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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2012

 

ARTIGOS

 

A violenta memória do esquecimento(1)

 

 

Elizabeth Cancelli

Professora da USP, doutora e livre- docente em História. E-mail: cancellie@gmail.com

 

 


RESUMO

Tomamos o pós- guerra como período de grande ruptura de interpretação política sobre a ausência de liberdade e a imposição do terror. Este problema acerca da liberdade, entretanto, veio acompanhado de forte apelo aos valores da sociedade industrial, em meio à crítica da violência totalitária, que tornar-se- ia o dilema político por excelência do século XX. A rememoração necessária não só para trabalhar psiquicamente a intensidade dos acontecimentos, o trauma, individual e socialmente, entretanto, mostra cinco contradições que apontamos como de extrema relevância para que se cristalizassem "formas adequadas de rememoração": a construção de imagens e na invocação ressentida, em seu apelo sentimental; em sua vitimização; em sua heroificação; na desimplicação subjetiva que oferece ao sujeito; e no recalcamento do colaboracionismo.

Palavras- chave: violência, memória e História.


ABSTRACT

We take the post war as a period of great disruption of political interpretation about the absence of freedom and the imposition of terror. This issue about freedom, however, came with a strong appeal to the values of the industrial society, amid criticism of totalitarian violence, which would become the political dilemma par excellence of the 20th century. Recollection is not only necessary to work ideally the intensity of events, the individual and social trauma, but shows five contradictions that we aim as of extreme relevance to crystallize "appropriate forms of recollection": the construction of images and on invoking the resentful sentimental appeal; in victimization; in heroizing; on the subjective disimplication offered to the subject; and in the repression of collaborationism.

Keywords: Violence, memory and History


 

 

Nas quatro últimas décadas, tem sido recorrente, em países que sofreram com regimes políticos calcados na força e na violência, o aparecimento de farta bibliografia que postula a fluidez acentuada entre memória e História. Elas seriam fenômenos paralelos, se apresentariam como memória de alguma coisa, cujos objetivos políticos não poderiam ser ignorados. A importância deste correr paralelo estaria no fato de que ambas, História e memória, seriam indicativas de como o passado modula o presente e de como este mesmo passado é moldado pelas percepções do presente. Esta amalgama seria fundamental para a formação da consciência histórica e da memória coletiva. O legado deixado pela violência, por seu turno, ocuparia um lugar de destaque na construção das representações, especialmente devido à força contida em suas imagens.

Neste trabalho, procuro mostrar como, a partir da aceitação desta fluidez entre memória e História, e da força das imagens do legado violento, podemos identificar uma certa transgressão entre memória e História. Uma transgressão que faz prisioneira a rememoração de um passado que pode agora ser lembrado não para o reconhecimento ou para o regozijo, mas para esconder, obliterar. Um passado que é colocado em uma espécie de entrelugar, porque mostrado a partir de representações repletas de ambivalencias discursivas.

Em 1937, Evgeniia Semenovna Ginzburg (2) iniciou sua saga pelas prisões russas, acusada pelo governo de Stalin de fazer parte da grande "conspiração trotskista" que alimentava e justificava a série de campanhas de repressão que se iniciaram em 1936 e que ficariam conhecidas como o Grande Expurgo. Quarenta anos depois, em 1967 (3), concluiu suas memórias e surrupiou- as para fora da União Soviética. É com um trecho de suas memórias que inicio este trabalho. Diz ela, recitando um pequeno poema de Michelangelo:

Doce é dormir; mais doce, ser uma pedra.
Nesta época de terror e de vergonha,
Triplamente bandido é quem não vê nem sente.
Deixem-me aqui, e não perturbem meu descanso.
(GINZBUG, 2010, p. 148) (4).

Incredulidade, espanto, descrença, impotência, isolamento e inconformismo. Todos sentimentos com fortíssima carga política são trazidos aqui em apenas quatro linhas de rememoração. Trata-se de uma manifestação de Ginzburg para revelar, evocar, aquilo que a suposição política de ser Homem, de se distinguir da animalidade, da bestialidade, possui implicitamente: a de se recusar a abrir mão do status de fazer parte de uma coletividade em que humanidade, convivência e solidariedade, além do respeito à pluralidade, são definidoras do convívio entre humanos.

