e estou na universidade".

As trajetórias de saída são frequentemente narradas a partir de um pedido ou da insistência da mãe ou a partir algum motivo familiar (9). Isto é interessante, porque "ganhar dinheiro para ajudar a família" é um motivo às vezes lembrado como a razão para o ingresso no crime. Se jovens resolvem "entrar para a boca" quando sabem que a namorada ficou grávida e precisam ganhar dinheiro, nossos relatos são fartos de histórias de saída exatamente pela mesma razão. Uma assistente social disse: "uma situação que também acontece é de rapazes que acabam de formar família. Da namorada engravidar, filhos, e aí ele acaba saindo. Tenho uma conhecida lá, a situação dela é difícil, ela mal consegue sustentar a família e de repente a namorada do filho foi morar na casa dela, ainda levou uma criança que já tinha. Eu falei 'mas nossa, a sua situação já é um aperto e seu filho, em vez de te ajudar ainda foi arrumar mais um'. Ela falou prá mim, 'não, eu estou dando graças a Deus, porque meu filho já estava, além de usando drogas, se envolvendo no movimento e depois que ele ficou com essa menina e ela engravidou, ele parou com isso'".

 

4. Sexualidade, armas e "poder": o império da adrenalina e da mistificação (10)

"Muitas pessoas da classe alta, tipo assim Zona Sul, eles vão prá favela prá curtir. As patricinhas descem do condomínio luxuoso, vão prá favela e olha o vagabundo sem camisa, com a arma, todo suado, fedendo, aí diz 'é o príncipe dos meus sonhos '" (Jovem de projeto)

"O menino não tem nada, onde cair morto, mas sabe quantas mulheres ele tem? Quantas ele quiser. Dependendo da arma, mais mulher tem. (Mãe de adolescente cumprindo medida)

"Não tem mais essa remuneração, eles conseguem assim comprar um tênis, mas não arrumam mais do que isso, o que eles conseguem hoje, e é demais, é a atenção dessas meninas. Elas ficam loucas, arma e cordão de ouro. (Técnico de projeto em favela).

O tema da sexualidade se impôs à nossa pesquisa. As relações entre, de um lado, "conseguir meninas", "ser assediado por garotas bonitas", "ser olhado, reconhecido, desejado" e, de outro, "usar armas", "ser do tráfico", "virar bandido" foram mencionadas sem exceção por jovens de projeto, rapazes ou moças, traficantes e lideranças. Mesmo quando este ponto não estava em nosso roteiro prévio.

A informação mais repetida, confirmada, explicada e reassegurada -e ainda assim surpreendente e obscura - é a supremacia das armas para "atrair" mulheres, meninas bonitas, da favela, de fora e até de outra classe social. As chamadas "Maria Fuzil" - que seriam as atuais representantes das "Maria Gasolina", que no passado, dizia-se, só se interessavam por rapazes com carros - estariam sempre presentes na vida da boca de fumo, especialmente durantes os bailes funk e muitas vezes foram definidas como a maior razão para explicar o fascínio que os grupos ilegais e as armas exercem sobre crianças, adolescentes e jovens.

O baile funk é um momento privilegiado da vida comunitária, quando jovens comuns que moram na favela, que não têm envolvimento direto com os grupos do tráfico, podem conviver de perto com os outros jovens que estão no tráfico. Compartilham um pouco da "cultura do tráfico" (11), cantam as mesmas músicas, os "proibidões" (12) do funk, e assistem ao desfile das armas.

A ponto de vários relatos afirmarem que um garoto pode pedir para "dar uma volta de fuzil" durante o baile, se for amigo de algum traficante. É no baile também que as meninas verificam como se comportam e como são tratadas as namoradas dos traficantes.

