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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2012

 

ARTES

 

Arquiteturas insondáveis

 

 

Ligia Canongia1

 

 

O que é real é o contínuo mudar da forma2

A visão aérea da maquete da exposição Ensaios não Destrutivos lembrou-nos um projeto de urbanismo delirante, cujas torres, colunas e passarelas, à semelhança das arquiteturas cenográficas e fantásticas de Piranesi, não conduzem a lugar nenhum e são inabitáveis. Diferente, porém, da atmosfera sombria e claustrofóbica do italiano, as construções de Ana Holck filiam-se à clareza dos planos arquitetônicos modernos - à grade límpida de seus traços e à sua transparência - de onde absorvem a economia das linhas e do desenho.

A arquitetura, sem dúvida, é referência permanente na obra, até mesmo na seleção de seus materiais, mas sempre conjugada ao passado construtivo da arte brasileira, em especial, ao neoconcretismo, legado ativo e renitente em todas as operações artísticas que ainda hoje, no Brasil, persistem na ordenação modernista.

A qualificação lírica da geometria e as especulações afetivas do método neoconcreto têmse mantido em trabalhos de outras gerações, como no de Ana Holck, com desdobramentos obra concretista e das ações ascéticas do minimalismo norte-americano, na medida em que seu desafio é justo encontrar, na repetição dos gestos, a quebra inesperada da série. Afinal, o princípio obsessivo de Ana Holck parece ancorar-se em uma pergunta ou um problema: como contrariar a ordem estável e repetitiva do módulo? Como fazer com que uma estrutura formal definida e racional se deixe infiltrar por movimentos acidentais e involuntários?

O vídeo Contramuro, que Holck realizou em 2009, parece exemplar nesse sentido. Os tijolos, meticulosamente montados uns sobre os outros, edificavam um conjunto de paredes, até o momento do colapso total da construção, em que ruíam em desequilíbrio. Esse trabalho, que revigora os postulados pós-minimalistas, com ressonâncias de Robert Smithson e Eva Hesse, já demarcava o processo da artista: partir de uma forma geométrica e programada para, em seguida, desconstruí-la. Na verdade, Contramuro apresentava-se como a paródia do rigor concreto e minimalista, buscando uma identificação flexível e espiritual da escultura com o mundo ou do objeto com o corpo e a paisagem.

Os materiais de Ana Holck são, por natureza, difíceis. Pré-moldados, com funções definidas na ordem pragmática da construção civil, carregam em si o lastro dessa funcionalidade, não permeável, em princípio, a dobraduras simbólicas. Os tijolos e os pré-fabricados de concreto são objetos que, pela função e pela repetição, se tornaram invisíveis. O trabalho de Ana Holck, portanto, parece querer tirá-los desse limbo, requalificar espiritualmente formas que já perderam valor e presença no mundo cotidiano.

De um hexágono de concreto, módulo utilizado no pavimento das calçadas, ela eleva uma coluna de outros hexágonos, vazados e em acrílico colorido, como a vaporizar seu peso, inscrever e multiplicar seu desenho no espaço e fazer evoluir a forma em trepadeiras dançantes. O módulo sai de si, sai daquele lugar nenhum onde estava adormecido para habitar um lugar improvável, simbolicamente delimitado por movimentos de transporte e transformação. Esse modular. De sua bidimensionalidade primeira, o módulo salta para o espaço real, adquire contornos tridimensionais e ganha corpo, ainda que um corpo volúvel e permeado pelo vazio.

 


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Ademais, passa a produzir uma dinâmica de significação, subjetiva e ao mesmo tempo histórica, antes impermeável a qualquer tecido interpretativo e renegado à ordem imediata do pragmatismo.

O resguardo da subjetividade aqui é sutil, mas potente o suficiente para retirar o módulo de sua passividade e recodificá-lo em uma partitura desconhecida; rítmica e lúdica. O caráter serial das formas de Ana Holck, portanto, sustenta-se por um fio, no limite ambíguo entre o mesmo e o diferente e, à semelhança das paredes de tijolos, quebra-se no ar.

A artista parece perseguir a fluência das matérias no espaço, a reciprocidade entre a opacidade e a transparência ou entre os corpos e o vazio, incluindo nesses jogos a interpenetração da luz, o desenrolar das cadências do movimento e o tempo compassado de seu desdobrar, projetado ao infinito. Sem dúvida, Brancusi e suas colunas sem fim são alusões prováveis, não somente pela sugestão de motivos perpétuos e circulares, como, sobretudo, pelo desenvolvimento de formas ideais e modulares em evolução perene no tempo.

Já fora da geometria pura e instaladas no mundo variável da contingência, as esculturas de Ana Holck são produtos "de situação", moldadas à mercê da temporalidade dos gestos e da flutuação dos espaços, inscrevendo a forma em função da experiência. O fluxo irregular de suas dobraduras mantém o olhar do espectador em constante movimento, e a precisão aparente do módulo é dissolvida, ao inserir-se em um meio múltiplo, em que o fixo tem a potência da metamorfose. O trabalho, assim, ainda que operando a partir de estruturas regulares e estáticas, é uma busca permanente pelo desvio da norma e pela transformação.

Passarelas é outro conjunto de trabalhos que segue os princípios básicos de Holck, desta vez com planos de alumínio curvilíneo. Suspensos por cabos de aço, em tensão e equilíbrio fugaz, neles, acentuam-se a imaterialidade, a dinâmica das linhas e a transparência. Passarelas que se entrecruzam no espaço, que parecem varar os muros e produzir volume com e a partir do vazio; essas esculturas desenham o mundo, mais do que o ocupam. Similares às primeiras esculturas de Franz Weissmann, em especial suas "pontes" e "torres" do final dos anos 50, as passarelas aderem ao espaço e com ele se confundem, instituindo-se como quase-corpos, que flutuam no ar.

A tensão física dos materiais, por si mesmos incorpóreos e pouco tangíveis, concentra-se na sustentação precária das lâminas de alumínio por cabos e pêndulos, instaurando a fugacidade espaçotemporal da obra e o caráter fantasmático de sua volumetria. Passarelas é obra feita pelo traçar musical de graves e agudos, de luzes e sombras, de estabilidade efêmera, quase uma aparição, que opera o invisível como presença.

Ana Holck traça pontos e linhas que rastreiam o fluxo inexorável do espaço e do tempo, pontuando seus ritmos com cortes delicados e precisos. A obra prima por volatizar as matérias concretas da vida comum, para que elas desapareçam ... ou apareçam pela primeira vez.

 

 

Recebido em: 23/3/2012
Aprovado em: 21/6/2012

 

 

1 Ligia Canonglia é crítica de arte
2 ERGSON, Henri apud Friedrich Teja Bach, in catálogo da exposição "Constantin Brancusi: 1876 - 1957", Philadelphia Museum of Art, 1995.