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Trivium - Estudos Interdisciplinares

 ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2012

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

O sujeito-criança e suas surpresas

 

The subject-child and their surprises

 

 

Márcia Regina Lima CostaI; Ruth Helena Pinto CohenII

IMestre e Doutoranda em Psicologia -Instituto de Psicologia - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Psicóloga do Hospital do Câncer III/INCA. Associado Fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Oncológica. Pesquisadora no Projeto Brincante-IPPMG-UFRJ. Bolsista CAPES. psimare@ig.com.br
IIProfa. Dra. do Programa de Pós Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Projeto Brincante/IPPMG/UFRJ -Cod. código SIGMA/UFRJ 13491/06 -Apoio PR5, SG-6 e FAPERJ. ruthcohen@uol.com.br

 

 


RESUMO

No presente artigo, desenvolvemos a ideia de que, mesmo quando a criança, com um diagnóstico oncológico, é vista como frágil e dependente, é possível a criação de um espaço onde se possa dar lugar ao dizer através do brincar. Acreditamos que, no enfrentamento da dor física, do sofrimento psíquico e da morte como possibilidade, viabiliza-se, através da especificidade de encontros contingentes, a promoção de uma escuta diferenciada e um espaço lúdico de criação para que o sujeito-criança encontre suas saídas. Da rede tecida entre Psicanálise, Educação Física e Medicina, através da via lúdica, foram explicitadas algumas formas pelas quais a criança pode ver facilitada a elaboração de seu diagnóstico e tratamento. Por privilegiarmos a singularidade de cada sujeito envolvido nesse processo, oriundo de uma intervenção feita em ambiente hospitalar, apresentamos aqui as invenções imaginárias e simbólicas de alguns sujeitos-crianças que nos surpreenderam a cada encontro, demonstrando como o brincar, na rede enlaçada pelas três disciplinas acima referidas, serviu como instrumento facilitador no enfrentamento da dor psíquica.

Palavras-chave: criança; psicanálise; câncer.


ABSTRACT

In this article we develop the idea that even when the child, with a cancer diagnosis, is seen as fragile and dependent, is possible to create a space where they can give way to say through the play. We believe that in dealing with physical pain, psychological distress and the possibility of death as is possible, through the specificity of contingent encounters, promoting a differentiated listening and a creative play for the subject-child find their outputs. from the network between Psychoanalysis, Physical Education and Medicine, thought the play, were explained some ways in which the child can see facilitated the development of cancer diagnosis and treatment. By favouring the uniqueness of each individual involved in this process, coming from a speech made in the hospital, we demonstrate the inventions of some imaginary and symbolic subject-children surprised us at every meeting, demonstrating how to play, network entangled by the three disciplines above, served as facilitator in dealing with psychic pain, when the diagnosis is cancer.

Keywords: child; psychoanalysis; cancer.


 

 

O sujeito que nos interessa e nos surpreende é a criança que vivencia um diagnóstico oncológico, cujo tratamento é extremamente invasivo. Nesse cenário, a criança é capturada em uma teia de discursos na qual os significantes que a identificam são: doente, paciente. Se no discurso contemporâneo prevalece o culto ao corpo saudável, o que pode uma criança inventar quando esse ideal fracassa? Quais os significantes que a identificam a partir dos novos laços sociais que se estabelecem na família, na escola e no hospital?

No espaço familiar, verificamos em pesquisa recente(1) uma reorganização dos lugares ocupados por cada membro da família, a partir desse acontecimento que irrompe, dificultando a simbolização. Nessa estrutura, os pais impotentes diante desse meteoro que faz cair por terra todos os ideais, nos remetem ao conceito freudiano de Unheimlich (1919), trabalhado por Lacan no seminário VI, como uma sensação de estranheza que se apresenta pelo encontro com o real (tyché), já que o sujeito está sem palavras, sem um discurso que o ampare. A estranha familiar ideia de perda e morte surge diante deles sob um significante carregado pelo estigma de dor e sofrimento - o Câncer.

Aliado ao descrito acima, temos o discurso da ciência. O avanço tecnológico, na contemporaneidade, permite o conhecimento sobre a história natural da evolução da doença. Os novos e diversos métodos de diagnóstico, que facilitam a deliberação do tratamento adequado para cada paciente, apontam para uma maior possibilidade de cura. De acordo com dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), nas últimas décadas, vem ocorrendo um progresso vertiginoso no tratamento do câncer na infância, podendo-se chegar a 70% de cura quando ocorre o diagnóstico precoce e a busca pelo tratamento especializado (INCA, 2008). Mas, antes que isso aconteça, a criança tem um percurso longo, que inclui intervenções invasivas, tais como: mielogramas e punções lombares e venosas(2). Além disso, efeitos físicos adversos são constatados, dentre eles: alopecia (queda de cabelo), náuseas, vômitos, mucosites, astenia e anemia, que implicam no afastamento de suas atividades de rotina. A cria sapiens é levada a vivenciar de forma contundente o seu desamparo, torna-se um objeto da ciência, manipulado, serve de investigação à medicina, que busca saídas. O tratamento é experienciado como uma situação de desestabilização, e pode levar o "sujeito-criança" afetado àquilo que Lacan (1938) indicou no Estádio do Espelho como a experiência do corpo despedaçado.