Esta manifestação de evocação se revela, assim, contra o assentimento à bestialidade (ou à animalidade) dos que não sentem e não veem, dos que se refugiaram, ou se refugiam, no passado e no presente, mais preocupados que estavam, ou que estão, com a obliteração e o descaso: com o esquecimento.

Julguei importante trazer este pequeno trecho das memórias de Evgeniia Ginzburg porque nosso argumento de partida para a reflexão sobre memória e História está ancorado na aversão à sinonímia entre memória e verdade e/ou na sua consequente versão de que conhecer o passado seria passo fundamental para que a História fosse descoberta e sanada e, portanto, que ela não se repetisse: na primeira vez como tragédia; na seguinte, como farsa, como disse Marx, em seu trecho de introdução ao 18 Brumário de Luiz Bonaparte, que acabou por transformar-se em uma espécie de refrão na contemporaneidade que, por si só, justificaria o direito à revelação e à evocação (5).

O nosso ponto de partida é o de que a negação da política, ou do status político do Homem, leva, ou pode levar, a humanidade, em qualquer momento de sua História, à busca pela barbárie; e que a obliteração da memória política, por si só, é reveladora do acobrimento que se dá ao terror e à vergonha, à cegueira e ao descaso, consequência quase que imediata deste abandono do homem à sua animalidade e da ausência de cultivo da esfera pública.

Mas vejamos como desenvolvemos nosso argumento:

O boom de rememorar e cultivar a memória ganhou uma nova dimensão no século XX, logo após o final da Segunda Grande Guerra. Um quantidade reveladora de livros e filmes iniciou um grande movimento político de debate em torno dos regimes ditatoriais fascistas, nazistas, comunistas e da guerra civil espanhola. Esta vasta literatura, da qual são representantes Primo Levi, David Rousset, Margareth Buber- Neumann, Germaine Tillion, Vasily Grossman e Romain Gary e, de uma certa forma, George Orwell, por exemplo, estava centrada fundamentalmente na denúncia das atrocidades dos regimes totalitários e ditatoriais e apontava na direção de uma discussão profunda dos pressupostos políticos que embasaram e justificaram a limpeza étnica e a limpeza política do continente europeu a partir dos anos 1930.

Recuperou-se e generalizou-se, após a Segunda Guerra, o termo totalitário, que havia sido criado por volta de meados dos anos 20, com o advento do fascismo italiano, e utilizado pelos próprios fascistas para positivar seu movimento. Primeiramente, a concepção mais intelectualizada de totalitarismo foi dada pelo filósofo italiano Gentile, que destacava a ênfase no estatismo, no caráter religioso do fascismo e na assertiva de que o espírito totalitário do fascismo renovaria a Itália, penetrando todas as esferas da vida humana.

Ao contrário do que acredita o senso comum da literatura política e histórica, havia, no totalitarismo, uma aposta no caráter inovador e não reacionário do regime político, uma vez que as mudanças radicais eram seu ponto de partida, e a aposta em um futuro utópico e de transformação das classes em um todo uno, seu ponto de chegada. Neste sentido, o ativismo de Estado, o fim da sociedade civil, o emprego da coerção e da violência e a disseminação de mitos sociais como forma de fazer surgir uma nova sociedade, eram seus pressupostos, pontos de partida que foram retomados na década de 1930 pelo filósofo alemão Carl Schmitt, o chamado jurista do nazismo, que de forma bastante elaborada adotara o princípio "decisionista", cuja explicação de mundo reside "na vontade política que a gera" (GLEASON, 1995).

Era justamente nesta aposta de futuro e no caráter utópico pela criação de um mundo e de um homem defendida pelos regimes totalitários, e, portanto, na premissa de que os fins justificam os meios, que a geração que havia vivido os horrores instados pela violência de Estado concentrava sua reflexão e suas críticas.

Excluindo-se Primo Levi, que aparentemente não possuía maior envolvimento político, e cujo reconhecimento mundial viria mais tardiamente, o autor que alcançou maior popularidade na denúncia da dimensão utópica totalitária comunista, de seu barbarismo e de sua violência, foi o inglês George Orwell. Seu primeiro livro nesta direção foi Homage to Catalunia (6), título que o autor duramente conseguiria trazer a público em 1938 e que contém uma contundente crítica à participação do stalinismo na Guerra Civil espanhola, com acusações contra a traição de Stalin e à natureza contrarrevolucionária da burocracia stalinista. Em 1945, Orwell publicou sua novela Animal Farm, uma aguda sátira política à ideologia comunista, que anteciparia em quatro anos seu livro 1984 (7).

