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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.3 no.2 Rio de Janeiro July./Dec. 2011

 

ARTIGOS

 

O dinheiro no sintoma e a dívida da dúvida: memórias de uma existência

 

 

Francisco Ramos de Farias

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rua Voluntários da Pátria 481, apt. 803, CEP: 22270-000 - Humaitá, Rio de Janeiro E-mail: frfarias@uol.com.br

 

 


RESUMO

Aborda-se nesta reflexão o percurso suscitado pelo desejo na neurose obsessiva, considerando as memórias construídas por um analisante bem como as anotações realizadas pelo analista. Nesse contexto, investiga-se os entrecruzamentos transferenciais firmados ante a coincidência de fatos e de nomes na história de ambos. Em princípio, constata-se que a assunção de uma dívida simbólica, bem como os mecanismos construídos para pagá-la e ao mesmo tempo não pagá-la foi o caminho encontrado para o analisante, no sentido de manter sua existência em termos de ser um devedor; razão pela qual não devia pagar a dívida, visto que o pagamento elimina o credor, e se não há mais credor, o devedor se aniquila. Eis o sentido da manutenção da dívida para sustentar uma dúvida e livrar o sujeito da condição de ver-se como um morto.

Palavras-chave: Desejo, dívida, dúvida, obsessão, memória.


ABSTRACT

It is discussed in this reflection the journey sparked by desire in obsessive neurosis, whereas the memories built by an analysand as well as the annotations made by the analyst. In this context the transferential crossovers firmed in view of the coincidence of facts and names in history of both are investigated. At first, it is noted that the assumption of a symbolic debt, as well as the mechanisms constructed to pay for it and at the same time not paying was the path found for the analysand to maintain his existence in terms of being a debtor; reason why the debt shouldn't de paid, since the payment eliminates the creditor and if there is more creditor, the debtor is annihilated. Here's the sense of the debt's maintenance: to sustain a doubt and rid the subject of the condition of viewing himself as dead.

Keywords: Desire, debt, doubt, obsession, memory.


 

 

Uma abertura à questão: um nome

Um nome, uma trajetória, uma trama, um sintoma; peças-chave de uma encenação dramática ou, mais precisamente, de um acontecer marcado por uma escuta atenta à possibilidade da construção de uma práxis diferenciada, num campo específico, através de um ato singular. Fala-se, certamente, da relação entre o senhor que ficou conhecido, no âmbito da Psicanálise, como o homem dos ratos (a quem Freud atribuiu um nome: Paul Lorenz, não sem razão) e o próprio Freud. Quem saberá por que Ernst Lanzer passou a chamar-se, nas anotações memoráveis de Freud, de Paul Lorenz, ou simplesmente Dr. Lorenz?

 

 

De uma circunstância têm-se notícias bem contundentes, assim como da atitude do outro personagem que conferiu sentido à montagem dessa história: trata-se de Freud, que, em suas preocupações com o sigilo, resolveu modificar o nome desse senhor e omitir detalhes que pudessem identificá-lo. Mas, apesar de tamanho esforço, o nome de Dr. Lorenz tomou-se objeto de conhecimento público, da mesma forma como algumas das peculiaridades de sua vida privada e de sua morte. Sobre a morte é o próprio Freud que, em 1923, acrescentando uma nota ao historial clínico, o faz quase em estilo de epitáfio, lamentando o fim de seu ex-paciente: "como tantos jovens valorosos e promissores, ele morreu na Primeira Guerra Mundial" (FREUD, 1909/1976, p. 250).

Um aspecto curioso chama a atenção para um fato. Era costume de Freud destruir as anotações diárias sobre seus pacientes quando dava por encerrada uma análise. Mas, em se tratando de Dr. Lorenz, isto não aconteceu, e Freud, numa atitude contrária às suas formulações teóricas, conservou um acervo significativo das anotações, mesmo após trazer à lume o historial clínico. Aqui, caberia uma indagação: que testemunho quis deixar Freud com esse material? Tratar-se-iam dos fundamentos de sua técnica de intervenção? Ou das estratégias utilizadas em dadas circunstâncias? Ou, ainda, pretendia explicitar a forma de elaboração desses dados em relação ao processo de construção teórica?

Estas são algumas dentre as muitas especulações que são levantadas em função de uma articulação entre a teoria psicanalítica, o processo de teorização na Psicanálise, a ética e a experiência clínica. Esta articulação, quando tem lugar, repercute de maneira diferenciada no trato das questões referentes à subjetividade, visto que mostra o vínculo indissociável entre a teoria e a prática. Ou seja, esse vínculo, sustentado por uma ética, representa uma ruptura com a prática médica tradicional, ao assumir uma posição que considera o campo das chamadas estruturas clínicas.

Ao estabelecer o conceito de defesa e ao tomá-lo como mecanismo explicativo da neurose, Freud (1984/1976) formula modos defensivos específicos para a neurose e para a psicose. Propõe uma aproximação clínica que rompe com os pressupostos da clínica psiquiátrica do século XIX, ao fundar uma clínica que separou decisivamente a ciência do médico do saber do sujeito. Tem-se, assim, uma oposição aos ideais do saber vigente. Indubitavelmente, Freud, ao deter-se nesse historial clínico, empenha-se em marcar uma diferença, traçando um percurso caracterizado por uma construção teórica que sustenta uma prática clínica: trata-se da hipótese do inconsciente comocondição sine qua non da prática psicanalítica conforme salienta Julien (2002). Tal prática, resultado de uma teorização, distancia-se contundentemente de uma clínica baseada na observação-descrição. Dessa forma, representou uma leitura toda própria de um tipo de discurso: o discurso do sujeito, considerado como um saber que não pode ser construído aprioristicamente.

 

 

É nesse ponto que reside a diferença, para Bercherie (1989), entre o discurso psicanalítico e o discurso psiquiátrico. Em relação ao primeiro, tem-se um saber produzido pelo sujeito em causa, enquanto que o último presta-se a descrições e à classificação de entidades nosológicas, com o saber sustentado pelo médico. Este, como vetor no campo clínico, converte-se num produtor de saber que independe daquele que lhe é apresentado e que fala sobre seu próprio sintoma. É este tipo de produção teórica, com seus métodos específicos de intervenção, que a clínica psicanalítica subverteu. Ao instaurar o novo provocou dissabores, rancores, intriga e espanto, mesmo porque os termos empregados pela Psicanálise não possuem o mesmo estatuto e emprego que têm lugar no campo da psiquiatria. Se há uma coincidência, esta revela-se meramente em termos da terminologia. Mas a que se deve a mudança?

