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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versión On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.1 Rio de Janeiro enero/jun. 2012

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

As neuroses de guerra e traumáticas: respostas do sujeito à barbárie

 

The war and traumatic neurosis: the subject's responses to barbarism

 

 

Ana Augusta Brito Jaques

Doutoranda em Psicanálise (UERJ), Mestre em Sociedade, Saúde e Psicanálise (UVA), especialista em Psicologia Clínica (PUC-RJ), Militar do Exército Brasileiro, psicanalista. Ana.lucchezi@terra.com.br

 

 


RESUMO

No estado de guerra, a quebra dos imperativos de lei resulta na banalização da violência dirigida ao outro e da morte, o que afeta diretamente o limite das ações que sustentam ou destroem o laço entre os povos. Nesse cenário tão adverso, a experiência traumática inunda o aparelho psíquico, num excesso pulsional inassimilável, e deixa o sujeito submergido no trauma, na neurose, sem condições de simbolização, refém da repetição compulsiva do acontecimento danoso. Diante da angústia devastadora do psiquismo, a análise dos sujeitos neurotizados pela guerra é uma necessidade urgente. Nesse sentido, a Psicanálise oferece uma escuta diferenciada por ser balizada pela ética do sujeito do inconsciente.

Palavras-chave: Trauma; Neurose de guerra; Pulsão de vida;. Pulsão de morte.


ABSTRACT

In a state of war, the breaking of law results in the trivialization of death and violence towards the other, and this affects the limits of actions that strengthen or destroy bonds among peoples. In such scenery, the traumatic experience invades the psyche submerging the subject into trauma, neurosis, leaving no conditions for symbolization; the subject, then, becomes a hostage of the compulsive repetition of a negative happening. Because of the devastating anguish of the psyche, the analysis of neurotized subjects is an urgent necessity. In this sense, psychoanalysis provides a distinct opportunity for listening, marked by the presence of the ethics of the subject of the unconsciousness.

Keywords: Trauma; War neurosis; Sexual drive; Death drive.


 

 

As neuroses de guerra e traumáticas: respostas do sujeito à ba rbárie

"O pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro reduzi-lo a palavras gastas. Nele, cada noção possui vida própria. É o que se chama precisamente dialética" (LACAN, 1953).

 

 

Em psicanálise, a noção de neurose de guerra está ligada ao conceito trauma quando derivado da violência cruel e quase sempre assassina do outro. Todo o trauma é uma violência, sexual ou não.

Freud escreve sobre neurose de guerra em vários textos de sua obra. Na Conferência XVIII, dos anos 1916 e 1917, intitulada Fixação em traumas - o inconsciente, Freud (1917, p. 324) faz uma analogia entre a neurose e a neurose de guerra ou traumática, dizendo que que em ambos os casos há um ponto de fixação traumático. Assim, escreve:

As neuroses traumáticas não são, em sua essência, a mesma coisa que as neuroses espontâneas que estamos acostumados a investigar e tratar pela análise; até agora, não conseguimos harmonizá-las com nossos pontos de vista, e espero, em alguma época, poder explicar-lhes a razão desta limitação (Ibid.).

Com efeito, Freud estabelece uma diferenciação entre a neurose traumática e a neurose, sendo que a expressão "em alguma época" só será melhor elucidada, como veremos mais adiante, por ocasião da publicação de Além do princípio do prazer, em 1920. Ainda na conferência de 1917, Freud reitera que, apesar do que diferem quanto à qualidade do trauma - estruturante, na neurose, e não estruturante, nas neuroses de guerra -, há algo de interseção entre elas. Mas não abre mão de observar que nem toda fixação conduz necessariamente a uma neurose, mas que "toda neurose inclui uma fixação" (Ibid., p. 326).

As neuroses traumáticas dão uma indicação precisa de que em sua raiz se situa uma fixação no momento do acidente traumático. Esses pacientes repetem com regularidade a situação traumática, em seus sonhos; [...] É como se esses pacientes não tivessem findado com a situação traumática, como se estivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda não executada" (Ibid., p. 325).

Na atribuição que Freud lhe confere, percebemos permanecer o valor econômico inerente ao trauma, postulado como algo resultante do excesso impossível de ser elaborado pela via da normalidade, resultando em perturbações que se repetem notadamente nos sonhos. Freud (1917) escreve que "a neurose poderia equivaler a uma doença traumática, e apareceria em virtude da incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo fosse excessivamente intenso." (Ibidem).

O valor do momento traumático é ressaltado por Freud, tendo em vista a importância do fator susto e da consequente fuga para a doença. Freud comenta que a fuga para a doença traz um "ganho secundário", exemplificando-o com o caso do operário que sofre uma mutilação num acidente de trabalho, sendo aposentado por invalidez. A partir daí, o operário inválido passa a explorar a própria mutilação pedindo esmolas. Essa exploração é considerada por Freud como ganho secundário derivado na doença. Lembramos o que está escrito na Carta 76, de 18 de novembro de 1897, na qual Freud se refere aos motivos em ação que levam à aceitação da doença e afirma que a doença só se instaura "quando a libido aberrante, tendo-se aliado a esses motivos, encontra, por assim dizer, um desdobramento real." (MASSON, 1986, p. 284). Nesse sentido, a neurose traz vantagens ao eu, o qual aceita-as, para depois verificar o negócio que fez, porque, como diz Freud (1917, p. 447), "ele pagou caro demais por um alívio do conflito, e os sofrimentos ligados aos sintomas são, talvez, um substituto equivalente dos tormentos do conflito."