A repercussão praticamente retumbante de seus livros viria paralelamente à intensificação dos trabalhos acadêmicos que faziam a denúncia dos regimes totalitários ao final da década de 1940, e por toda a década de 1950, e pouco depois de o editor britânico de Orwell, Frederic Warburg, intermediar junto à sua viúva a venda dos direitos autorais de 1984 e de Animal Farm para a produção de filmes ao Office of Policy Coordination, da CIA. Ambas as películas estavam prontas para distribuição em 1956 (SAUNDERS, 2000, p. 293).

Esta não seria a primeira experiência que procurava disseminar a crítica aos regimes totalitários. Mas, ancorada fortemente na literatura, a arte cinematográfica passaria apenas a partir da década de 1950 a explorar o ponto nodal de que a base de sustentação das utopias da contemporaneidade - o nazismo e o comunismo - estava assentada nos princípios totalitários, e a rememoração, o direito à memória, portanto, deveriam estar a serviço da busca e da descoberta da verdade que o totalitarismo insistia em esconder: a do horror.

Na década de 1940, a indústria cinematográfica costurou um certo pacto de silêncio para que se recalcasse a memória do horror. Foram feitos apenas nove documentários (8); e apenas cinco películas dramatizadas sobre o Holocausto foram realizadas: duas produções norte- americanas (The Stranger, de Orson Wells; The Search, de Fred Zinneman); uma coprodução dos Estados Unidos e Alemanha (Lang is der Weg, de Herbert B. Fredersdorf e Mark Golstein); um filme polonês (Ostatni etapa (9), de Wanda Jakubowska); e uma produção Polônia- Israel (Unzere kinder). Já nas décadas subsequentes, foram realizados um documentário e seis filmes narrativos, nos anos 1950; oito documentários e 12 películas narrativas, nos anos 1960; três documentários e 23 fitas narrativas, na década de 1970; 24 documentários e 32 narrativas, nos anos 1980; 66 documentários e 50 narrativas, na década de 90; e 46 documentários e 40 filmes narrativos, na década de 2000 (10).

O Diário de Ane Frank, filme de 1959, ganhador de três Oscars, marcaria definitivamente a maneira pela qual o trauma da Segunda Guerra deveria ser rememorado. Associava-se diretamente a existência do terror aos regimes totalitários e ao antissemitismo. A filmografia exortaria o heroísmo dos movimentos de resistência nacional, a abnegação norte- americana em defender os valores humanitários supostamente inerentes à democracia ocidental, e a vitimização no Holocausto.

Numa projeção, ao mesmo tempo de passado e de futuro, foi comum à literatura e ao cinema trazerem o comunismo como herdeiro não derrotado do terror; como agente de um complô internacional de incitamento ao totalitarismo. A infindável filmografia da e sobre a Guerra Fria, com alguns títulos memoráveis como Atrás da Curtina de Ferro, de William A. Wellman, High Noon, de Fred Zinneman, e On the Waterfront, de Elia Kazan, bem como os de Alfred Hitchcok, como Cortina Rasgada, foram magistrais na construção desta passagem.

Embora as críticas quanto à imprecisão do conceito e suas dificuldades analíticas persistissem ao longo do tempo, o termo totalitarismo acabou demonstrando a força política de sua abrangência ao tornar-se, ao longo de mais de meio século, sendo representado como a grande antítese dos direitos humanos, da democracia e dos valores ocidentais, sobrevivendo, inclusive, à sinonímia que teve por longo tempo ao representar os regimes comunistas e socialistas. Neste sentido, os trabalhos de Friedrich Hayek, Carl J. Friedrich, Zbigniew Brzezinski e Hannah Arendt, nos anos 1950, foram fundamentais. O certo é que este pós- guerra trouxe uma grande ruptura de interpretação política sobre a ausência de liberdade e a imposição do terror. E, apesar de serem constantemente lembradas como conquistas fundamentais e síntese de movimentos políticos que apontavam em direção à defesa e à conquista de direitos políticos, as inglesas Magna Carta (1215) e a Bill of Rights (1689), a francesa Declaração Universal dos Direitos do Homem (1789) e a americana Bill of Rights (1791) eram ainda manifestos excludentes que, em suas essências, guardavam as desigualdades humanas do ponto de vista racial, social, religioso, econômico, sexual e político (11), e que, desta maneira, desconsideravam que parte significativa da humanidade era ainda não cidadã. Sobre esta parcela a quem estava reservado apenas o direito de ser administrada como população (12) é que os movimentos pelos direitos humanos iria voltar-se, a partir da construção de valores da democracia ocidental.