Num grupo focal com adolescentes de um projeto social, composto por vinte meninas e meninos na faixa dos 13 aos 17 anos, aprendemos diversos sinônimos para mulheres e namoradas dos traficantes: "fiel", "comidinha", "lanchinho", "passatempo". A fiel é "aquela que ele ama". Há controvérsias, alguns acham que a fiel é a esposa, a mãe dos filhos. "A fiel é a privilegiada, mas também tem mais obrigações, por exemplo, visitar o cara na prisão quando ele é preso, não poder trair senão vai pra vala". Segundo eles, um traficante pode ter duas ou três fiéis. Perguntamos como se sabe quem é a mulher do traficante. As adolescentes do nosso grupo focal fazem performances explicando como isso é óbvio e como é impossível ignorar quem são essas meninas: "as donas do pedaço, cruzam o salão de ponta a ponta, ninguém pode esbarrar nelas". Além disso, acrescentam, logo se vê pelas roupas: calças "Gang", blusinhas "Pichação", sandálias "Melissa". Contam histórias abundantes sobre as fiéis e as amantes em que as versões são mais importantes que os fatos. Explicam que as "fiéis" mandam tanto que às vezes o traficante apanha em casa: "é o maioral na rua, mas apanha em casa da fiel". Esses jovens falam nas "novinhas" (13) (mais tarde "os novinhos" serão citados como os meninos que acabam de entrar para o tráfico e estão cheios de disposição para fazer coisas arriscadas e violentas). No grupo focal de mães apareceu um adendo: "as novinhas, de 12, 13, 14 anos, são as mais taradas".

Perguntamos por que as meninas querem ser amantes dos traficantes: "sensação de poder". Essa resposta é a mesma para explicar por que os jovens entram para o tráfico: "sensação de poder". As explicações, portanto, são tautológicas.

No grupo dos adolescentes, afirmou-se que "a grande maioria das meninas gosta dos garotos do tráfico e que é difícil encontrar uma que nunca tenha namorado rapazes com envolvimento com o tráfico". Quando perguntamos se as adolescentes que estavam ali também preferiam os rapazes do tráfico, a resposta foi um unânime "nãaaao!". Um rapaz disse que a arma chama atenção e que a mulherada gosta. Outro explicou que a questão é o que ela representa: "a arma representa o poder do cara, diz que ele é alguém e as meninas gostam disso". Um dos jovens fez um comentário curioso, que diz muito sobre como os "meninos do tráfico" mantém relações com os "jovens de projeto" (14) e os demais adolescentes da comunidade: "muitas vezes os traficantes aparecem com umas menininhas da comunidade que todo mundo achava muito sem graça, magrinha, sem corpo, mas depois que começam a desfilar com os traficantes, as meninas parece que ganham corpo e o pessoal começa a pensar: 'pô, olha o que eu perdi' ".

Numa entrevista com um traficante deu-se o seguinte diálogo: a entrevistadora perguntou "eu entrevistei um rapaz que contou que uma vez ele estava na boca e chegou um grupo de 30 mulheres. Não sei se ele estava exagerando, isso é possível?". O traficante responde: "ah é, nesse baile aqui chega umas 15 vans só de mulher, só mulher boa"". "Mulher daqui ou de fora?" "De fora, mulher de termas". "Você acha que elas estão correndo atrás de quê?" "Dinheiro. Também ela tem um contato, ninguém rouba ela na rua. Elas tá na rua foi roubada, vem aqui dentro. O cara ainda toma uns tapa". Como se vê, até mesmo o traficante tem dificuldade de explicar o quê, exatamente, regularia essas relações de interesse máximo entre mulheres e traficantes. Finalmente, o entrevistado revela que ele não, ele prefere as mulheres difíceis, e que não gosta de "mulher que fica na boca atrás de traficante".

"Os novinhos" e "empolgação" foram outras duas categorias recorrentes nas entrevistas. "É empolgação, hoje em dia a molecada já tá empolgada. Na minha época era difícil, o cara na minha época não gostava de criançada no tráfico, era só adulto". "O novinho topa tudo, quer subir, quer fazer nome, gostam de mexer com os outros, o que mandar fazer eles fazem mesmo, não quer saber não. Nós que já é mais antigo, já passou por tanta coisa, não maltrato ninguém (...). Os cara não, é igualpit bull, vai que vai, não quer nem saber, eles querem fazer o nome deles. A gente não, não vai querer errar, e ser esculachado".

