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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.3 no.2 Rio de Janeiro July./Dec. 2011

 

RESENHAS

 

As palavras passarinhas de Lívia Garcia Roza

 

 

Lúcia Bettencourt

Escritora

 

 

Resenha do livro: Faces. GARCIA-ROZA, Livia. Rio de Janeiro: Record, 2011.

A Livia prova que existe vida inteligente e literária nas redes sociais.

Curtiu? Eu curti! (Ivana Arruda Leite)

Um novo livro de Lívia Garcia-Roza é sempre motivo de alegria para mim. Sei que encontrarei mais daquilo a que ela já me acostumou a encontrar em seus romances e contos: sensibilidade, humor e reflexão profunda sobre as questões humanas. Faces, com seu formato inusitado, foi uma surpresa. Ao invés das longas histórias, pequenas "pílulas" que, uma vez lidas, se desenvolvem em muitas considerações. Na verdade, sendo sua "amiga de Facebook", já estava habituada a seus brilhantes micro-contos, que me provocam sempre alguma reação. Só não sabia é que suas postagens no Facebook estavam alimentando um livro, charmoso e inteligente, subdividido em temas como: crianças; família; cotidiano; psicanálise; literatura e pensatas.

 

 

Fruto de exercícios cotidianos na internet, Lívia Garcia-Roza escolheu alguns de seus melhores aforismos e axiomas para comporem um universo construído a partir apenas de palavras. Não existe construção de personagens, não existem grandes acontecimentos, nenhuma trama a ser seguida, pouquíssima ação. O que temos é a frase, concisa. O comentário carregado de humor e muitas vezes de ironia. Um punhado de dados acumulado numa mídia instantânea, orientada para o desabafo do banal. Talvez por isso uma outra grande autora desses nossos dias, Zadie Smith, se oponha ao Facebook, dizendo: "Quando um ser humano se torna um conjunto de dados em um site como o Facebook, ele se reduz. Todos os seus aspectos se restringem. O caráter. As amizades. A linguagem. A sensibilidade". Obviamente que essa é a opinião contraria à de Lívia, cuja sensibilidade, trabalhada pelos seus anos de prática psicanalista, compreende e prova que: "O que o mundo nos oferece são os acontecimentos. E os acontecimentos [...] em si são ordinários, no sentido do cotidiano. E a internet está lidando bem [...] com esses pequenos comentários porque a vida, na verdade, é essa miudeza".

Examinando essas miudezas, a autora consegue transmitir, por exemplo, com concisão admirável, o caráter de cada membro da família a partir de suas reações à simples declaração:

- Estou com um cisco no olho!

- Que incômodo terrível! - disse meu pai.

- Já pingou colírio? - perguntou mamãe.

- Que saco! - exclamou meu irmão.

- Oh... - lamentou vovó.

- Não dramatiza! - disse minha filha.

- Você deve ter tido um cisco, coçou o olho, irritou-o, e a impressão continua - concluiu meu marido".

Ou, desenhar, na parte dedicada à psicanálise, o terapeuta e sua paciente com sucintas palavras:

"A atriz, em pose provocante no divã, perguntava:

- O senhor já me viu representar?

- Fora daqui? - disse o analista".

 

 

Na parte intitulada cotidiano, destaco o delicioso humor que a autora sublinha:

"Na fila da vacina perguntavam para um velho que queria uma cadeira para se sentar, o que ele tinha. 97 anos, respondeu".

Por essas amostras que destaco, é possível começar a curtir as postagens inscritas em Faces. O livro tem muito mais, e, em seu conjunto, constitui-se numa inteligente e criativa reflexão sobre os diversos aspectos da vida. Claro que podemos, mais uma vez, citá-la para avisar que "é na imaginação do leitor que o livro acaba de ser escrito".

Mas não se enganem com esse formato despretensioso pois essa "mulher é um luxo verbal"!