Conforme indicam os conhecimentos ímpares vividos por Freud, alguma direção terá de ser seguida. Enquanto teorizador, colocou-se no interior do campo de investigação, constituindose também como o suporte para a elaboração do material que demandava uma leitura clínica. Sendo assim, ocupou o lugar, marcado por uma crescente construção e reconstrução, não para proceder à montagem de um realismo factual, mas para produzir a invenção de uma história mítica, ao ter-se revelado esta a condição ideal para explicar a constituição do sujeito. Este ponto é:

... a experiência germinal de Freud, que é era a reconstituição completa da história do sujeito, elemento essencial, constitutivo, estrutural do processo analítico. Trata-se da apreensão de um caso singular. Tomar um caso na sua singularidade é a dimensão própria da análise, que consiste na reintegração, pelo sujeito, da sua história até os seus últimos limites possíveis. A história não é o passado que é historiado no presentehistoriado no presente porque foi vivido no passado. (LACAN, 1979:21).

Nesta forma diferenciada de encarar a questão, Freud deixou para o próprio sujeito a obrigação de participar na montagem do seu diagnóstico, o que é a decorrência natural da história do seu sintoma. A esse respeito vale destacar a observação de Clavreul (1983, p. 157) para quem "a medicina não é constituída da totalidade do que se pode dizer de verdadeiro sobre a doença". Assim sendo, o ser do paciente toma-se sujeito, sendo esta a distância em relação à atitude médica (quando pretendeu objetivar uma subjetividade), visto que ao sujeito é permitido o acesso à engrenagem fantasmática, relatando a sua história: trata-se da mudança de um campo sustentado pelo olhar-contemplação para o campo da escuta. (FARIAS, 1999). É esse o caminho trilhado por Freud e que diante de determinadas circunstâncias assume determinadas posições teóricas, adotada estratégias técnicas e, sim, sua postura ética, troca o nome de seus pacientes. A questão do nome é de suma importância, bem porque o nome escolhido, Paul Lorenz, faz remissão a um mito construído pelo próprio Freud. É por esta razão que o nome na clínica psicanalítica não é apenas um índice de um prontuário, como o é na clínica psiquiátrica, e sim a abertura para a construção de um mito. Há de se observar que, ao atribuir um nome Freud, o faz às custas da ocultação de um outro nome. Deste modo, toma por fictício o sujeito em análise. Não obstante, nos anais da Psicanálise, um nome se eterniza: trata-se do nome Freud, que jamais foi omitido ou mudado, seja diante dos êxitos, seja diante dos fracassos.

O sujeito e a dívida

Dr. Paul Lorenz é escravo de uma obsessão e, ao ocupar a posição frente a esta questão, levanta para si mesmo uma indagação bastante enigmática: como ser homem? Ou, ainda, corno passar pela castração tendo que efetuar uma "morte" em seu pai, seu senhor? É de posse desse aspecto que Dr. Lorenz chega a Freud e, segundo Szpilka (1979), faz a seguinte colocação: o que fazer para não castrar meu pai? Sabe-se que movido por essas indagações e, após tomar conhecimento do livro "A psicopatologia da vida cotidiana", Dr. Lorenz endereça a Freud sua queixa no dia primeiro de outubro de 1907, apresentando-se como um jovem de vinte e nove anos, de formação universitária, com um inventário de queixas, que se referem a sua existência. Enfatiza que seus sintomas intensificaram-se nos últimos quatro anos. Utilizando-se de todos os benefícios do seu sintoma, o que facilitou a construção de uma linguagem específica, como uma espécie de dialeto, deixou transparecer a sua angústia, motivo pelo qual exigiu uma certificação do fato de que, para recobrar sua saúde, lhe era necessário realizar um ato. Terá sido a esperança de obter urna declaração para está finalidade o que o levou à análise. Pede a Freud para livrá-lo do temor de que um castigo venha a acontecer a seu pai - um homem -, ou a sua amada - urna mulher. São estes os dois objetos de sua preocupação, tematizados à questão da morte.

Esse elemento primeiro presente nesta encruzilhada (como amar um homem ou como amar uma mulher) teria levado Dr. Lorenz a retardar a conclusão de seus estudos bem como mudar sua condição de religioso devotado para livre pensador, tentando, assim, encontrar saídas para o dilema no qual se encontrava: o amor, o dinheiro e a morte. Pelo ângulo do amor, sua história atualiza o mito de ordem paterna: empenha-se em desvendar o mistério de como seu pai amava. Como mostra a leitura do texto, esta faceta da vida do pai apresentou duas alternativas: simplesmente amar ou amar por dinheiro. Diante dessa circunstância, Dr. Lorenz fica oscilando de uma alternativa para outra.

Na reconstrução operada por Dr. Lorenz, seu pai aparece como o devedor de uma divida não paga, tema em torno do qual se organiza a história familiar, visto que o terna da dívida de dinheiro aproxima-se do tema da dívida de amor: seu pai casou com sua mãe por dinheiro e não por amor. O dinheiro vem pela linha materna, uma vez que o pai gostava de uma moça pobre e casou-se com a mãe de Dr. Lorenz por interesse. Por essas razões, Dr. Lorenz assume uma dívida de dinheiro que se traduz em dívida de amor, ambas apontando para a morte, esta que se consumou, não como uma solução, mas como uma fatalidade. Isto porque a neurose teria sido o processo de mediação que deixava Dr. Lorenz entre a vida e a morte, ora como um morto-vivo em sua passividade, ora como um vivo-morto em suas obsessões e suas hostilidades, conforme muito bem ilustra Leclaire (1997) a esse respeito.

Esta morte, que faz ressonância na vida de Dr. Lorenz, tem vários pontos de referência, a saber: morte de sua irmã mais velha, objeto primeiro de seus desejos incestuosos; morte de seu pai e morte do pai da mulher que amava. Em certo sentido, essas ocorrências, aliadas a dados peculiaridades de urna vida, traçam um destino do qual não escapou Dr. Lorenz, por mais que tentasse, tendo que se empenhar para pagar uma dívida impossível de ser paga. Esta faz referência ao pai, mas a um pai que tem como mãe de obsessivo teria se encarregado de distanciar o pai do filho, mantendo-o em um plano estritamente como o motivo de suas insatisfações. Essa modalidade de insatisfação na mãe concorre para que este aspecto se duplique no filho. Tanto para a mãe quanto para o filho, o pai, na condição de idealização intensa, falha como homem. Isto é fundamental para que Dr. Lorenz desenvolva estes rituais, de certo modo incompreensíveis, rituais esses que jamais produziram as condições necessárias para que Dr. Lorenz pudesse realizar-se como homem. Por outro lado, tem-se uma mãe que, insatisfeita com seu marido enquanto homem, delega ao filho (Dr. Lorenz) a difícil tarefa de tornar-se homem a partir do seu projeto de mãe (MELMAN, 2007). Difícil tarefa, visto que esta iniciativa da mãe conjuntamente com certa passividade do pai são pontos de colagem de um no outro. Como o pai, Dr. Lorenz fica também demasiadamente próximo de sua mãe. Desse modo, viu-se impedido de ter o pai intervindo em seu desejo, pai enquanto suporte da lei e não meramente enquanto representante da função reprodutora. Daí se formar um lugar impossível, que é retratado na relação amorosa de Dr. Lorenz com uma mulher outra que não seja sua mãe. Disto reflete a impossibilidade de ocupar o lugar de seu pai, por isso a moça estéril lhe interessava muito.