Este trauma da Segunda Guerra e a maneira como ele foi e deveria ser relembrado relaciona-se diretamente a uma parte atuante do Partido Democrático dos Estados Unidos, o Americans for Democratic Action (ADA), do qual faziam parte Eleanor Roosevelt, John Kenneth Galbraith, Walter Reuther, Reinhold Niebuhr e o historiador Arthur Schlesinger. O ADA, criado a partir do antigo Union of Democratic Action, fundado em 1941 (13), identificavase com a ala do partido comprometida com as diretrizes de Franklin D. Roosevelt e foi o pilar do ativismo liberal em torno da Comissão dos Direitos Humanos da ONU, da qual Eleanor Roosevelt seria a presidente.

Teoricamente, este grupo do ADA estava associado desde o final da década de 1940 à própria ideia do fim da ideologia (14), cuja paternidade é dividida entre vários intelectuais politicamente engajados daquele tempo, e que apontavam, de maneira radical, os entraves à ação ou faculdade de discernir, escolher, julgar e decidir das ideologias de esquerda e de direita totalitárias - e contrárias ao equilíbrio através de um modo de governar democrático, de uma economia mista e da renúncia à dominação colonial (15). Aliás, da crítica ao totalitarismo, partia-se agora para a ideia de que este equilíbrio - o governar democrático, a economia mista e a renúncia à dominação colonial -seria a forma de manutenção democrática.

O problema acerca da falta de liberdade vinha acompanhado de um forte apelo aos valores da sociedade industrial e à escolha do desenvolvimentismo e do planejamento econômico para subtrair os países pobres da violência antidemocrática de seus regimes e de sua miséria social. A violência totalitária tornara-se, assim, o dilema político do século XX, e sua rememoração, necessária não só para trabalhar psiquicamente a intensidade dos acontecimentos, o trauma, individual e socialmente, mas para apontar a direção de um futuro. Sua rememoração, entretanto, mostrava cinco contradições que apontamos como de extrema relevância.

A primeira dessas contradições é que o extermínio e a mutilação psíquica e física impetrada pelos regimes totalitários, em especial pela Alemanha nazista, revelavam a barbárie de um mundo que até então se julgava o retrato da civilização, da boa cultura e do centro dinâmico da razão iluminista.

A segunda questão que levantamos é que a diáspora e a reconfiguração europeia do pósguerra deu continuidade à brutalidade, à crueldade e à desumanidade que haviam sido denunciadas como próprias ao regimes totalitários e autoritários. O resultado foi o trauma do próprio ajuste territorial europeu do pós- guerra, que envolveu 14 milhões de pessoas, entre deslocados, repatriados e reassentados (JUDT, 2008), e as guerras civis étnicas e religiosas que se seguiram a este ajuste, sem contar os vingativos e pedagógicos julgamentos políticos que se seguiram.

A terceira contradição é a de que muitos dos julgamentos dos crimes étnicos de Guerra levados pelo Tribunal de Nuremberg se transformaram em espetáculo e em instrumento político de poder, como foi trazido pela já clássica análise de Arendt sobre o caso de Eichmann (ARENDT, 1983).

Uma quarta contradição é que a violência totalitária contra mulheres, negros, homossexuais, comunistas e religiosos pentecostais foi silenciada e negada enquanto trauma e rememoração, quer aquela cometida durante o período de guerra, quer a registrada no processo de libertação (16).