No decorrer de nossa intervenção, nos deparamos com a seguinte questão: como a criança pode fazer frente ao inesperado que remete seus pais às angústias infantis e, por isso, sem possibilidades de oferecer-lhe o suporte necessário para que ela possa lidar com essa irrupção do real que a invade e coloca por terra suas certezas? Assim, encontramos indicações, no âmbito de nossos encontros, de que o sujeito-criança parece ter a capacidade de ir além da enfermidade, e pode construir um novo percurso de ressignificação de sua história. O encontro com o real da dor ganha um novo sentido através da recriação (COHEN, 2008).

Quando a cultura localiza a criança como frágil e dependente, ao ser confrontada com um diagnóstico de câncer, acreditamos que é possível um saber fazer com "isso", ou seja, com o material pulsional, mesmo quando o Outro social localiza apenas dor, sofrimento e morte. Desta forma, supomos que é possível a promoção de um encontro contingente que dê lugar, voz e vez ao sujeito-criança. Para tal, tomamos de Freud (1908) a indicação sobre a importância do brincar e da brincadeira como algo sério e que, na criação de seu mundo peculiar, a criança utiliza seus brinquedos e jogos explicitando, assim, seus desejos e prazeres, ou seja, liga "seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real (1996, p. 56)".

Freud, em 1909, retoma o paralelo entre a produção dos escritores e a da criança para indicar que a realidade da fantasia ou a realidade psíquica são tecidas pelo infantil. Dessa leitura freudiana, ressaltamos o tratamento que pode ser dado às brincadeiras da criança. O autor nos diz que, com qualquer material oferecido, ela é capaz de criar um significado para o que vivencia no momento, tal como Hans, que, com um desenho e uma folha de papel amassada, criou o mito da girafa (COHEN, 2006).

Nosso dispositivo que utiliza o brincar como instrumento de pesquisa-intervenção, tem na ética do método psicanalítico seu suporte de trabalho, pois "preocupa-se em preservar a concepção do sujeito como falante e dividido (SAURET, 2003, p. 98)". E ao ressaltarmos a questão da ética, nossa intenção é clarificar que não nos prestamos a traduzir o trabalho em um conjunto de regras e condutas que visariam mobilizar padrões adaptativos, pois nosso interesse é o particular do desejo de cada um. A intervenção vai no sentido de não recuar diante do mal-estar que é inerente ao próprio tratamento oncológico e, que em muitas situações pode servir para fazer desaparecer o desejo da criança, destituindo-a do lugar de sujeito.

Julgamos ser importante situar o lugar onde essa práxis acontece. Os encontros do Projeto Brincante(3) com esses sujeitos que nos surpreendem aconteceram na sala de quimioterapia, nas enfermarias e sala de espera dos ambulatórios.

Lacan nos ensina que o sujeito não coincide com um organismo e "para quem sabe ouvi-lo, a sua conduta toda fala a partir de um Outro lugar" (1954/1985, p. 15). Privilegiaremos aqui duas situações em que aparecem a surpresa, como um discurso inédito, demonstrando o saber-fazer de crianças frente ao mal-estar que as invade, durante o tratamento oncológico. Para nossos depoimentos, usaremos nomes fictícios e cuidados para a não identificação dos casos.

 

Caso T

T, de 5 anos chega pela primeira vez ao local onde são realizadas as infusões de quimioterápicos e processos invasivos simples. No momento em que as enfermeiras se aproximam, para fazer uma punção venosa, a criança começa a chorar de forma desesperadora. A mãe tenta acalmá-la, e embora ansiosa, não demonstra impaciência, mas outro membro da família a ameaça a cada instante, tentando impedi-la de se expressar [...] O apelo de T também parece incomodar um profissional externo ao setor. Este se aproxima e lhe diz: "Fica quietinha, não chora, não!" Ao escutar essa fala, um membro de nossa equipe intervém se dirigindo à criança: "Não há problemas em chorar, acho que tudo isso deve incomodar e doer muito, não é?" Em um movimento de cumplicidade, a enfermeira também se autoriza reafirmando: "Eu sei que dói, mas vou tentar fazer o mais rápido possível. Preciso que você me ajude, tentando não mexer a mão". Em pouco tempo, o procedimento foi realizado. Após alguns instantes, a criança recomeça a interagir com o oficineiro (nome dado ao membro do projeto que tem a função de facilitador do brincar) e vira-se para a pessoa que a acompanhava, naquele momento e pedia que parasse de chorar, dizendo: "Vai lá para fora fumar, vai!" A pessoa vacila entre sair e deixá-la. Mas a criança se mantém firme e reafirma: "Vai logo!".