Com a eclosão da I Guerra Mundial, as implicações dela decorrentes interromperam parcialmente a clínica de Freud. Essa foi uma época de pausa imposta pelas circunstâncias ameaçadoras da guerra. Durante esse período, Freud inicia a produção de importantes textos para a psicanálise, como Além do princípio do prazer (1920) e Psicologia de grupo e a análise do eu (1921). Além da pausa imposta à clínica, Freud precisou enfrentar uma rajada de preconceitos contra suas ideias sobre o tratamento que propunha às neuroses traumáticas. Na Conferência XXVIII (1917, p. 538), intitulada Terapia analítica, escreve:

Nada pode ser feito contra os preconceitos. Isso os senhores podem constatar novamente, hoje em dia, nos preconceitos que cada grupo de nações em guerra desenvolveu contra o outro. A coisa mais sensata a fazer é esperar e deixar tais preconceitos aos efeitos da erosão do tempo. Um dia, as mesmas pessoas começam a pensar acerca das mesmas coisas de uma maneira diferente de antes; e a razão por que não pensavam dessa maneira, anteriormente, continua sendo profundo mistério.

Freud viu ser constatado o seu pensamento quando, em setembro de 1918, em Budapeste, realizou-se o V Congresso Psicanalítico Internacional, o qual incluiu em sua programação um simpósio com o tema A psicanálise das neuroses de guerra, cujos autores, Ferenczi, Abraham e Simmel, todos psicanalistas, trabalhavam com o assunto. Nesse congresso, estiveram presentes representantes oficiais do exército austríaco, dada a elevada incidência dos neuróticos de guerra e devido às notícias que circulavam sobre o método freudiano de tratamento das neuroses.

Em 1919, no texto Introdução a A psicanálise e as neuroses de guerra, Freud (p. 260) reitera que a neurose nasce "de um conflito entre o eu e as pulsões sexuais que este repudia". Ainda nessa época, enfrentava os preconceitos a que nos referimos no início deste texto, pelos quais seus opositores bradavam que a teoria psicanalítica não se aplicava às neuroses de guerra. "Os oponentes da psicanálise, cuja aversão à sexualidade é evidentemente mais forte do que a sua lógica, apressaram-se a proclamar que a investigação das neuroses de guerra desmentiu finalmente essa parte da teoria psicanalítica", escreve Freud (Idem). Diante disso, assinala que: "se a investigação psicanalítica das neuroses de guerra (e uma investigação muito superficial) não demonstrou que a teoria sexual das neuroses é correta, isto é algo muito diferente de mostrar que aquela teoria é incorreta." (Idem).

Ainda no texto de 1919, Freud define as neuroses de guerra como neuroses traumáticas "que se distinguem das neuroses comuns por características particulares" (Ibid., p. 261). Segundo ele, as neuroses de guerra são neuroses traumáticas desencadeadas por um acontecimento traumático ou provocadas por um conflito no eu. A base desse conflito é formada pela situação de risco experimentada no campo de batalha. Nessa situação, o eu pacífico foge para a doença, se defendendo do eu bélico, do qual derivam ameaças à vida do eu pacífico. Compreendemos o campo de batalha como o solo que nutre as neuroses de guerra, posto que elas são o resultado dos efeitos de um perigo mortal. Diz Freud (Idem) que "as neuroses de guerra são apenas neuroses traumáticas, que, como sabemos, ocorrem em tempos de paz também". Assim sendo, nos tempos de paz ou de guerra, o eu defende-se da ameaça provocada pelo inimigo externo - a violência -, ou da ameaça interna - a libido -, a qual impele ao eu, como um ultimato, a urgência de satisfação pulsional. Parece-nos que, para o eu, sitiado por tais circunstâncias, resta senão buscar abrigo na neurose, esta sempre traumática em sua etiologia.

 

 

Em 1920, em Além do princípio do prazer, reformula definitivamente a teoria do dualismo pulsional. Entra em cena a compulsão à repetição característica da pulsão de morte. Freud observa aquele mecanismo nos sonhos dos neuróticos de guerra, o que lhe permite avançar mais um passo em torno do conceito de neurose de guerra. O autor não acredita que a angústia possa produzir neurose traumática, porque "nela existe algo que protege o sujeito contra o susto e, assim, contra a neurose" (FREUD, 1920, p. 24). No quarto capítulo desse mesmo texto, descreve como traumáticas as quotas de afeto excessivas capazes de romper o escudo protetor do sujeito. Freud utiliza o modelo da vesícula viva para explicar o que vem a significar tal escudo, onde o sujeito seria morto se não dispusesse de tal aparato defensivo do aparelho psíquico, sendo esta a sua finalidade. Freud (Ibid., p. 43) afirma que:

o escudo protetor é suprido com seu próprio estoque de energia e deve, acima de tudo esforçar-se por preservar os modos especiais de transformação de energia que nele operam, contra os efeitos ameaçadores das enormes energias em ação no mundo externo, efeitos que tendem para o nivelamento deles e, assim, para a destruição.