E a quinta contradição que levantamos é que um grande pacto de obliteração, de encobrimento, foi erigido para os crimes de terror em nome da governabilidade europeia e do aproveitamento do capital humano disponível para a reconstrução da Europa, especialmente na Alemanha, e para o aproveitamento no pós- guerra do potencial científico e acadêmico de ex- colaboradores nazistas e fascistas.

Esta gama de contradições demonstra que, ao mesmo tempo que se dizia ser fundamental recuperar a memória, ela era obliterada. A obliteração é, e foi, de muitas formas, acobertada pela maneira espetacular com que a própria cultura de massas passou a tratar do problema da rememoração. Houve uma imposição, e isto é patente através da filmografia, para que se cristalizassem formas adequadas de rememoração, cada vez mais ancoradas em torno da construção de imagens e na invocação ressentida, em seu apelo sentimental, em sua vitimização, em sua heroificação, na desimplicação subjetiva que oferece ao sujeito, e no recalcamento do colaboracionismo.

Todas estas formas, que passaram a ser as legítimas formas de rememoração, e portanto de obliteração, tiveram na indústria cultural e na ideologização do ato de rememorar as aliadas que naturalizaram e legitimaram o ato de ressentir, que é o de retroalimentar o melindre, a zanga, a mágoa, o desgosto e o sofrimento.

Numa espécie de armadilha política, o acontecimento traumático e aquilo que fugira do âmbito da capacidade humana de poder entender passou a ser lido como sinônimo de direito ao resgate de uma memória que se circunscreveu à busca da descoberta da verdade que o inimigo totalitário insistia em esconder: a do terror. Memória e terror passariam a ter uma espécie de sinonímia.

Ou seja, esta armadilha ressentida e apelo ao sentimentalismo construiu uma maquinaria que buscou aprisionar este homem àquilo que a própria barbárie totalitária tratou de construir: o isolamento do sujeito em seu próprio eu: o eu vitimizado. Reafirmou-se desta forma a retirada do status político dos acontecimentos e dos sujeitos nele implicados. Tratou-se o terror como desvio, como loucura. Por isso, o lugar comum de pensar o nazismo e o comunismo soviético como produto de dois doidos (Hitler e Stalin), e não como projetos políticos assentados em premissas utópicas de justiça social. Nazismo e comunismo, no pós- guerra, passaram a ser construídos politicamente como resultado de um desvio capaz de acontecer apenas fora dos regimes comprometidos com os modernos valores das democracias ocidentais.

Implicados na leitura massificada de que só a loucura poderia produzir o terror, não por acaso, o pós- Segunda Guerra viu nascer dois fenômenos distintos relacionados a esta maneira de tratar o trauma. O primeiro deles, o revival da religião em escala global. O segundo, o nascimento de heróis magnânimos. Ambos uma tentativa de dar sentido e valor à vida através da individualidade, como se os valores da intimidade e da esfera privada fossem os verdadeiros constituintes da esfera pública e da cidadania.

O fervor religioso segue esta trilha de postar-se para fora da esfera pública, de isolar o sujeito em seu próprio eu e de pregar o fim do secularismo. Esta religiosidade pretende salvaguardar o universo simbólico de preservação dos valores da civilização, como se ela, a religião, fosse a forma possível de construir um Homem com convicções individuais imaculadas para contrapor-se à barbárie: através de princípios divinos, fundamentalmente em seu espírito de solidariedade e de compaixão. Como se solidariedade e compaixão fossem as determinantes da civilização e da política. Ou seja, como se algo da esfera da intimidade, que é a religião e a compaixão, fizesse possível salvaguardar a humanidade da violência que é, por essência, a negação da política (17). O isolamento do sujeito em seu próprio eu, fora da esfera pública, daquilo que caracteriza a humanidade do Homem (a esfera política), faz possível que esta busca em dar sentido e valor à vida possa ser encontrada através da mão dos portadores da palavra divina: aqueles que se autodenominam à serviço da vontade e, principalmente, da Ira divina (18).