 

De uma dívida a uma dúvida: a saída do impasse pelo sintoma

O medo de Dr. Lorenz, advindo do relato do capitão cruel sobre uma espécie de tortura chinesa, foi o paradigma de uma problemática, pois no que se refere a esse relato, afirma Freud (1909/1976, p. 171): trata-se aí de um "horror ao gozo todo seu do qual ele mesmo não estava ciente"? Sendo assim o capitão é considerado o credor, por ser quem anuncia o castigo de meter Ratten pelo ânus.

Essa circunstância funciona de um modo bastante interessante, visto que, em Dr. Lorenz, surge o desejo de que se metam, Ratten-Rater, pelo ânus. Isso resulta da articulação à uma dívida misteriosa, e seu esforço não é para pagá-la. Sem dúvida, organiza a montagem de um engenhoso circuito para não pagar uma dívida possível de ser paga, uma vez que se empenha, com todas suas forças, para pagar uma dívida impossível. Assim, engaja-se em um projeto precisamente planejado com a intenção de pagá-la a quem não deve para nunca pagá-la a quem deve. Este é o contexto no qual se constitui sua obsessão baseada, no equívoco de querer pagar a quem não deve mais, ou seja, à empregada dos correios. Este circuito envolto por uma dívida, segundo Gazzola (2005), transita de um homem para uma mulher, e bem representa o drama da situação edípica: dever a um homem e não dever a uma mulher, pelo fato de que esta não pode ocupar o lugar de credor em termos da estruturação na triangulação edípica. Somente neste sentido, o sintoma, através dos fatos, leva a marca do complexo paterno, como é também de origem paterna o ditado oracular, matriz de sua obsessão: um grande homem ou um grande criminoso. Esta estrutura converte-se no conteúdo dominante da dívida, essa pronunciada pelo pai: esse menino será algo. É esta a função ocupada pelo pai na triangulação edípica. Em outros termos, o pai aparece, como objeto de identificação para o filho, na posição de admirado ou de criminoso (SZPILKA, 1979).

Neste tipo de encerramento ditado pelo pai, Dr. Lorenz é paralisado no desejo de uma diacronia e sustentado por um caráter ambivalente: a mulher ou o homem, o ódio ou o amor, o amor ou o dinheiro. Ao ficar paralisado, não faz uma coisa nem outra. Nem o grande homem, nem o grande criminoso, mas, sim, para não seguir nenhuma dessas direções, torna-se o grande neurótico. Isto porque o pai colocou-se em uma rota de ambiguidade (MANNONI, (1973). E é certamente dessa ambiguidade do pai em relação à dívida que Dr. Lorenz se vale para a construção do sintoma, visto que a enunciação oracular pronunciada pelo pai denota tão somente a sua própria ambiguidade.

Os dois tempos característicos dessa ambiguidade encontram-se colados um no outro pelo mecanismo anulatório empregado, o que leva à perda da continuidade entre essas duas posições polarizadas. Por isso, manter a dúvida equivale a manter a dívida em estado estanque. Como a continuidade fica abolida por essa alternativa anunciada pelo pai, grande homem ou grande criminoso, Dr. Lorenz fica aprisionado entre um antes e um depois. Por isso, sustentar essa divisão significa que cada termo dessa alternância mascara o outro.

É por esse meio que Dr. Lorenz se coloca na posição de devedor em relação à profecia anunciada pelo pai, pois fora este quem criou a dívida. Daí, toda intenção de pagar a dívida a quem não devia revela, certamente, uma possibilidade de não pagá-lo a quem realmente devia. É por esta razão que fracassou ao tentar realizar este seu projeto: restituir o pagamento da dívida paterna. Tudo o que organiza para colocar seu projeto em prática leva a marca de uma contradição, sustentada pela dúvida; dúvida que representa (pelo fato de manter a dívida) a única forma de ser reconhecido pelo pai. Nesse sentido, os juramentos de Dr. Lorenz funcionam como figuras de desejo que retratam a dificuldade de ocupar uma das duas posições seguintes: filho ou pai, razão pela qual permanece em uma repetição especular cujo conteúdo são os impasses com os quais se deparou ao se confrontar com esses dois lugares.

A tentativa de Dr. Lorenz de pagar essa dívida, pelo sintoma, a quem não devia representa uma maneira de eternizar sua dívida impagável em relação a seu pai; dívida essa que explicitar-se-ia na profecia ditada pelo pai. Este, ao cumprir essa função, torna-se um covarde, impedindo Dr. Lorenz de deixar transparecer sua fúria contra seu pai pelo medo de ferí-lo. O resultado é o aparecimento de uma atitude também covarde de Dr. Lorenz e, assim, não consegue "matar" a imagem idealizada do pai, ficando preso nela pela sua obsessão.

Por isto é que o encontro de Dr. Lorenz com o capitão cruel é de fundamental importância na constituição do sintoma, pois foi a pessoa deste capitão que encontrou com um pai gozador cuja crueldade aponta de forma significativa para o sacrifício exigido pelo gozo. Esse encontro ocorreu pela identificação. Como o capitão está na posição desse pai cruel, nesse contexto, surge para Dr. Lorenz a ideia, mais precisamente, o desejo de que essa tortura aconteça a si mesmo e, assim, desloca o capitão para a posição de quem lhe exige passar por essa situação. Em última instância, a referência aqui traçada é ao pai infantil. Pelo fato de colocar o capitão cruel na posição de quem lhe exige essa tortura, Dr. Lorenz se incluir em um circuito, o qual tem por um lado um homem e por outro uma mulher. Assim, ao tornar-se personagem dessa encenação, não pode escapar do destino traçado no seu processo de subjetivação, pois, conforme sugere Berlinck (2005, p. 9), "a neurose obsessiva é uma tragédia".