Freud atribui a importância etiológica da neurose traumática ao susto, àquilo que ameaça a vida. Primeiro, isso significa dizer que a psicanálise se preocupa com os efeitos produzidos pelo excesso traumático, muito mais que os danos físicos diretos provocados pelo acidente traumático. Segundo, há algo de inassimilável na experiência traumática. A ameaça à vida representa ameaça ao inconsciente, o qual não crê na própria morte. Diz Freud (Ibid., p. 45) que "um acontecimento como um trauma externo está destinado a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da energia do organismo e a colocar em movimentos todas as medidas defensivas possíveis." Parecenos que a falha na tarefa defensiva do escudo protetor permite que o aparelho psíquico seja inundado com grande carga de afeto traumático, colocando o princípio do prazer fora de ação temporariamente. Tais apontamentos nos remetem ao trauma sofrido pela criança mediante os cuidados maternos, tendo em vista que, naquele momento, o bebê não dispõe de aparelho psíquico suficientemente estruturado para suportar a carga de afeto inerente à erotização do seu corpo pela mãe. Isso nos leva a concluir que todo sujeito é marcado pelo trauma enquanto excesso impossível de lidar.

Freud percebe que a experiência traumática impõe-se continuamente ao sujeito, notadamente na elaboração onírica, que repetidamente traz a cena traumática. Ele lembra constantemente o "teor realizador de desejos nos sonhos" - afirmação essa que parece um contraponto à finalidade do sonhar e ao princípio do prazer. Para o criador da psicanálise, a repetição da experiência traumática no sonho traz consigo "uma produção de prazer de outro tipo" (Ibid., p. 28), porque remetida a algo para além do princípio do prazer. A compulsão à repetição está presente na neurose traumática e se manifesta, por exemplo, no sonho, onde o sujeito tem a possibilidade de desencadear a angústia não despertada por ocasião do trauma sofrido. Freud escreve que o desencadeamento da angústia defende o aparelho psíquico da inundação traumática. Segundo ele, "no caso de bom número de traumas, a diferença entre sistemas que estão despreparados e sistemas que se acham bem preparados através da hipercatexia pode constituir fator decisivo na determinação do resultado." (Ibid., p. 48).

Freud diz que os sonhos traumáticos despertam o sonhador para um novo pavor. Freud postula o sonho como o guardião do sono, e não o seu perturbador, e que há algo de não evidente no sonho traumático, algo incapaz de explicar o seu sentido. Lacan, no capítulo quinto de O seminário, livro 11, intitulado Tiquê e Automaton, escreve que a interpretação dos sonhos pelo criador da psicanálise contém o cerne da noção freudiana da repetição traumática. A análise do analista francês mostra que o despertar traumático possui vinculações com o real. Ainda no Seminário 11 (1985/1964, p. 59), Lacan indaga "O que é que desperta?", o que é que retira o sujeito do processo onírico? "Não será, no sonho, uma outra realidade?" - agrega Lacan. Caruth (2000, p. 120) afirmaque "o acordar é em si mesmo o lugar do trauma". É nesse acordar paradoxal que Lacan aponta para o real que dá sentido ao despertar, na medida em que, no sonho traumático, há um confronto com algo irrepresentável, uma vez que Freud descreve o trauma como a resposta à ameaça de morte. Assim sendo, o acordar representa um paradoxo a respeito da necessidade e da impossibilidade de confrontar a morte. Os sonhos traumáticos não contradizem a teoria freudiana da realização de desejo no sonho. Afinal, o sonho, enquanto postergação de uma realidade traumática, revela o intervalo inassimilável entre a morte e o desejo de superá-la - o que somente é possibilitado na ficção ou no sonho.

Após a publicação de Além do princípio do prazer, a concepção de pulsão de morte está presente em todos os textos de Freud, principalmente na abordagem teórica da guerra e das neuroses traumáticas. Em Psicanálise e telepatia (1941/1921, p. 217) ,publicado somente vinte anos após sua escrita, Freud diz da perda de valor pela qual tudo foi afetado desde a I Guerra Mundial, referindo-se às "atrações perdidas pela vida na terra." Em Dois verbetes de enciclopédia (1923), Freud escreve que a psicanálise resistiu à guerra na medida em que os congressos psicanalíticos não foram interrompidos, tendo sido realizados oito deles. No mesmo ano, no texto Observações sobre a teoria e prática da interpretação de sonhos, Freud (1923, p. 143) aborda a questão do tratamento psicoterápico desenvolvido pelos médicos no campo de batalha e diz que "os que padecem de neuroses de guerra abandonam seus sintomas porque a terapia adotada pelos médicos militares conseguiu tornar o estar doente ainda mais inconfortável do que servir no campo de batalha." Esta passagem faz alusão ao tratamento com a utilização de choque elétrico aplicado pelos médicos aos militares que apresentavam sintomas neuróticos na guerra. Para fugir do tratamento violento, esses militares paravam de evidenciar os sintomas neuróticos. Uma vez percebidos "curados", eram enviados novamente para o front. Desde o Memorandum sobre o tratamento elétrico dos neuróticos de guerra (1920), Freud já havia se posicionado contra tal tratamento cruel, enfatizando que esse não era o tratamento do qual necessitava o soldado na guerra.