Diversos interlocutores, ex-traficantes, assistentes sociais e mães fizeram o comentário: "eles estão entrando cada vez mais novos". É difícil saber de fato se a idade média de ingresso nos grupos armados vem diminuindo sistematicamente ao longo dos anos, na mesma medida em que os lucros se reduziram. Ou se essa é uma impressão sempre reiterada por entrevistados sobre o tráfico e a idade dos traficantes. Mas tudo indica que as categorias "novinho", "novinha" e "empolgado" correspondam a um cenário de crise da estrutura das drogas em que a idade diminui e a improvisação, o amadorismo, a irresponsabilidade e a violência aumentam. Garotos muito novos, de 14, 15 anos, destemidos, despreparados, com armas poderosas nas mãos, nas ruas da cidade, em busca de celulares e carteiras, é uma receita para as tragédias cotidianas que presenciamos.

 

5. Biografias, trajetórias, percursos e discursos: "como ondas no mar"

De fato, não é simples compreender trajetórias e depreender causas que as expliquem. Não seria menos difícil se quiséssemos fazer um levantamento entre jovens médicos para entender porque alguns escolheram a medicina e outros não, quais foram as motivações e o que afastou os outros jovens dessa carreira. Ou entre casais que optaram por ter muitos filhos, ou não tê-los, por homens que saíram de suas cidades natais, ou de seus países, e tantos percursos que de alguma forma afetam a vida futura. Em todos esses casos, provavelmente encontraríamos, nos relatos biográficos, a combinação de diversas "causas" formando a história particular de cada um. Também não se deve esperar que as pessoas "expliquem" seus percursos, ou que "elucidem" suas biografias, sejam elas de garotos do tráfico ou de jovens que trabalham na bolsa valores. O que se pode encontrar - e é preciso ter cautela quando encontramos exatamente isso - são construções discursivas, que muitas vezes procuram dar nexo a histórias de vida na forma de causas e efeitos. As lógicas e explicações muitas vezes são formatadas pela suposição do entrevistado sobre o quê o entrevistador desejaria ouvir. Quando esse mecanismo predomina, são comuns narrativas pontuadas por clichês.

José Machado Pais, pesquisador da Universidade de Lisboa, tem dedicado anos de esforços no sentido de compreender as características mais contemporâneas da juventude. Em vários trabalhos, e principalmente em Culturas juvenis (1993), Ganchos, tachos e biscates (2001) e Traços e riscos de vida (1999), chama a atenção para o que ele define como trajetórias ioiô (PAIS, 2001:55). São movimentos típicos da juventude atual: os jovens param de estudar, arranjam um bico, às vezes têm um filho, daqui a pouco voltam para a casa dos pais, mais tarde voltam a estudar, estabelecem novas relações afetivas e assim por diante, em processos às vezes prolongados de experimentações. Estes seriam, segundo o autor, os movimentos típicos dos jovens contemporâneos, a experimentação, a errância, a descontinuidade. As palavras que melhor definem as trajetórias juvenis são reversibilidade, oscilação, imprevisibilidade, formando "trajetórias alongadas, fraturadas, adiadas, frustradas..." (2001:11). Muito diferente dos modelos das décadas anteriores, que preconizavam a juventude como uma transição para a vida adulta, em linhas mais retas e diretas. O autor fala de estruturas labirínticas, onde os caminhos podem ser abandonados e retomados, além de que várias opções podem ser exploradas simultaneamente. Pais defende uma sociologia da pós-linearidade, onde se procura menos as causalidades, em que causas determinam efeitos e se alinham no tempo com previsibilidade, onde o antes leva ao depois. Propõe que se possa construir "uma sociologia da juventude que dê conta das novas realidades, exatamente a partir da crítica do conceito de transição linear, circunscrita a uma sucessão progressiva de etapas identificáveis e previsíveis em direção reta à fase adulta" (PAIS, 2001:14).