Posicionando-se em relação ao gozo suscitado por esse momento, há em Dr. Lorenz um primeiro movimento de rejeição dessa ideia. Isto aparece sancionado por uma defesa: não devolver o dinheiro, senão o castigo ocorreria, o que, para Freud, toma corpo no pensamento com o seguinte juramento: devolver o dinheiro ao tenente A. Esta é a reviravolta empregada pelo sujeito para deslocar esse gozo para o inconsciente. Desse modo, ao integrar a cena do complexo paterno (dívida por azar, porque o pai jamais encontrou o credor) e a lembrança infantil de sua fúria relacionada à profecia oracular, surgiram nos pensamentos de Dr. Lorenz mandatos contraditórios impossíveis: pagar a dívida quando o pai e a amada tiverem filhos. É no momento em que se estabelece essa impossível condição que o crime é cometido, pelo insulto às pessoas queridas, o que concorre para estabelecer um castigo para si, ao se dar por objetivo realizar uma tarefa impossível, e, até certo ponto, irrealizável: pagar uma dívida a um não credor. Quer dizer, ao se propor à execução desse ato, encontra um elemento para sustentar sua obsessão, pois era sua concepção ter que pagar ao tenente A, porque é uma exigência paterna (formalizada através do capitão cruel), e como tal não pode estar equivocada.

Não obstante como pode alguém ficar quase louco por uma dívida tão pequena? O dinheiro não é aí insignificante porque é em si mesmo o máximo significante da dívida. De certo modo, quando menor a quantidade, mais significante é a dívida, ou seja, a dívida pela dívida em si, pois a dívida apesar de ser relativa a uma quantidade não se restringe exclusivamente ao valor, uma vez que aponta para uma intenção.

Neste sentido, vale salientar que Dr. Lorenz sofre em decorrência da assunção de dívidas que não podem ser pagas, pois caso ocorresse o pagamento haveria um desmoronamento, pelo fato de que viver, para Dr. Lorenz, é viver para pagar, em um ato que jamais possa ser consumado, já que pagar liquida o credor e, se este desaparecer, desaparecerá conjuntamente todo o referencial de existência. É aí que está a encruzilhada na qual o Dr. Lorenz está aprisionado, pois, se não paga a dívida, as exigências de pagamento aumentam. Mas ao se empenhar em pagá-la, não sabe, como nem onde fazê-lo, para não ter que eliminar o senhor que o mantém na sua condição de escravo. É dessa forma que Dr. Lorenz apresenta-se identificado ao pai: o homem honesto e o homem desonesto. Essa identificação é referente à profecia ditada pelo pai. Vendo a questão por este prisma, Dr. Lorenz não pode pagar a dívida porque o pagamento representa sua demolição, pois o credor é o testemunho de sua condição de sujeito, de sua existência. Por isso, vive com a dúvida.

A tematização da obsessão

Há no obsessivo certa afeição pela incerteza e pela dúvida, o que se revela como o resultado do engajamento em temas que são, por sua natureza, duvidosos, como paternidade, tempo de vida, morte, existência após a morte, entre outros; temas esses que, enquanto crenças, não oferecem nenhuma garantia de verificabilidade. É por essa razão que o sujeito, ao criar uma dívida, engaja-se em uma dúvida, pelo fato de a dúvida levar ao conhecimento, mesmo que seja o conhecimento de estar devendo. É neste contexto que Dr. Lorenz assume uma dívida impagável para se confrontar por uma dúvida com determinadas questões no âmbito da subjetividade. Assim, constrói um sintoma pela vertente paterna, pois com a mãe não há dúvida: a maternidade e a morte são as únicas certezas para o homem. Aliás, não é sem nenhuma razão que Dr. Lorenz, ao recorrer àquele que suscita a dúvida, o capitão cruel, cria uma dívida, sendo desta seu testemunha vivo.

Desse modo, se estabelece entre Dr. Lorenz e esse componente da vertente paterna um contrato firmado com uma cláusula que nem sempre aparece. Para Szpilka (1979), neste tipo de contrato, esta cláusula quanto mais encoberta, mais eficaz, pois, em nível manifesto, Dr. Lorenz sente-se castigado por não pagar a dívida, mas no inconsciente organiza uma obsessão, numa temática relacionada à morte, com o propósito de pagar tal dívida. Assim começa o verdadeiro delito de Dr. Lorenz, que se configura como uma afirmação encoberta do delito cometido. Este aspecto aparece também em relação à morte do pai, em dois tempos: em termos do processo relativo ao Édipo e a morte do pai em si. A esse respeito vale salientar o temor vivido por Dr. Lorenz por não admitir ter desejado a morte do pai, pois "não podia acreditar que tivesse alguma vez estado às voltas com um desejo desses contra seu pai" (FREUD, 1909/1976, p. 186). O que se vê nisso é a perplexidade quando contata que desejou a morte do pai. Frente a isso, faz uma denegação para não admitir que deseja essa morte e expressa toda uma impossibilidade diante desse desejo. Eis uma característica da obsessão que se expressa pelo desejo de torturar, transformado em autotortura e autopunição. Trata-se, então, de uma postura eivada de contradições que se expressam pelo tipo de "hesitação que o obsessivo relativiza a obediência cega ao mandato" imperativo do supereu (GONDAR, 2001, p. 29).

Nessa situação sem saída, fica preso Dr. Lorenz, porque, se cumprir a lei, ou seja, pagar a dívida, torna-se o maior criminoso, visto que, em sua crença imbatível, o castigo aconteceria ao seu pai e à amada. Por outro lado, se não a cumpre, fica em dívida, de certo modo necessário, condição necessária para ter uma falha, ou seja, ser um devedor. Eis a situação de amarração em que se encontra em reação a Édipo. Obviamente, para Dr. Lorenz, sair da situação edípica equivaleria a sentir-se culpado por realizar um crime. Não obstante, por outro lado, se não se sente culpado, nada realiza, quer dizer, tampouco sai do Édipo, o que se verificou ao se tornar obsessivo pela realização de algo de outra natureza.