Em certa medida, a guerra despertou o interesse pela psicanálise, devido à sintomatologia neurótica apresentada pelos neuróticos, e dada a ineficácia do tratamento elétrico no combate à neurose. Esse é um dos pontos por Freud abordado no texto Um estudo autobiográfico (1925), no qual afirma que o fracasso do tratamento elétrico, a incidência dos casos e questões em torno da psicogênese das perturbações neuróticas foram alguns dos fatores que chamaram a atenção dos médicos militares para a psicanálise. Rapidamente, se tornaram populares expressões como "ganho proveniente da doença", "fuga para a doença" e, ademais, Ferenczi e Simmel, ambos psicanalistas, estiveram na guerra, o que certamente aumentou o interesse pelo que preconizava a psicanálise. O "ganho secundário com a doença" era encarado pelos exércitos como uma simulação. Então, em 1926, no texto A questão da análise leiga, Freud desenvolve questões relativas à responsabilidade ou irresponsabilidade para com a sintomatologia neurótica desencadeada, e diz que nenhum dos dois atributos deve ser aplicado ao neurótico, o qual simula sem saber, sendo essa a sua doença. Afinal, indaga Freud (1926, p. 252), "os neuróticos que burlavam o serviço militar eram simuladores ou não?". Eis que ele responde: "[...] eram e não eram. Se eram tratados como simuladores e sua doença era tornada altamente incômoda, eles se recuperavam; se depois de serem ostensivamente restabelecidos eram enviados de volta às forças armadas, imediatamente se refugiavam na doença." Nesse mesmo texto, Freud agrega que "[...] o mesmo se aplica aos neuróticos na vida civil. Eles se queixam da doença, mas a exploram com todas as suas forças." (Idem).

Em Inibição, sintoma e angústia (1926) outras contribuições são trazidas às neuroses de guerra. Sabe-se que Freud postula a angústia como um sinal frente a um perigo. Diante da ameaça, o eu faz algo para evitar a situação geradora de angústia. Vigora o princípio do prazer e os sintomas assumem o propósito de manter à distância a angústia. Nesse sentido, os sintomas servem de alerta para a iminência de um perigo cuja presença é despertada pela angústia. Ao abordar a relação entre a formação de sintomas e a angústia, Freud (1926, p. 153) considera pouco provável que uma neurose se instale unicamente por causa de uma ameaça real, e sugere uma análise mais profunda, principalmente porque, no inconsciente, não há inscrição da morte e "nada que se assemelhe à morte jamais pode ter sido experimentado." Portanto, diz Freud (Idem), "o medo da morte deve ser considerado como análogo ao medo da castração, e que a situação à qual o eu está reagindo é de ser abandonado pelo supereu protetor [...], de modo que ele não dispõe mais de qualquer salvaguarda contra os perigos que o cercam." Provavelmente, o horror ao desamparo confere o toque que qualifica a situação como traumática e responsável pelo desencadear da neurose.

Em 1933, na Conferência XXIX, intitulada Revisão da teoria dos sonhos, Freud (p. 41) fala novamente das dificuldades que a teoria do trauma trouxe contra a teoria da realização de desejos no sonho. As pessoas vitimadas pela experiência traumática são reconduzidas, no sonho, à situação traumática. Freud, mais uma vez, pergunta-se: "que impulso decorrente de desejos poderia satisfazer-se retornando, dessa maneira, a essa experiência traumática desagradável?" Ele responde que a teoria do sonho revela "os esforços da elaboração onírica dirigidos a negar o desprazer, por meio da deformação, e a transformar a decepção em concessão." (Idem). Entretanto, no caso das neuroses traumáticas, Freud revela que há uma peculiaridade diferente, uma vez que a angústia é experimentada no sonho. Freud (Ibid., p. 42) escreve, então, que "o sonho é uma tentativa de realização de um desejo". Na Conferência XXXII, denominada Angústia e vida pulsional, Freud retoma o assunto e diz que esse é um dos enigmas com os quais se depara a psicanálise. Nessa conferência, Freud estabelece uma ligação entre angústia e formação de sintomas, a fim de compreender o afeto da neurose. Para o criador da psicanálise, a angústia é primária em relação ao sintoma e definida como um estado afetivo desencadeado frente a uma ameaça. Portanto, a angústia é constitutiva da neurose. Textualmente, Freud (1933, p. 106) escreve que "[...] a geração da angústia é o que surgiu primeiro". O sintoma é secundário e é qualificado como inibição, na medida em que, "por meio dele, o paciente se poupa dos ataques de angústia" (Idem). Entendemos o sintoma como o recurso tentado para manter longe a angústia. Prosseguindo na Conferência XXXII (1933, p. 117-8), Freud diz que, quando "os esforços do princípio do prazer malogram", dá-se o momento traumático e "[...] o que é temido, o que é objeto de angústia, é invariavelmente a emergência de um momento traumático, que não pode ser arrostado com as regras normais do princípio do prazer."

Podemos observar que perdura o valor econômico na concepção do trauma em Freud, uma vez a importância conferida à soma de excitação que qualifica o evento traumático, capaz de paralisar o princípio do prazer. Na Conferência XXXII (1933, p. 119), Freud conclui que a angústia é o sinal diante de um perigo, podendo ter sua origem em dois momentos: "como consequência direta do momento traumático e [...] como sinal que ameaça com uma repetição de tal momento." Isso explica porque no sonho de repetição da cena traumática a finalidade de preservação do sono não é cumprida, já que a angústia retira o sujeito da cena onírica ao acordá-lo, poupando-o repetidamente.

Analisando Esboço de psicanálise (1940), percebemos Freud manter suas concepções sobre o trauma e a neurose, ocasião em que sustenta que nenhum indivíduo está isento do trauma que lhe constitui enquanto sujeito. Sobre as neuroses traumáticas, escreve que elas constituem uma exceção porque são consequências de traumas não constitutivos, como é o caso dos acidentes graves e da violência. "As neuroses são, como sabemos, distúrbios do eu e não é de admirar que o eu, enquanto débil, imaturo e incapaz de resistência fracasse em lidar com tarefas que, posteriormente, seria capaz de enfrentar com a máxima facilidade" (FREUD, 1940[1938], p. 213).