Nesse pequeno relato, testemunhamos o choro como expressão de um "hiperverbal", algo que transmitia um discurso sem palavras e que tinha a força de uma enunciação, como Cohen (2006a) indica, com o suporte em Lacan, ou seja, um dizer que transmitia a angústia diante da invasão sentida pela criança. Em lugar de fazer calar sua dor, demos voz a esse sujeito-criança, o que parece ter possibilitado uma ação facilitadora da enfermeira. Podemos inferir que a criança, naquele momento, pode se fortalecer e se autorizar a expressar sua dor pedindo para o adulto que queria calar sua voz que se ausentasse do espaço de intervenção médica.

 

A dupla A1 e A2

Quando chegamos à sala de quimioterapia, A1 estava chorando muito ao lado do responsável, que se mostrava ansioso com o choro, e também com a expectativa do resultado de um exame que seria feito, para a confirmação de uma recorrência do câncer. A técnica de enfermagem aguardava pacientemente que se acalmasse, para puncionar sua veia. Na outra cadeira, estava A2, que desenhava avidamente.

Um membro de nossa equipe sentou-se próximo a A2 e se ofereceu para escutar as histórias sobre os desenhos que fazia. Enquanto isso, ao lado, A1 acalmou-se e sugeriu a brincadeira da forca. Escreveu uma palavra enorme e nenhuma das letras sugeridas pelo adulto foi aceita. Parece-nos que, nessa hora, as duas crianças se divertiam com o domínio da situação, fazendo o oficineiro de "bobinho".

Enquanto A2 segue com seus desenhos, chega a hora de A1 revelar sua palavra, obviamente depois de "enforcar" o oficineiro, que não conseguira adivinhar a "frase-enigma" proposta por ele: "Exame de sangue". A2 diverte-se com a brincadeira proposta por ele, e o mal-estar diante do procedimento invasivo, que lhe causava intensa angústia expectante, havia se atenuado. Aos poucos A1 concorda que a técnica faça a sua punção venosa. Esta lhe diz que vai incomodar, mas que, para que seja feita o mais rápido possível, ela precisaria muito de sua ajuda. Segundo esta, seria apenas uma picada de mosquito. Nessa hora, A2 intervém e declara que não é bem assim, que parece uma picada de "abelha". Voltando a desenhar, dá seu depoimento dizendo que já chorou assim, mas que agora tem um catéter e por isso fica mais fácil. A identificação imaginária entre A2 e A1 propicia que verifiquemos uma situação em que uma operação simbólica se operou, através do brincar, sobre o real imposto ao corpo pela doença.

Com esse recorte, podemos retomar o texto de Freud (1920), no qual ele aponta que "se o médico examina a garganta de uma criança ou faz nela alguma pequena intervenção, podemos estar inteiramente certos de que essas assustadoras experiências serão tema da próxima brincadeira" (1996, p. 29). Sendo assim, as crianças, em suas brincadeiras, repetem suas experiências de vida mais significativas, dessa forma, podem dar um tratamento possível às suas angústias, pelo viés do lúdico, realizando ações que seriam impossíveis na vida cotidiana. Com isso, a criança se apodera da situação, se desloca do lugar de passividade para um lugar de sujeito da ação.

Talvez possamos testemunhar no brincar um discurso com e sem palavras. Mas que carrega consigo um dizer, estatuto de uma enunciação. Através desse dispositivo, o sujeito-criança pode ter a possibilidade de ressignificar o desprazer imposto pelo diagnóstico e tratamento oncológico, no qual seu corpo está submetido ao Outro da ciência e, mesmo assim, construir novos laços.

Retomamos o texto lacaniano (1954/1985) para indicar que o sujeito-criança com o qual nos deparamos, não se identifica com os significantes "frágil", "doente", "coitadinho", "indefeso". Esse sujeito colocado em suspenso pela irrupção do real da doença nos dá a chave que permite demonstrar alguns efeitos da fala, quando se oferece uma escuta diferenciada atravessada pelo discurso psicanalítico.

 

Notas

1) Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da UFRJ: A família, a criança e a doença: uma versão psicanalítica, a partir da pesquisa: A difícil arte de ser pai e mãe: as vicissitudes do tratamento oncológico da criança -Comitê de Ética em Pesquisa do IPPMG - Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 196/96, sob o nº 21/08.

2) Procedimentos realizados pela equipe médica para fins de diagnóstico e deliberação do tratamento.

3) O Projeto Brincante integra a política de humanização do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira desde o ano de 2006, e suas atividades se pautam em atividades de extensão e pesquisa-intervenção, através de uma parceria entre a Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) e o Instituto de Psicologia da UFRJ. Cod. UFRJ 13491/06.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 10/4/2012
Aprovado em: 08/08/2012