O outro ponto da encruzilhada dessa obsessão também é de origem paterna: casar-se por dinheiro ou casar-se por amor. Sabe-se que Dr. Lorenz faz a reconstrução mítica de pontos singulares da vida do seu pai, mas o conteúdo que entra nessa configuração é de origem materna: o dinheiro. É este o percurso que forja a dívida que o sintoma sustenta: dinheiro-amor. Ambos os aspectos aproximam-no da situação seguinte: casar com a mulher que o pai escolheu por dinheiro ou casar com a mulher que o pai amou. Este é o impasse diante do qual Dr. Lorenz fabrica um sintoma para repetir essa dupla vertente relativa do pai. Nesse sentido, a dívida de Dr. Lorenz era uma dívida que tinha o pai como um credor que exigia o pagamento de sua dívida (do pai) não paga. Por isso a quota, Rate, relaciona-se com Spielratte, o que se desdobra na formação do sintoma, visto que uma das pequenas aventuras do pai tem algo em comum com as exigências do capitão cruel: pagar uma dívida. Encontramos nos relatos de Freud (1909/1976) informações sobre o fato de que o pai de seu paciente nunca encontrou o credor de sua dívida contraída em jogo de azar, com um colega do exército. O fato de o pai não ter podido pagar a dívida chega aos ouvidos de Dr. Lorenz, na fala do capitão cruel, como uma alusão deste à dívida do pai. Essa dívida não paga tem seu prolongamento na questão "por amor ou por dinheiro", o que se relaciona com a problemática do Heiraten.

Todo o complexo econômico da dívida (dívida de jogo e dívida de amor) faz parte da formação do sintoma em termos do par sorte-azar, e que se atrela, de acordo com Szpilka (1979) à ponte verbal Ratten-Raten. De certo modo, o pedido do capitão cruel para saldar uma dívida incrementou o significado monetário de Ratten, articulando à ponte verbal Spielratte que se refere à dívida paterna (BRUSSET, 2003). Na conjunção da fala do capitão cruel com a dívida paterna, é possível compreender o enigma da ideia obsessiva, pois, à medida que o capitão cruel conta a tortura com ratos, se estabelece uma conexão com a cena infantil em que, quando criança, mordeu uma empregada de sua casa, sendo por isso severamente castigado pelo pai. Eis a conexão que colocou o capitão cruel na posição do pai cruel.

 

A novela familiar e a experiência com o inconsciente

Dr. Lorenz apresentou-se a Freud pedindo uma garantia no que concerne às condições para recuperar sua saúde psíquica. Por isso, queria de Freud uma declaração para que de posse desta, pudesse ser acreditado e, assim, pagar uma dívida a quem não devia. Supôs que Freud poderia findar o rumo de sua vida. E, sob este aspecto, não estava enganado, visto que, pela análise, Freud lhe devolveu os óculos, quer dizer, fez ver aquilo que é da ordem do inconsciente, depois de ter deixado em Freud a impressão de ter uma mente clara e sagaz. Devido a isso entra em cena o operador desejo do analista e, assim, Freud firma um contrato de trabalho.

A experiência analítica que aí tem lugar implica na ocupação de vários lugares por Freud na função da transferência. Esses lugares aparecem marcados quando Dr. Lorenz se dispõe a falar das diferentes marcas do seu sintoma. Esse par sintoma-transferência representa uma ponte de sentido por onde transitam: a) ratos e b) a dívida de jogo contraída pelo pai de Dr. Lorenz no Exército. Aliás, é dessa invenção sintomática que Dr. Lorenz se utiliza para colocar Freud diante de uma evidência da dívida, que permaneceu em aberto.

O que fica assim caracterizado é que, pela transferência, Freud (1909/1976) vislumbrou a possibilidade de curar seu paciente. O processo de cura, relacionado ao amor, expresso pela transferência, é o único meio adequado para curar a neurose, pois, ao ser posta em cena pela a regra da livre associação, a transferência propicia experiência com o inconsciente pela palavra. Com isso, o analista encontra-se na posição de escuta daquilo que é dito, destacando-se, assim, o que é assincrônico ao relato: defesas secundárias. Desta maneira, a posição de Freud é a de quem não esperava nada e só intervinha quando os derivados do inconsciente surgiam. Sendo assim, a transferência tem um ponto de amarração relevante do mesmo modo que a reconstrução, pois, através dessas operações, Dr. Lorenz não pôde exercer um controle sobre os conteúdos de sua fala, e ao falar incluiu-se naquilo que disse, além do que, às vezes, disse palavras que, aparentemente nada tinham a ver com o contexto do seu relato.

Em função da transferência, Dr. Lorenz demonstra para Freud que, no Exército, tornou-se o herdeiro de uma dívida e, por se tratar de uma dívida, obriga-se imperiosamente a pagá-la. Sobre a certeza do dever de pagar a dívida não há nenhuma dúvida, pois esta reside, então, em a quem pagar. Por este motivo, dívida e rato circulam através de um mesmo significante: Spielratte: a dívida do pai e o rato do castigo do capitão cruel. Da dívida, de dinheiro ou de amor, chega-se ao rato. É entre dinheiro e rato que se afigura outra ponte de sentido: Rate e Ratten. Por esses significantes transitam ratos e dinheiro. Para Dr. Lorenz, são elementos equivalentes, visto que associa a palavra ratos com dinheiro e também com contas. Desse tipo de associação, Freud (1909/1976) o interpela por duas vertentes: rato como palavra e rato como sintoma. Rato como palavra está implícito em dinheiro tantos florins, tantos ratos. Ratos como símbolo, relacionam-se com a sífilis transmitida pelo pênis e, também, com vermes e ânus.

Com essa roupagem forjada a partir dos ratos, configurada na dívida, Dr. Lorenz procura Freud para solucioná-la, mas acaba por contrair outra. Desta feita com Freud e com a causa analítica. Nesse sentido, afirma Freud (1909/1976, p. 202): "após atravessarmos uma série das mais severas resistências e das mais amargas injúrias de sua parte, ele não podia mais permanecer cego ao efeito esmagador da perfeita analogia entre a fantasia de transferência e o estado atual de acontecimentos passados".

É assim que Freud toma-se um credor, por fazê-lo abrir os olhos para ver certas coisas, já que seu olhar estava concentrado num único ponto: o tormentoso e ardente desejo de ver o corpo nu feminino (QUINET, 2002). Para não ver outras coisas, perde propositadamente os óculos, pois assim o conteúdo sexual de sua infância, entendido como atividade autoerótica, é despertado pela curiosidade. Todos esses arranjos executados com perfeição por Dr. Lorenz têm como objetivo situá-lo na dívida de natureza paterna, uma vez que o pai, mesmo tendo fracassado, apresentou-se, na sua infância, como o impedidor das atividades sexuais autoeróticas. Foi dessa forma, ou seja, ocupando o papel de oponente sexual, que seu pai lhe permitiu capturar uma imagem idealizada de forma mortífera.