As exigências pulsionais internas e externas figuram como as peças-chave na teoria do trauma. Cabe a pergunta se é esperada maturidade psíquica do homem diante do horror de uma guerra. Em nossa experiência no atendimento dos soldados que retornam neurotizados pela experiência da guerra e dos combates, percebemos com Freud que o trauma de guerra provoca um esgarçamento no simbólico. Inundados por um excesso pulsional inassimilável, ficam, em geral, submergidos na experiência traumática. Nesse sentido, a análise surge como uma via de minimização dos efeitos nocivos do trauma, como veremos a seguir.

 

Breves considerações clínicas

Após o estudo do trauma, é preciso tecer considerações sobre o tratamento a ser dispensado aos militares que retornam das missões em zonas de conflito(1). Vimos que a abordagem freudiana das neuroses de guerra é semelhante às neuroses traumáticas dos tempos de paz, de modo que ele trata ambas as neuroses pelo mesmo prisma. Nesse sentido, pudemos observar que, para o criador da psicanálise, o acontecimento traumático pertence à ordem do excesso insuportável, que marca o sujeito à semelhança de um acontecimento histórico.

Elisabeth Roudinesco (1998), com base na leitura do texto freudiano, descreve o quadro sintomático da neurose de guerra composto de alterações físicas, depressão, hipocondria, angústia, delírio. Decorrente dos contatos que travamos com militares que estiveram no front (Timor Leste e Haiti), acrescentamos os seguintes sinais: irritação, impaciência, alterações de humor, alterações fisiológicas - como, por exemplo, modificações sérias na pressão arterial, distúrbios no sono, mutismo, retraimento social, agitação motora, tremores, cefaleias.

Em 1913, Freud alerta que a neurose é semelhante a uma "donzela vinda de longe", parafraseando Schiller, autor do poema Das Mädchen aus der Fremde. Igualmente, são surpreendidos muitos militares, os quais, dada a sua formação para o combate mortífero, sequer imaginam que também têm fragilidades. Na formação militar, é feito o juramento perante a bandeira da terra pátria, de dar a própria vida em sua defesa, e também pela missão. Identificados com tais elementos, eles partem para toda sorte de trabalhos operacionais, quando, muitos, são surpreendidos pelo impacto do trauma e pelo desencadeamento da neurose: "ninguém sabia donde ela viera, de maneira que esperavam que um dia desapareceria" - escreve Freud (Ibid., p. 171). Assim sendo, há um tempo para saber dessa neurose, ainda que seja possível somente uma aproximação desse saber, pela análise. Na verdade, Freud assinala que se trata de uma atemporalidade, uma vez que é assim que funcionam os processos inconscientes. Diante de tais circunstâncias, elevadas resistências surgem ao tratamento psicanalítico, e é comum o recurso ao fármaco enquanto solução mágica. E sob essa condição mantêm-se muitos sujeitos.

Sabemos com a psicanálise que a ferramenta capaz de levar o analisando a recordar é o manejo da transferência. "É aí que se deve buscar o segredo da análise", escreve Lacan (1958/1998), no texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder. Freud (1914, p. 201) assinala que "a partir das reações repetitivas exibidas na transferência, somos levados [...] até o despertar de lembranças, que aparecem sem dificuldade, por assim dizer, após a resistência ter sido superada". O esperado é que o processo de elaboração seja efetuado pelo sujeito em análise. O trabalho de elaboração é próprio do inconsciente e se dá no tratamento analítico.

Em suas considerações sobre os escritos técnicos de Freud, dispostas n'O Seminário, Os escritos técnicos de Freud, Lacan (1953, p. 9) inicia suas palavras escrevendo que "o pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro reduzi-lo a palavras gastas. Nele, cadanoção possui vida própria. É o que se chama precisamente dialética". Segundo o autor, os escritos técnicos representam uma etapa no pensamento freudiano marcada pela simplicidade e foco dirigido ao método. "A simplicidade e a franqueza do tom, por si sós, já são uma espécie de lição." (Ibid., p. 18).

Encontramos nesses escritos passagens extremamente importantes para apreendermos o progresso que teve, no curso desses anos, a elaboração da prática. Neles, vemos aparecer gradualmente noções fundamentais para compreender o modo de ação da terapêutica analítica, a noção de resistência e a função da transferência, o modo de ação e de intervenção na transferência e mesmo, até certo ponto, o papel essencial da neurose de transferência (Ibid., p. 16).

