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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.3 no.2 Rio de Janeiro July./Dec. 2011

 

ARTES

 

Nota sobre as fabulações psicanalíticas de Louise Bourgeois

 

 

Tania Rivera

 

 

"A auto expressão é uma defesa."

Louise Bourgeois

 

No discurso lido por sua filha Anna na cerimônia de recebimento do prêmio Goethe da cidade de Frankfurt, Freud afirma que a psicanálise poderia "pôr em evidência novas correlações nesta obraprima de tecelagem que se desenvolve entre as predisposições pulsionais, as experiências vividas e as obras de um artista".1

 

 

Entre esses três planos, para que seja possível tecer relações, pressupõe-se diferença, distância. Em contraponto, a artista francesa radicada nos Estados Unidos Louise Bourgeois dedicou grande parte de sua longa existência, interrompida em 2010 aos 98 anos, a misturá-los. Ao tentar tornar indiscerníveis vida e arte, ela se alinhava a uma importante preocupação das vanguardas da primeira metade do século XX, e tornavase, na década de 1980, um dos mais importantes nomes do chamado "novo subjetivismo" na arte contemporânea.

 

 

A exposição de Louise Bourgeois O Retorno do Desejo Proibido, vista recentemente em São Paulo e no Rio de Janeiro, tem como eixo central a tese de que boa parte da produção da artista decorre diretamente de sua análise. A publicação, como parte do Catálogo desta exposição, de anotações variadas feitas ao longo de décadas com o título "Escritos Psicanalíticos", é o ato final desta mistura arte/vida.

Este ato é tanto mais significativo por se realizar praticamente no momento de sua morte. Isso sugere que Louise se ausenta, sempre, de alguma maneira - como ela anota em 1957, "nós existimos principalmente por nossa ausência".2

 

1

A concepção curatorial desta retrospectiva baseia-se no pressuposto de uma relação direta e unívoca entre a obra de Bourgeois e o campo da psicanálise. Os trabalhos nela apresentados, como defende sua curadoria, deveriam ser vistos como "formas simbólicas" com "raízes psicanalíticas".3

Tomar como um dado a identidade entre os elementos do trabalho da artista e a psicanálise é, por um lado, levar a sério, ou encarar de forma literal, a clara presença de elementos de psicanálise nas falas e escritos da artista a respeito de algumas obras. Por outro lado, é ignorar a reflexão que seu trabalho artístico realiza, nele mesmo, a respeito da questão da identidade. Esta é desfeita e explorada como múltipla e distorcida, como por exemplo em Cell XXIV (retrato, 2001), presente na exposição. Nesta "célula", rostos duplos são costurados em trio e disseminam-se em inúmeros pontos de vista graças a dois espelhos duplos, fazendo ângulo, na parte inferior da caixa. Onde está a imagem, o reflexo "correto"? Que identidade?

 

 

Não se trata de subjetivismo acrítico, em Louise Bourgeois. Sua obra não é seu retrato fiel, mas distorção, exploração da linguagem, do objeto, da imagem, de modo a fazer outra coisa, fora dela mesma (do íntimo, retomar o êxtimo). Entre sua vida, suas "disposições pulsionais" e suas obras, não se trata de encontrar fortes fios à espera de serem trançados em um tecido resistente (e capaz de tudo encobrir). Trata-se de fios roídos, de lã que se desfaz, de ligações nãolineares, de buracos, rasgos e remendos. O tecido está esgarçado, já nasceu velho, puído.

 

2

Esta exposição revela e põe em primeiro plano este fato até agora encoberto, tomado como incerto, jamais assumido: Louise Bourgeois fez análise durante vários anos. Seu analista foi Henry Lowenfeld, entre 1952 (após algumas sessões com um outro analista, Leonard Cammer) e 1966, e ela continuou a vê-lo, de modo esporádico, até 1982. Talvez não por acaso, esse alemão, que frequentava a Sociedade Psicanalítica de Viena antes de emigrar para os EUA, havia nela apresentado um escrito que se tornaria um clássico sobre a dinâmica psíquica do artista. Nele, o psicanalista propõe que o artista seria um traumatófilo: ele buscaria incessantemente o trauma, e muitas vivências não traumáticas para outras pessoas para ele tomariam valor de trauma.

 

 

Escrito quinze anos antes de Lowenfeld começar a receber Bourgeois em seu consultório, este texto parece por vezes, estranhamente, falar dela (como li outro dia em um blog falando sobre a artista: "a dor é meu negócio").

 

3

Mas obras de Bourgeois só aparentemente ilustram conceitos psicanalíticos. Elas não são propriamente decifráveis pela psicanálise, mas recorrem literalmente ao campo psicanalítico, com muita liberdade nas alusões e referências, para falar do homem e de sua relação com o outro (como talvez sempre tenha feito a arte).

Diante delas, a psicanálise perde sua (falsa) potência de decifracão. O que haveria a decifrar diante de um trabalho como A Destruição do Pai (1974), objeto tridimensional que se apresenta como uma espécie de palco reduzido, com formas oblongas em seu "piso" e seu "teto", e objetos menores, do mesmo material, no centro da superfície inferior? Para Larrat-Smith, esta obra fecha o "período psicanalítico" de Bourgeois. Sobre ele a artista declara:

Há uma mesa de jantar e pode-se ver que acontecem vários tipos de coisas. O pai está se pronunciando, dizendo à plateia cativa como ele é ótimo, todas as coisas maravilhosas que fez, todas as más pessoas que prendeu hoje. Mas isso acontece dia após dia. Uma espécie de ressentimento cresce nas crianças. Chega o dia em que elas se irritam. Há tragédia no ar. Ele já fez demais esse discurso. As crianças o agarram e o põem sobre a mesa. E ele se torna a comida. Elas o dividem, o desmembram e o comem. E assim ele é liquidado.4

 

 

Trata-se, é óbvio, de uma versão ficcional do mito elaborado por Freud em "Totem e Tabu" - esse que já era uma ficção necessária para que se conceba a organização estrutural do sujeito em sociedade. Ficção sobre ficção, fabulação sobre mito, a referência da artista à psicanálise se dá menos como apresentação simbólica de conceitos psicanalíticos do que como citação quase literal.

Não há nada a ser descoberto porque tudo já é encobrimento. Tecido sobre tecido. (Seria toda imagem, toda arte sempre lembrança encobridora? - nos faz perguntar Bourgeois).

Mas entre os fios que encobrem há buracos, e o tecido às vezes revela-se um bordado. Como diz a artista em um trabalho sugestivamente chamado Ode ao Esquecimento: "Tive um flashback de algo que nunca existiu."5

 

 

1 Freud, S. "Goethe-Preis 1930. Brief an Dr. Alons Paquet". In Gesammelte Werke, Londres: Imago, 1948, vol. XIV, p. 550. Tradução nossa.         [ Links ]
2 Louise Bourgeois: O Retorno do Desejo Proibido. Vol. II: Escritos Psicanalíticos. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2011, p. 49.         [ Links ]
3 Ibid., contracapa do vol. I.
4 Bourgeois, L. Destruição do Pai. Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas 1923-1997. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 115.         [ Links ]
5 Louise Bourgeois: O Retorno do Desejo Proibido. Vol. I. Op. cit., p. 77.         [ Links ]