Em nossas pesquisas empíricas, verificamos que muitas vezes, quando se vive num território onde as armas e os grupos criminais estão muito próximos, o ingresso no tráfico é uma das passagens, uma das experiências, uma das possibilidades. Pois projetos sociais, sozinhos, não reduzem taxas de homicídio. Melhoria das escolas, criação de empregos, ampliação de alternativas profissionais, programas de bolsas, iniciativas culturais para fortalecer a imagem do jovem de favela, tudo isso é necessário, mas não basta para reduzir a letalidade provocada pelo envolvimento de adolescentes em grupos armados. É imperioso reduzir a presença dos grupos armados nas favelas, diminuir a presença das armas, das munições, do mando de "donos" que fazem da violência uma cultura, uma regra local, uma lógica interpessoal.

Enquanto houver armas e munições em abundância nas favelas, haverá meninos que por alguma razão, em algum momento de suas adolescências ou juventudes, vão experimentar "a vida errada". Mesmo que seja apenas uma loucura de verão, uma decisão absurda, e não uma opção segura pelo crime, esse instante muitas vezes resulta na morte de tantos adolescentes e jovens. Os jovens que ingressam no crime matam e morrem. A arma que confere tanto "poder" está na porta da rua, na esquina de casa, muito perto. A munição é farta, o desfecho é rápido, muitas vezes não há tempo para pensar, se arrepender. Desenvolvi esses argumentos no texto Meninos do Rio (RAMOS, 2009).

Ouvimos jovens que entraram e saíram do tráfico para nos aproximar da compreensão sobre por que alguns jovens traçam seus percursos de vida no mundo das armas, do crime, das drogas. Quando o tráfico já não dá tanto dinheiro, é incerto, arriscado, paga mal, é cansativo e impõe jornadas e encargos de trabalho que se não forem cumpridos podem custar a vida e ainda é um mundo cheio de "vaidades" e "falsidades", é difícil construir discursos sobre as razões para entrar. Como veremos, o discurso sobre quem entrou e saiu é sempre uma construção crítica sobre o erro, a bobeira, a vacilação. Mas não encontramos exatamente arrependimento. Talvez alívio, por ter saído a tempo e vivo. Alguns entrevistados mencionaram que mesmo quando um jovem já saiu do tráfico, quando ele fala do passado, "chega o olho brilha. Tem um prazer ali". De fato, observamos claramente esse fenômeno em vários momentos da pesquisa. Mesmo jovens mais maduros que se tornaram lideranças públicas, como as do AfroReggae, e que estão acostumados a contar suas trajetórias criminais, ocorridas às vezes há bastante tempo, vibram ao falar do passado. Os relatos podem demorar horas e atrair bastante platéia. Contam sobre como foram presos, lembram dos diálogos que travaram com policiais, como foram baleados, as fugas, os confrontos, as armas, o número de tiros... como se fosse um filme. Esse fenômeno talvez não seja muito diferente de outro observado pelos assistentes sociais e técnicos. Os jovens que estão atualmente no tráfico se referem ao futuro, também, como um filme: "quando eu for preso", "quando eu morrer"...

Uma assistente social definiu com perplexidade o que se passa: "é como o cara que entra no mar prá pegar aquela onda que vem grandona, ele quer estar lá naquela onda. Uma porção de gente está aqui fora dizendo 'Deus me livre, entrar naquele mar'. Mas ele tem aquela coragem, aquele desejo e vai. Eu acho que é a mesma coisa irpro tráfico".

Talvez seja por causa dessas ondas do mar, dessa capacidade de fascinar seus participantes diretos que alguns jovens entram para os grupos de violência armada. Mas depois de algum tempo, que pode variar de poucos meses para alguns a anos para outros, muitos resolvem "sair". Na verdade, todo traficante que entrevistamos, fala em "sair".