Para o psicanalista francês, Freud nunca deixou de falar da técnica, pois em cada um de seus artigos existe algo sobre ela. Segundo Lacan, as indicações técnicas da psicanálise estão por toda parte da obra de Freud. A restituição do passado do sujeito na análise permaneceu como uma das preocupações do pai da psicanálise em todos os seus escritos. As considerações lacanianas inserem a psicanálise numa relação inter-humana, em que a relação do analista e do analisando é marcada pela intervenção de um elemento terceiro. Assim, diz: "se a palavra é tomada como ela deve ser, como ponto central de perspectiva, é numa relação a três, e não numa relação a dois, que se deve formular, na sua completude, a experiência analítica" (Lacan, 1953, p. 20). Essa noção é muito importante para a prática clínica, uma vez que, no processo analítico, a reconstituição da história do sujeito é um elemento essencial, constitutivo e estrutural desse processo. Dito de outra forma, trata-se da apreensão de um caso singular, do tratamento do sujeito em sua perspectiva, ou seja, em sua singularidade. "Quer dizer essencialmente que, para ele, o interesse, a essência, o fundamento, a dimensão própria da análise, é a reintegração, pelo sujeito, da sua história até os seus últimos limites sensíveis, isto é, até uma dimensão que ultrapassa de muito os limites individuais" - escreve Lacan a respeito do pensamento freudiano relativo aos textos técnicos. Essa dimensão histórica resgatada pelo sujeito na análise não é tão simples quanto parece, pois "a história não é o passado" (Ibid., p. 21) - afirma Lacan, acrescentando que "o caminho da restituição da história do sujeito toma a forma de uma procura da restituição do passado. Essa restituição deve ser considerada como o ponto de mira visado pelas vias da técnica" (Ibid.).

Qual a importância dessa reconstituição histórica para o sujeito? Ora, o reviver histórico pela linguagem traz a possibilidade de uma nova reconstrução, o que é muito importante na análise. Quando o sujeito fala, diz de si e de tudo, ou seja, do conjunto de seu sistema. Nesse contexto, Lacan assevera que o acento deve recair sobre a reconstrução e não sobre a face da revivescência. O revivido, disse-nos Freud em vários momentos de sua obra, não é o essencial. A análise é, portanto, um processo de reescrita da própria história.

Em 1958, no texto A direção do tratamento, disposto nos Escritos, Lacan (p. 592) resgata a importância da regra fundamental da psicanálise, porque, segundo o autor, nisso consiste a direção do tratamento. "Essas diretrizes, numa comunicação inicial, revestem-se da forma de instruções, as quais, por menos que o analista as comente, podendo considerar que, até nas inflexões de seu enunciado, veicularão a doutrina com as quais o analista se constitui [...]". Acrescenta, ainda, que "esse tempo consiste em fazer o paciente esquecer que se trata apenas de palavras, mas que isso não justifica que o próprio analista o esqueça." (Idem).

A análise lacaniana da direção do tratamento ressalta que a trilha analítica não é trafegada em mão unívoca, senão dupla, naquilo que se refere, principalmente, à quota de investimento empregada pelas partes desse processo. Assim sendo, também ao analista é requerido investimento ligado ao registro do simbólico, do imaginário e do real. Isso significa, como escreve Lacan (1958, p. 593), que ele "paga com palavras", tendo em vista o efeito de interpretação; "paga com sua pessoa", uma vez que ele a cede como sustentáculo dos fenômenos transferenciais; e, finalmente, "paga com seu juízo mais íntimo", porque é parte do jogo analítico.

Fundamentalmente, Lacan assegura que o segredo da análise reside no manejo da transferência e, nesse contexto, escreve: "[...] o analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática" (Ibid., p. 595); o que vem a significar estar alerta na transferência e um pouco mais de liberdade na interpretação.

O filme No vale das sombras, dirigido por Paul Haggis (2007), retrata situações possíveis de acontecer a um militar, na guerra e fora dela. A estória é protagonizada por Tommy Lee Jones, o qual interpreta o personagem Hank Deerenfield, um ex-combatente da guerra no Vietnã. Hank é pai de Mike, que luta no Iraque e, ao retornar para os Estados Unidos, não procura sua família. O desenrolar da trama é iniciado com a procura de informações sobre Mike. Cedo no filme, o pai é informado que seu filho fora encontrado morto, esquartejado e jogado num terreno baldio. Dá-se início a um processo de investigação pela polícia e exército, juntamente com o pai, este nos bastidores da investigação. A partir desse momento, Hank depara-se com aspectos da personalidade de seu filho Mike, inimagináveis para ele, mediante conclusões obtidas em vídeos enviados a ele pelo próprio filho, quando ainda vivo e em combate no Iraque. Na ficção [e fora dela] é comum a ordem de não cessar um comboio numa zona de conflito devido à ameaça de emboscadas, bombardeios, etc. No filme, Mike dirige uma viatura em comboio quando avista uma criança e passa por cima dela, atropelando-a fatalmente. Em seguida, ele para a viatura, desce e fotografa a criança morta, mudo e com semblante frio. No instante seguinte, envia a foto tirada com seu celular para seu pai.

Ainda no filme de Haggis, é revelado o codinome "doutor" atribuído a Mike. A explicação para essa designação é que Mike, ao capturar um ferido de guerra, se aproxima, diz ser médico e que irá ajudá-lo. Os atos seguintes da personagem em questão são repetidos enfiar dos dedos no ferimento do inimigo, junto da indagação "Dói?". Diante dos gritos agonizantes do inimigo detido, Mike sorri para a câmera que testemunha o ato cruel. Em determinada parte do filme, Hank verbaliza para a detetive que investiga a morte de seu filho: "você não esteve na guerra; você não sabe como é! Quando a gente volta, se não tem briga, lutamos entre si". É sob tais circunstâncias que se dá o assassinato de Mike, morto por três camaradas de seu esquadrão, no front. Após uma bebedeira, discutem e um deles apunhala-o com uma faca, matando-o. Não bastasse o assassinato, um deles resolve fatiá-lo, verbalizando que tinha experiência como açougueiro. Após o despedaçamento do corpo morto, desistem de enterrá-lo porque estavam famintos. Então, resolvem comer frango e pagam com o cartão de crédito daquele que haviam matado. Nesse mesmo filme, um soldado egresso do Iraque assassina a esposa numa banheira e outro se enforca no vestiário.