Do grande impedidor ao grande covarde circula a ambiguidade do pai, ambiguidade essa em função da qual o pai de Dr. Lorenz é visto na condição de pai. Foi desse lugar de idealização maciça que seu pai lhe transmitiu a lei paterna, mas juntamente com esta, a dívida, configurada em termos de um delito, pois são a dívida e o delito do transmissor aquilo que justifica a lei transmitida. Esse aspecto da dívida desliza desde o valor do par de óculos até o valor dos honorários. Isto justifica a razão pela qual todo o material transferido em relação ao complexo monetário de Dr. Lorenz prendia-se à herança do pai. É como se Dr. Lorenz dissesse a Freud aquilo que imaginava ser uma mensagem do seu pai: deves terminar de pagar a dívida que não paguei, mas que, por não ser tua, não deves pagá-la; ou seja, cometa um delito. É isso que chega aos ouvidos de Freud, que agora no campo da transferência, transforma-se em credor, passando a receber sistematicamente uma quota, Rate, dessa dívida que nunca fora liquidada.

Nesse sentido, há um material transferido, o dinheiro, na transferência da dívida, e o rato, no trânsito pelo ânus, o que se mantém pela dificuldade em efetuar o pagamento. Essa dificuldade tem uma estreita relação com a perda dos óculos, que, como defesa, situa-se na polaridade ver e não ver. É interessante observar a esse respeito que, conforme destaca Bonnet (1981, p. 16), "o sintoma obsessivo, em suas fases, constrói-se pelo encontro de duas correntes: uma passiva em que o sujeito realiza o desejo presumido pelo pai e outra, ativa em que se opõe à realização desse desejo".

Pelo pagamento dos honorários a Freud e pela impossibilidade de liquidar a dívida paterna, por um lado, cumpria a lei, ao pagar uma quota da dívida e, por outro, a infringia cometendo o delito por não saldá-la em sua totalidade. Assim sendo, cumprindo a lei e ao mesmo tempo infringindo-a, tem-se, então, a dívida do Dr. Lorenz, como a de todo ser humano, como a dívida do Outro, ou seja, trata-se de uma Spielrate; a dívida paterna que encontrou no dispositivo psicanalítico um interlocutor apropriado. Pagar a dívida do pai, quer dizer, cumprir a lei, equivaleria, na nucleação neurótica, a Dr. Lorenz transformar-se em assassino do pai. Por esta razão, a dívida é um recurso que marca sua entrada no processo de simbolização, enquanto vertente paterna do sintoma, que, em Dr. Lorenz, tem certo destino a partir da eleição de um novo credor: Freud. Foi esta a via possível para o pagamento da dívida, visto que o seu amigo, ao garantir-lhe, na qualidade de confessor, que não era criminoso, só fazia intensificar essa dívida. Mas Freud não ocupou, nessa experiência, a posição de um confessor, nem um cobrador de dívidas na medida em que se dispôs a descobrir algo da impossível liquidação da dívida e o impasse insolúvel nas relações entre o dinheiro, crime de pensamento, o amor e a lei. Certamente, pela transferência, ocupou todas essas posições ao mesmo tempo sem fixar-se em nenhuma delas.

Ao se dirigir a Freud, Dr. Lorenz lhe transfere a dívida, transferindo-lhe, também, o papel de credor, bem como daquele que salda parte da dívida, pelo fato de ter sido Freud quem decifrou o contrato mítico original, ao formular que o sujeito devedor é o sujeito do desejo. Este é um entrecruzamento onde Freud se encontra tendo a dívida impossível de ser paga, o pagamento impossível e o pagamento que pode ser feito. É assim que o trabalho de Freud é uma construção mítica, que se faz por dois vetores: a dívida impossível de ser paga e o pagamento possível de ser realizado. Tanto a dívida quanto o pagamento, em Dr. Lorenz e em Freud não são apenas de dinheiro. Há a dívida de amor, principalmente para Dr. Lorenz. Mas há para ambos uma dívida de honra, articulada no âmbito da transferência, atualizadora de pontos em Freud e em Dr. Lorenz. Os fatos seguintes dão uma dimensão desta circunstância. Dr. Lorenz foi chamado de covarde no dia em que se deixou esbofetear por um colega da escola, após ter sido vítima de uma danosa afronta em um incidente relacionado à agressividade, contida por vergonha. Esse episódio de Dr. Lorenz (ser esbofeteado) pode ser comparado a outro envolvendo o próprio Freud, seu pai e sua origem: o fato de ser judeu e o incidente relatado na Interpretação de sonhos, quando Freud se propõe a analisar seus sonhos de ambição e seu desejo de ir a Roma (FREUD, 1900/1976).

O episódio vivido pelo seu pai é sentido por Freud como uma conduta não heróica por parte do grande homem que julgava sê-lo. Desse modo, pode-se pensar também que há em Freud uma dívida contraída pelo seu pai em função de seu pai ter agido de forma submissa. Certamente é essa dívida moral que leva Freud a ser movido, em pensamentos, por atitudes relativas à vingança. Isso pode ser equiparado ao esquecimento proposital de Dr. Lorenz, de seus óculos, o que também representou uma forma de pagar a dívida do pai. Existe também outro ponto a ser questionado em termos do entrecruzamento transferencial entre Freud e Dr. Lorenz: o nome próprio de Dr. Lorenz era Ernst, mesmo nome do filho de Freud, que escapou por pouco da morte em 1915, durante um combate no qual um pelotão fora todo dizimado. Em ambas as circunstâncias, trata-se de um filho herdeiro de uma dívida que não fora paga pelo pai. No caso de Freud, a dívida paterna veiculava-se pelo boné caído na rua, mas que foi apanhado. Tanto na situação do pai de Freud, quanto na do pai de Dr. Lorenz, trata-se de um pai humilhado e de uma humilhação remota transmitida de forma mítica, oracular. Em certo sentido, essa dívida é passada como um legado ancestral revelada em termos de anterioridade. A única variação encontra-se nos trajetos da dívida até chegar às mãos do destinatário. Em Dr. Lorenz, foi o próprio sujeito que sofreu a injúria (bofetada), a qual é substituída pelo episódio do esquecimento dos óculos. Todavia se trata de uma dívida de honra contraída pelo pai no jogo.

A ofensa sofrida, transmitida e repetida coloca ambos, pai e filho, em uma posição humilhante de serem sodomizados, o que se constata na circunstância de estarem por baixo, movimento bastante presente nos relatos de Dr. Lorenz, o que corresponde, em termos de representações sexual, a uma situação de passividade. Essa passividade diz respeito à posição do sujeito diante do pai idealizado. Desse modo, fica evidenciado em Dr. Lorenz o sentido do longo percurso que constrói pela sua obsessão na tentativa de chegar às suas origens.