Deco. Deco é um ex-traficante de Vigário Geral. Diz que entrou para a boca de fumo guardando material bélico pra um amigo. Nesse momento inicial não considerava que "estava no tráfico". "Ele me dava R$ 100 toda sexta-feira, só pra mim guardar as armas, não tinha envolvimento com nada. Tava ali por causa dele. Ele ligava pra mim e dizia: "vem aqui, assim, assado", Eu ia lá e pegava. Tinha um esconderijo bom pra caramba, de difícil acesso pra qualquer outra pessoa. Aí foi indo, foi indo, até que aconteceu um lance de troca de tiros com a facção rival. Aí quando ele chegou perto de mim, ele disse: "Fica tu mesmo." E eu fiquei. Ele disse, "Vou te dar um presentão, uma gerência". Ai peguei a gerência. Depois de um tempo eu estava na gerência de três favelas. Deco foi preso, cumpriu pena, foi solto e voltou para o tráfico. Eu pergunto como finalmente ele saiu do tráfico, e ele conta a seguinte história: "Eu era o frente da favela. Chegou o Junior (José Junior, diretor do Grupo Cultural AfroReggae) pedindo pra gente dar uma entrevista para uns caras. E eu: 'o que é isso ai?' 'um I-pod, que música que tu gosta?' 'Pô, musica que eu gosto não tem aí não', 'Pode falar irmão, fala ai, o que tu gosta, o que você quiser tem aqui'. Ai eu falei 'bota o Legião Urbana ai'. O cara botou. Eu: 'caralho'. 'Qual é irmão, esse aqui é o meu, né?' 'Onde eu compro um desse aqui?' 'Esse aqui você só vai comprar lá, lá fora'. 'Lá fora onde? Ali fora da favela?' 'Não, esse aqui você só vai comprar lá fora'. 'Lá fora onde? No shopping de Caxias?' 'Não isso aqui tu compra lá fora, em outro país'. Eu 'caralho', ai eu pirei, pô vou sair daqui e vou lá na França, fazer o quê, amigo? Comprar um I-pod!' Ai eu fui e dei a entrevista. Aí ele fez o convite: 'Deixa te fazer uma pergunta. Se uma empresa te fizer uma proposta, de você ganhar uma quantia por mês, com certeira assinada, você largaria o tráfico?' 'Pô eu largaria, por qualquer dinheiro, até por cem reais, só pela oportunidade de trabalho'. Uma semana depois eu sai... agora to aqui, tirando outros meninos do tráfico". Esse mesmo jovem havia mencionado como se sentia "preso" na favela, sem poder sair por causa das perseguições policiais. Diz que só via pela televisão as mudanças urbanísticas no entorno de sua favela. "Eu via no RJTV as obras, a construção de pistas largas e pensava 'pô, quando eu tiver que sair daqui não vou saber nem como andar lá fora'".

Mário. Mário é um ex-traficante que atualmente tem 36 anos e deixou o tráfico há pouco mais de um ano, dois meses antes da ocupação do Complexo do Alemão pela polícia, em dezembro de 2010. Em uma grande boca de fumo no Complexo do Alemão, exercia a função de vapor (vendedor da droga). Conta que entrou para o tráfico com 11 ou 12 anos. Portanto, foi traficante durante 24 anos. Mario diz que não sabe por que entrou. "Deve ter sido por safadeza, porque a minha mãe sempre deu tudo, nunca me faltou nada". Ele também fala das companhias. Diz que todos os seus amigos na infância eram envolvidos. Menciona o nome de vários e vai contabilizando um a um que todos estão mortos. Ele vem de uma família com sete irmãos, e só ele entrou "nessa vida". Começou fazendo pequenos ganhos na feira, fazendo carreto e pequenos roubos. Depois de muita luta, foi aceito no tráfico, "porque nessa época criança não entrava. E o Miltinho, da Ilha, não queria que a gente roubasse."