Coutinho Jorge (2010, p.129) sublinha a nomenclatura plural atribuída por Freud à pulsão de morte: "pulsão de destruição ou destrutiva; pulsão agressiva; pulsão de apoderamento ou dominação". De acordo com o autor, "a ênfase posta por Freud, desde o início de suas formulações sobre a pulsão sexual, na dimensão da crueldade a ela inerente, parece traduzir uma percepção precoce da pulsão de morte enquanto verdadeira pulsão de crueldade" (Ibid.).

Quando a barbárie impera, encontram-se livres de quaisquer amarras normativas as pulsões destruidoras e a crueldade. Para alguns sujeitos, essa é uma condição em que falham suas defesas protetoras, advindo o trauma. "Esse novo panorama pode levar o soldado a adoecer justamente por causa da perda da capacidade de mediação do conflito entre as pulsões e a realidade externa, isto é, entre o mundo interior e o exterior", escreve Castro (Ibid., p. 114). Diversos militares sofrem deangústia e depressão após terem matado um inimigo na missão. É como se "uma ficha tivesse caído" frente ao cometimento do assassinato praticado por ele mesmo, condição essa que se torna insustentável para muitos deles. Isso significa que a fiança do Estado de que a morte pode ser praticada na guerra não é garantia de sustentação psíquica para o sujeito. Parece que, depois da guerra, o sujeito fica à mercê de si mesmo, como temos notícias dos que combateram no Vietnã, por exemplo, os quais ficaram à própria sorte quando aquele desastre acabou, muitos deles, inclusive, se suicidando.

Toda força armada apresenta o paradoxo de duas exigências pulsionais feitas ao militar: ser camarada com os irmãos de farda e, em igual medida, ser capaz de cumprir seus deveres, dentre os quais o de matar um inimigo, se preciso for. Tais exigências favorecem a cisão do eu, corroborada pelo horror da destruição. Ao que parece, este é um importante fator na neurotização do sujeito que experimenta a guerra.

Numa tarde de domingo, recebi uma ligação telefônica de uma esposa de um militar que há pouco havia chegado ao Brasil, clamando por ajuda, pois ela estava assustada frente às reações de seu marido. Este gritava por qualquer motivo, não conseguia reduzir o tom de sua voz em nenhuma circunstância e falava sempre "de olhos arregalados" -disse-me a esposa, a qual estava tendo picos de pressão arterial e medo. No consultório, a chegada do indivíduo em questão denotava quão mobilizado ainda permanecia, como se estivesse à espera de algo que o pudesse surpreender. Comoção que deixa o sujeito subsumido na certeza do retorno do acontecimento traumático, produzindo efeitos devastadores nos intercâmbios familiares. Sua história já não tem sentido; ninguém acredita nele, os laços familiares se afetaram de tal maneira que não pode confiar em ninguém. Passadas algumas sessões, onde pôde abordar os momentos vividos nos tiroteios, relatou que não conseguia ser escutado nos locais de combate por causa do ensurdecedor barulho bélico. Então, ele gritava para ser ouvido, porque precisava ser ouvido quanto ao medo que estava sentindo.

Num outro momento, recebi encaminhamento de um soldado que estava "acochambrando"(2) no quartel. A fala gaga mesclada a choro contido revelou que não se tratava disso. Relatou que o pai, seu único amigo, havia morrido no começo de suas atividades no quartel. Disse que estava em casa com ele e que o pai começou a passar mal, a ficar roxo e referiu não ter conseguido fazer nada de imediato. Nos instantes seguintes pediu ajuda a uma vizinha, a qual chamou a ambulância. Um enfarto fulminante foi a causa morte do pai. Na semana seguinte a esse episódio, ele foi para a atividade de acampamento no quartel, estágio esse onde o militar é submetido a provas de resistência que visam prepará-lo para o combate. No acampamento, ele verbalizou que foi bem e que ria das situações difíceis. Chorou muito ao lembrar que não havia sido o seu pai a entregar-lhe a boina na formatura de recebimento da mesma. Passado os dias, ele havia acentuado consideravelmente sua gagueira e pensava frequentemente em se matar. Num serviço, chegou a engatilhar o seu fuzil e pôs o armamento na boca, mas não conseguiu atirar. Ele reclama que seus chefes o acusam de "acochambrar" e que, nesses momentos, ele se lembra que seu único amigo - o pai - não está mais ali para lhe defender e escutá-lo, orientá-lo. Ao que parece, a acusação de "acochambrar" remete à acusação primeira que ele dirige a si mesmo por "não ter feito nada" diante da morte de seu pai, fato donde deve estar derivando a sentença condenatória de sua própria morte. Apostamos que a análise possibilitará alívio para a angústia mortífera e permitirá novos arranjos e nova saída que não o aniquilamento de si mesmo.