No trajeto de Freud, tem-se a injúria sofrida pelo pai, boné caído na rua, mas que, ao contrário dos óculos esquecidos por Dr. Lorenz, foi apanhado. Essa humilhação foi transmitida pelo Sr. Jacob a Freud através de um relato, de certo modo, simbolizável, que adquiriu, certamente, a forma mítica de uma dívida de honra. Aqui cabe lançar uma indagação: o que fez Freud com essa herança? Em princípio, há, em Freud, o desejo por uma atitude de heroísmo, representada por uma viagem a Roma. Mas o elemento que circula entre Freud e Dr. Lorenz é o desejo de vingança que inclui o desejo de morte de um adversário não confessado.

Em suma, em relação ao cruzamento, entre analista e analisante, pelo viés das transferências, Freud ocupa os seguintes lugares: a) pai como objeto de identificação, tratandose de um pai ferido na sua honra, maculado na dívida de jogo não paga, conformando-se, assim, a herança da passividade; b) o agressor, representando o capitão cruel a quem é preciso pagar a dívida e ao mesmo tempo não pagá-la com a nova dívida, a dos óculos; c) o pai de Ernest, aliás de dois Ernst: o analisante, pela transferência, e seu filho; e d) o próprio filho, em um laço identificatório de Freud a Dr. Lorenz, herdeiro passivo da ofensa sofrida pelo pai.

Elementos de uma trajetória na constituição de uma memória

Como podemos depreender, nas questões de natureza clínica, Freud centra suas observações desde os primeiros momentos de sua escuta atentando para os aspectos relativos à sexualidade. A esse respeito, destaca que a vida sexual de Dr. Lorenz teve início a partir da aproximação com as governantas, especialmente Freulein Peter, no momento em que afloravam todas as manifestações da cena edípica. É fato curioso que Freulein Peter teria dito a Paul (haveria aqui alguma relação entre o nome Paul escolhido por Freud e o nome da governanta?) que poderia tocar seus órgãos genitais desde que nada fosse falado. São essas primeiras explorações realizadas por Paul que constituem o pivô do seu desejo de ver mulheres nuas. Quando Paul passa a pensar na nudez de Freulein Peter, essa nudez é certamente referente à nudez materna, que seria, sobremodo, mais crítica, visto que o desejo de ver a mãe nua está vinculado às suas intenções parricidas recalcadas. Aliás, a relação de Paul com Freulein Peter representa o protótipo da conjunção entre os pensamentos sobre temas de natureza sexual e o castigo que é objeto de tais pensamentos ou de ações que se voltem para tais conteúdos (como a mordida na governanta e o castigo aplicado pelo pai). Por outro lado, ter tais pensamentos, bem como imaginar que seus pais os conhecem, configura-se como um pedido de intervenção paterna.

Ainda nos informa Freud (1909/1976) que, após a saída de Freulein Peter, esta teria sido substituída, como governanta e como objeto sexual, por Freulein Lina, figura que é central na constituição das ideias obsessivas de Dr. Lorenz. Particularmente, porque Freulein Lina ao se casar recebeu o nome Hofrat. Possivelmente, este Rat do seu nome vai se ligar, nos pensamentos de Dr. Lorenz, aos abcessos que Freulein Lina tinha nas nádegas e ao fato de que os espremia em sua presença. Também, tem-se aqui, em Dr. Lorenz, o protótipo do prazer por haver desfrutado de espetáculo. Aliás, não é sem motivo que seu sintoma constitui-se como relação à uma temática anal, retratando o prazer pelo olhar.

Na reconstituição de Freud da situação tem-se uma referência a um olhar de desejo, que pela culpa suscitada, leva à perda proposital dos óculos, já que este é o único objeto que indica tanto o olhar quanto o objeto relativo a esse olhar. É neste tipo de atitude, o olhar, que Dr. Lorenz se fixa em função do comentário de Freulein Lina, de quem ouviu algo que o comparava, pela vertente da inferioridade, ao seu irmão mais novo, quem, segundo a governanta, não falharia. O falhar é falhar sexualmente. Por isso, em Dr. Lorenz, aparece a recusa pela prática sexual devido à culpa configurada ante a possibilidade de Freulein Lina vir a deixar-lhe, conforme aconteceu com Freulein Peter, quem o iniciou na vida sexual e que depois foi castigada ao ser obrigada a deixar a casa. É exatamente após a saída de Freulein Peter que Dr. Lorenz passa a se queixar de que seus pais sabiam seus pensamentos.

Ainda com referência a esta temática sexual com mulheres, há um aspecto relevante, pois Dr. Lorenz, diante de suas preocupações com suas ereções, vai se queixar à sua mãe. Claro está que procura a mãe como procurou a governanta, para olhá-la, porque teria julgado que sua mãe pudesse lhe oferecer alguma solução para este tipo de situação. Mas que tipo de solução uma mulher pode oferecer a um homem em uma situação dessas, senão o gozo? Sendo assim, o caráter edípico da situação vivida com Freulein Lina, por deslocamento em relação à mãe, e os temores que daí suscitam, encontram-se articulados pelo desejo de morte da irmã que, como o pai, poderia fazer algo com as governantas sem lhe causar danos, já que em seus pensamentos, Dr. Lorenz, pelo fato de desejar um gozo, se considerava portador de moléstias, no caso, suas ereções.

Não obstante, uma vertente explicativa da situação edípica, não menos importante, concerne nem a Freulein Peter nem a Freulein Lina, mas sim à irmã mais velha de Dr. Lorenz em sua articulação com o episódio da mordida da governanta entre três e quatro anos. Por esse ato, foi castigado pelo pai, possivelmente, nas nádegas, o que teria desencadeado em Dr. Lorenz o desejo de morte. É neste ódio ao pai que se fixa em relação à morte de uma mulher, neste caso, sua irmã mais velha. Assim sendo, a culpa sexual de Dr. Lorenz pela mordida culmina com a morte de uma mulher, morte que se relaciona ao pai e que é desejada por Dr. Lorenz, pois a mordida, culpa sexual e desejo sexual, se vinculam com nádegas, lugar da olhada suscitada pelo desejo. É nesse tipo de entroncamento que, para Dr. Lorenz, desejar uma mulher é desejar a morte do pai. É bastante significativa essa circunstância de exibição fálica ao pai morto, o que se reflete no objetivo de manter-se como um ser fálico perante esse referente paterno, mas marcado por uma passividade. Assim se configura a vertente sádica que se expressa na preocupação de morte de duas pessoas queridas: o pai e a jovem por quem Dr. Lorenz nutria um sentimento amoroso. Cabe salientar que essa moção de ódio não era admitida e nem sequer pensável pelo analisante, mas que aparece de inúmeras formas, inclusive no contexto da neurose de transferência quando o analista foi colocado na posição de capitão cruel.