Perguntado por que saiu, depois de mais de 20 anos, ele diz "Eu sempre andei sozinho. Entrei sozinho e sai sozinho, sou meio índio" (se referindo ao fato de não ter saído com a ajuda de Igrejas ou de grupos como o AfroReggae). "Pra mim foi uma coisa de Deus, que eu saí duas semanas antes da gravação" (refere-se a uma gravação amplamente exibida pela polícia na televisão em que os parceiros de seu grupo da boca de fumo foram filmados. Todos foram caçados pela polícia e estão mortos ou presos). Diz que "muitos saíram após a ocupação, mas eu saí antes. Sai com a cara e a coragem". Mario está casado com uma jovem advogada que trabalha numa empresa estatal. Acha que o casamento com essa mulher teve importância para tomar a decisão de sair. Também se refere à mãe, a quem agora visita "pelo menos uma vez por semana". Diz que a torcida na família foi grande para ele largar o tráfico. Com o pouco dinheiro que conseguiu guardar de todos os anos no tráfico, comprou uma pequena casa num bairro do subúrbio, fora da favela, onde vive com sua mulher. Atualmente recebe mensalmente a parcela pela venda de sua casa no Complexo do Alemão, de onde saiu. Após ter saído do tráfico, trabalhou vários meses, legalmente e com carteira assinada, como entregador, usando sua moto numa empresa de delivery. Gostava do trabalho, era respeitado, mas "não consigo me acostumar com muita roupa", diz, referindo-se ao uniforme da empresa, composto de calça, jaqueta de manga comprida e bota.

Pergunto como vê esse período de sua vida (a maior parte de sua vida) no tráfico. Diz: "nunca matei ninguém. Sempre tive coração bom, sempre fui de Deus. Não sei se matei polícia em troca de tiro, mas acredito que não. Na comunidade, eu procurava não andar armado. Sempre de bermuda, chinelo e sem camisa, com minha moto. Eu salvei muita gente. Quando teve o golpe na Ilha, e depois várias vezes no Complexo, convenci as pessoas a não matarem. Os novinhos do tráfico são que nem pitbull, eles vêm em cima, não querem nem saber". Pergunto se ele tem saudade da vida no tráfico. Diz que só sente falta do dinheiro, "dinheiro que eu sei que não vou ganhar aqui fora". Mas acrescenta que também sente falta da liberdade. Como assim? Mário não sabe explicar. Diz que é falta da "liberdade de andar dentro e fora" ("dentro" e "fora" parecem dizer respeito a dentro e fora do tráfico e também da favela).

Nos próximos anos, a cidade vai acompanhar centenas, possivelmente milhares de casos de jovens de favelas que tiveram diferentes graus de envolvimento com grupos armados procurarem caminhos de saída. Muitos sairão por meio de um trabalho com carteira assinada, pela retomada dos estudos, pela volta à casa das famílias ou pela busca de experiências em esferas que não sejam criminais, ainda que possam ser ilegais, ilícitas ou informais, já que essas dimensões são complexamente relacionadas na cidade e em especial dentro das favelas. Nessas alturas, já é possível afirmar que se quisermos entender essas trajetórias heterogêneas, contraditórias, hesitantes e muitas vezes inconsistentes, mas algumas vezes surpreendentes, será necessário inscrever as idas e vindas de jovens de favelas egressos de grupos armados na compreensão que temos sobre as dinâmicas juvenis na década atual.

 

Notas:

1. As diversas fases da investigação foram realizadas com a participação de vários pesquisadores. A coordenação da maioria das atividades foi realizada por mim e por Leonarda Musumeci, no âmbito da linha de pesquisa intitulada Juventude, Violência e Polícia, realizada no Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes. Entre os pesquisadores de campo, devem ser destacados Ana Carolina Dreyfus, que participou intensamente das entrevistas e grupos focais em 2008 e Tiago Borba, que participou da implantação das UPPs Sociais em nove favelas cariocas em 2010. Uma parte do projeto foi apoiada pelo Unicef e outro módulo contou com o apoio da Finep. A Fundação Ford e a Universidade Candido Mendes apóiam institucionalmente o CESeC, o que permite o desenvolvimento de investigações de longo prazo.