A deparação com a morte deixa sempre um resto de terror que não é assimilada. O que o risco da morte causa no sujeito? Trauma, certamente. O traumatizado de guerra está mais próximo dos mortos do que dos vivos. Com identidade e imagem despedaçadas, o sujeito sente-se ameaçado, arremessado de volta ao desamparo, donde advém a angústia, frente a qual uma análise se apresenta como uma possibilidade de alívio desse sentimento mortífero pelo recurso da fala. O tempo de desmobilização psicológica de militares egressos de uma zona de combate é um tempo singular para o sujeito. Não se sabe exatamente as possíveis repercussões no psiquismo dos que viveram o horror e a ameaça de morte de perto. Como se diz no Exército, "olharam de perto e de frente os olhos do inimigo". Além disso, não há como determinar com objetividade as derivações patológicas do extermínio do outro, ainda que para salvar a própria vida. Nesse sentido, uma análise não intenciona a profilaxia, posto que essa não é sua tarefa. Não há como afiançar que jamais haverá novo sofrimento, pois experiências futuras podem acender questões não trabalhadas na análise. É interessante, inclusive, dizer que muitos militares retornam nos contingentes subsequentes ao seu com extrema vibração. Assim sendo, o analista se configura enquanto capaz de amparar a fala do analisando balizado pelo amor de transferência. "Ter quem o escute poderá ajudá-lo a compreender melhor o que ocorreu, e por qual razão esta vivência teve efeito tão disruptivo", assinala Castro (Ibid., p. 122).

No combate, a neurotização do sujeito pode advir de várias maneiras, desde a explosão de uma granada ou a morte de alguém, por exemplo, até acontecimentos cotidianos tolos, considerados "a gota que faltava" para a eclosão do surto neurótico. O trabalho analítico consistirá, em princípio, em conseguir armar uma trama que permita ao sujeito encontrar um novo sentido e reinscrever-se de outro modo no social. Na clínica, o trauma confronta o sujeito com o real, com o que não tem sutura, com o irrecuperável. O analista terá como desafio promover a restauração da capacidade interpretativa do psiquismo. O exercício da linguagem na análise permite ao sujeito inscrever marcas traumáticas na cadeia significante e, com isso, minimizar os efeitos nocivos do trauma. A propósito do tema desenvolvido neste artigo, e para finalizar, comentarei brevemente uma ideia de Castro (Ibid., p. 111) sobre a posição do analista frente ao desamparo do sujeito traumatizado: "A análise promove a restauração da capacidade interpretativa do psiquismo através do rearranjo da fantasia. O fato de o aparelho psíquico ser um aparelho de escrita garante a aposta que todo analista deve fazer, a cada caso e a cada vez, de que aquele que se sente desamparado e indefeso frente aos efeitos do trauma pode encontrar uma saída para o sofrimento". O poder da fala permite, fundamentalmente, que o sujeito resgate sua imagem narcísica e suas referências subjetivas. Localizar, teorizar, discernir sobre o lugar do analista na clínica: eis o grande desafio da psicanálise frente aos atuais rumos da civilização, cada vez mais regida pelas guerras, terrorismos e pelo exercício da crueldade.

Finalmente, perguntamos qual o fazer do analista diante de uma modernidade com uma roupagem cada vez mais cruel, disfarçadamente cruel, onde ora a violência é cometida diretamente, e ora é praticada pela abstenção, indiretamente, como é o caso do aval concedido aos exércitos em guerra, tudo em nome do patriotismo, em nome da paz, a qual, paradoxalmente, é buscada por meio da violência. Cabe a nós, psicanalistas, refletir sobre as práticas humanas na contemporaneidade, sobre os processos inconscientes que subjazem as ações humanas e, fundamentalmente, sobre os novos arranjos da pulsão de morte, em suas faces destrutiva, agressiva e cruel, à luz do ensino freudiano e da leitura de Derrida sobre as gradações da crueldade.

É preciso dizer que é responsabilidade dos analistas dar uma resposta à banalização continuada da violência, no sentido de honrar a aposta pacifista de Sigmund Freud, o qual em todos os momentos de sua obra ratificou a ética, o direito inalienável à vida frente às manifestações da irredutível pulsão de morte. O fato de Freud ter demonstrado a impossibilidade da existência da Coisa (Das Ding) em função do que as pulsões são, somente, parcialmente atendidas, nos delega uma importante tarefa: a análise e a transmissão do conhecimento psicanalítico como uma possibilidade de drenar, civilizar o indomável no homem. Esse é um terreno fértil para a psicanálise e, portanto, precisa ser tomado como um compromisso ético por todos os psicanalistas que, como Freud, se autorizam a pensar a esfera social a partir da experiência clínica.

Por fim, cito Fuks (2003) quando diz sobre a necessidade de não ficarmos cegos à dimensão catastrófica do psiquismo na atualidade. "Essa mesma dimensão catastrófica abre uma brecha no centro de novas formas do mal-estar na civilização: a passagem ao ato violento na delinquência, a toxicomania, o totalitarismo que se coloca acima da lei, o fundamentalismo como instrumento da lei divina etc." (Ibid., p. 64). A autora alerta quanto às roupagens do sintoma na contemporaneidade e nos leva a pensar sobre o fazer analítico nos dias de hoje. Novamente, cito Fuks: "Sem dúvidas, o futuro da psicanálise depende da responsabilidade do analista em manter seu trabalho voltado para a dinâmica psíquica do sujeito, individual ou coletivo, sem abrir mão do rigor dos conceitos freudianos" (Idem).

 

Notas

(1) O trabalho como psicóloga do projeto Força Militar de Paz do Exército Brasileiro possibilitou a escuta clínica de muitos militares em zonas de combate real - no Timor Leste -, e também de militares egressos do Haiti, durante onze anos de trabalho junto aos contingentes militares que seguiram para as missões de paz das Nações Unidas.

(2) Expressão comumente usada nos quartéis para designar um militar que "enrola" no serviço e que não faz nada.

 

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Recebido em: 5/3/2012
Aprovado em: 26/7/2012