Prolegómenos para uma conclusão

O ponto de partida nesta reflexão foi uma pergunta: qual o desejo de Dr. Lorenz? A esse respeito, Freud nos aponta que o fator principal de sua doença teria sido seu sentimento pela morte do pai. A culpa, no presente, revela que, em épocas remotas, cenário infantil da situação edípica, houve o desejo de morte do pai; desejo esse que se mantém, em nível inconsciente como indestrutível, e que é substituído por um amor apaixonado sob a égide de um medo expresso, para o doutor na seguinte possibilidade: agora posso estar perdendo o que mais amei. Com isto, Freud, duvidando do encobrimento apresentado por esse amor, sabe que há uma fonte pela qual o ódio pode fluir. Trata-se, pois, de uma ideia recalcada, que reaparecia em diferentes períodos de sua vida. Através desta ideia, Dr. Lorenz via seu pai como interferência à realização de sua vida sexual.

A ligação de Dr. Lorenz com essa questão suscita, em relação à figura paterna, a construção de vários substitutos: o amigo de juventude, o amigo atual e Freud, já que construiu uma fantasia, pela qual imaginava que Freud lhe queria como genro. É partindo dessa relação com Freud que tenta repetir a história paterna: dúvida entre a moça rica e a moça pobre e a dívida a pagar, sendo estes elementos apresentados na sustentação do seu sintoma com referência aos ratos, enquanto conteúdos de analidade. A questão da analidade se comporta na trama que a mantém.

O relato do castigo, a repugnância e o terror decorrentes em Dr. Lorenz, denunciam um gozo ignorado. Como entender essa trucagem, gozo e terror, de outra maneira, senão como aquela que revela tratar-se de algo do campo do inconsciente? O conflito entre desejo inconsciente e os seus sofrimentos conscientes se apresenta para Freud como fundamental no que tange à compreensão da estrutura neurótica, a saber, o recalque, o que explica a trucagem acima como sendo prazer em um lugar e desprazer no outro, o que é o resultado da falha dessa operação, fazendo com que a quota de afeto se transforme em angústia e autocrítica. Esse conflito é também organizado pela falha da função paterna, principalmente porque o pai teria falhado em relação ao dever com a situação de um pai morto que nunca acaba de morrer. Ver a questão por esse prisma, significa dizer que todo o ângulo da organização de uma obsessão tem a ver com função paterna. Por esta razão, a dívida do pai assume importância ao se referir à dívida relativa à situação de todo ser humano, a saber, a dívida simbólica com o pai como o agente que barra o gozo da mãe com a criança. O desencadeamento dessa dívida fez Dr. Lorenz reativar o mito familiar. Mas, ao se impossibilitar de pagá-la, assume para si a dívida que o pai deixou de pagar. Em certo sentido, as atitudes do pai de Dr. Lorenz contrariam seu discurso moralista (dívida de gozo e casar por dinheiro), o que o colocou em uma posição de ter que cumprir uma lei que o pai transgrediu.

Essa falha do pai, faz com que Dr. Lorenz sofra de visão dupla, pois, ao se colocar em um dado lugar, a consciência cai em outro e vice-versa. Com o pai, a situação era também dupla: representante da lei e falho como representante em função das dívidas. A dívida não se inscreve em uma história própria, mas marca a construção de um mito, pela falha da castração simbólica. Em função dessa falha, a morte do pai é vivida de uma forma delirante, na qual este aparece para Dr. Lorenz, para lhe dar ordens. Trata-se da necessidade de Dr. Lorenz de poder matar o pai com a onipotência de seus pensamentos. Mas há nisso um engodo, uma vez que Dr. Lorenz consegue apenas uma reduplicação da situação: o pai já está morto e, assim, não pode mais matá-lo. Nessas condições, o pai não lhe possibilitou de forma adequada um nome para que Dr. Lorenz escrevesse sua própria história. Portanto, teria estabelecido com o pai uma relação apenas imaginária, visto que o seu pai está morto.

O fato de o pai estar morto impediu a Dr. Lorenz a inscrição na tematização da castração simbólica, uma vez que, para tanto, faz-se necessário a morte do pai. É essa morte que permite ao sujeito entender o funcionamento da linguagem, sendo também possível reconhecer o lugar que o pai ocupa na transmissão de um conjunto específico de emblemas. No caso de Dr. Lorenz, seu pai apenas os transmite em torno da função paterna, mais precisamente, da maneira como essa função falha, organizou-se o complexo de sintomas apresentados por Dr. Lorenz, uma vez que a dificuldade de instauração do pai simbólico como peça-chave na construção de uma história o fez cair obrigatoriamente em uma vertente mítica, na qual se constata uma mera repetição da trajetória do pai e não uma identificação em relação ao mesmo.

Por esta razão, Dr. Lorenz constrói um sintoma na posição de um outro (o sintoma é dívida do pai e a dúvida sobre a paternidade). Ocupa também o sintoma uma posição que não modifica as regras do jogo, seja sempre sintoma, portanto, ponto de reconhecimento do pai. Esse Outro constituído como forma de buscar reconhecimento do pai ao ser mediado pela dúvida, acaba por encobrir a falta que Dr. Lorenz, pela sua obsessão, tenta mascarar, mas que se manifesta abertamente como gozo na relação com Freud, na enunciação dos honorários que se desdobra em uma fórmula mágica: tantos florins, tantos ratos.

Ao criar uma moeda de valor simbólico, o rato, Dr. Lorenz efetua um afastamento em relação à sua passagem pela castração, mas, ao se portar dessa forma, o que é atingido é sua condição de existência, pois ao tentar escapar da castração se fazendo morto, o obsessivo acaba por não existir. Isto fica patente em Dr. Lorenz quando decide fixar-se na dívida do não existir a respeito de um pai mítico, configurada em termos de impossibilidade. A temática da impossibilidade é também estendida à mulher amada, visto que esta, sendo estéril, não teria condição de fazer Dr. Lorenz sair da posição de filho e ocupar o lugar de pai. De resto, gostaria de ser pai, mas sua amada não podia ter filhos e o pai não lhe possibilitou a elaboração do seu lugar de filho. Todo esse arsenal de argumentos é útil para apontar qual é o desejo do obsessivo. A rigidez, a preocupação com a certeza, a perfeição absoluta foram os fatores que, entre outros, lhe impossibilitaram qualquer forma de realização. Por isso, quer pagar a quem não deve, não quer pagar a quem deve, quer ter filhos com uma mulher estéril. Assim sendo, seu desejo é o desejo de ser incompleto. Ter um desejo incompleto é, então, um tipo de escolha para tentar dar suporte ao desejo insatisfeito de origem materna.

 

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