2. Para se ter uma ideia, a taxa de homicídios de países como França, Alemanha. Itália ou Reino Unido é de 1 a 3 homicídios por 100 mil. A taxa dos Estados Unidos é de aproximadamente 5 a 7 homicídios por 100 mil.

3. Esses e outros dados podem ser consultados em detalhes no site do Centro de Estudos de Segurança em Cidadania, em www.ucamcesec.com.br

4. Para se ter uma noção da letalidade da ação policial, tomando os últimos 10 anos (2001 a 2010), apenas na cidade do Rio de Janeiro, das 23.441 pessoas assassinadas, 6568 foram mortas pela polícia.

5. As Unidades criadas, pela ordem de instalação, foram: Santa Marta; Cidade de Deus; Jardim Batan; Babilônia e Chapéu Mangueira; Pavão, Pavãozinho e Cantagalo; Ladeira dos Tabajaras e Cabritos; Providência; Borel; Formiga; Andaraí; Salgueiro; Turano; Macacos; São João, Matriz e Quieto; Coroa, Fallet e Fogueteiro; Escondidinho e Prazeres; São Carlos; Mangueira. O Complexo do Alemão (com 16 comunidades) e as favelas Rocinha, Vidigal e Chácara do Céu foram ocupadas e receberão UPPs em 2012.

6. O vapor tem a função de vender as drogas diretamente aos clientes e responde diretamente ao gerente. Em geral pega as "cargas" de drogas em consignação e ganha por comissão. Os soldados têm por responsabilidade defender a "boca" e recebem por semana ou por mês. Os olheiros ou fogueteiros vigiam as entradas e saídas para avisar sobre a chegada de inimigos de outras facções ou da polícia. São escolhidos pelos gerentes e ganham por semana ou por mês.

7. Na pesquisa do projeto Rotas de Fuga, do Observatório de Favelas, o levantamento realizado junto a 230 adolescentes e jovens trabalhando no comércio varejista de drogas em favelas, em 2004, 57% declararam ter ingressado no tráfico entre os 13 e 15 anos.

8. Luiz Eduardo Soares há alguns anos alertou para a importância dos aspectos simbólicos associados à opção pelo crime e pelas armas por jovens urbanos. O fenômeno foi descrito em várias de suas obras, entre elas "Cabeça de porco" (SOARES, 2005:15). Alba Zaluar, em textos seminais para a compreensão das relações entre juventude e crime havia chamado a atenção para as relações profundas entre armas de fogo, construção de identidade masculina e morte (ZALUAR, 1994).

9. O lugar da mãe no mundo dos jovens de favela foi explorado por Numa Ciro, na tese de doutorado "Nas Quebradas da Voz: o lugar e a mãe na crônica poética do rap" CIRO (2009).

10. Os argumentos apresentados nesse item foram desenvolvidos em RAMOS (2009).

11. José Júnior, em seu Da favela para o mundo (Aeroplano, 2003), se refere a uma "narcocultura.

12. Proibidões são músicas com letras relacionadas às facções criminosas, em geral citando o nome das comunidades dominadas por essas facções e elogiando os atos de violência. Fazem a "apologia do crime", como os jovens dizem. Também têm o nome de proibidão as músicas de caráter sexual, em geral com expressões pesadas e histórias pornográficas. Os CDs de proibidões não são vendidos nas lojas nem estão editados por gravadoras profissionais, mas são abundantes na internet e especialmente no You Tube.

13. Há muitos funks proibidões cujo tema é "a novinha", todos disponíveis na internet, como um que começa assim: "as novinha de 14 têm um corpo de elite; a mulher de 37, bunda cheia de celulite".

14. O conceito de "jovens de projeto" foi desenvolvido por Regina Novaes (veja, por exemplo, NOVAES, 2006).

 

REFERÊNCIAS

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