O segundo fenômeno, que se pretende canalizador da forma legítima de rememoração do trauma, e que faz emergir o herói magnânico, parece- nos mais interessante, porque surge acobertado de formas menos perceptíveis de esvaziamento da esfera política, porque retira a barbárie de seu status político e a trata de maneira dramatizada, como desvio de relação entre indivíduos e destes com o Estado. Uma dramaticidade espetacular, cujo apelo principal é a rememoração ressentida. Este sujeito heroificado seleciona superficialmente o que deve ser rememorado, porque se nega à elaboração psíquica e à elaboração política. Quer ser herói, porque superior, próximo à condição de um deus. É o narrador que tem como objetivo reprovar, exortar e repreender, não porque necessita lembrar e tratar do trauma, mas pelo que pretende recalcar, daí sua exortação ao ressentimento; o ressentimento que se apresenta como arma de discurso político, porque se crê portador da verdade, mensageiro do que pode e deve ser feito: um deus tirano da verdade.

Mas se esta é a tradição que nos deixou o pós- Segunda Guerra com a espetacularização do terror, do trauma e do herói, como pensar tratar os efeitos traumáticos da memória deixados pelos regimes ditatoriais que se espalharam na América Latina, e em especial no Brasil, embalados pelo anticomunismo dos ares da Guerra Fria, pelos valores da sociedade industrial, pela aposta no desenvolvimentismo e pelo endeusamento do planejamento econômico para subtrair os países pobres da violência antidemocrática de seus regimes e de sua miséria social, e pela obstinada crença de que a questão social é a questão política por excelência e que em seu nome tudo se pode fazer (CANCELLI, 2011) (19)?

Se a rememoração tornou-se a forma por excelência de livrar- nos do trauma do terror, como trabalhar a fantasia e a realidade traumática de uma forma multifacetada? Como trabalhar o trauma sem heroificar e sem obliterar? E como trabalhar a memória e a História sem atribuirlhes a estatura tirana da verdade?

Duas colocações são fundamentais para o estatuto da História. A primeira é a de que os relatos testemunhais são discursos políticos e, como tal, eles devem ser tratados. Eles são produtos da construção de uma memória coletiva, que existe para além do indivíduo, ligados que estão ao entendimento desta consciência de grupo (20). Se, como afirma Beatriz Sarlo, o testemunho a respeito do terror desencadeado pelas ditaduras latino- americanas (brasileira, chilena, argentina) foi fundamental como atividade de restauração dos laços sociais e comunitários perdidos, seu reconhecimento se estrutura como denúncia contra o terrorismo de Estado (SARLO, 2005) (21). A segunda colocação fundamental é a de que, considerando que a memória é um dever moral e político, além de necessidade jurídica, os testemunhos não se submetem ao rigor, por isso, não são História, presos que estão à tragédia e à sua catarse.

Ao trazermos até nós mais uma vez o poema de Michelangelo rememorado por Evgeniia Semenovna Ginzburg no início deste texto...

Doce é dormir; mais doce, ser uma pedra.
Nesta época de terror e de vergonha,
Triplamente bandido é quem não vê nem sente.
Deixem-me aqui, e não perturbem meu descanso.

... devemos dar ao testemunho as prerrogativas políticas que lhes são próprias: a da prova da denúncia do terror; na dimensão trágica (22) que o horror que representa significa. Mas heroificar os atores da tragédia significa correr o risco de dar ao testemunho o estatuto de História ou mesmo de verdade. Trata-se de um duplo retorno ideológico no tempo. O primeiro, à fetichização cienficista do século XIX, que ousou dar à História o estatuto de verdade e de ciência. O segundo, ao palco político ficcional e massificador da Guerra Fria, que pretendeu, através da heroicização e da vitimização, o esvaziamento da esfera política, uma vez que, ao testemunho, coube o papel de legitimador daquilo que deveria ser objeto de rememoração, no sentido de obliterar o que fosse historicamente inconveniente.

Como já mencionamos, este sujeito heroificado presta-se a selecionar superficialmente o que deve ser rememorado, porque se nega à elaboração psíquica e à elaboração política. Retira-se do importante papel histórico que lhe foi conferido, ao denunciar o terrorismo de Estado e fazer parte da restauração dos laços sociais e comunitários de sociedades que haviam abandonado a solidariedade política (23), para dedicar-se à transformação da tragédia em melodrama. Reveste-se como uma espécie de tirano da verdade.

Em sociedades em que a heroicização justifica-se pela fetichização da verdade testemunhal, tende-se a dar ao testemunho um peso que transborda o das fontes documentais. Aspira-se uma legitimidade que retira o direito público de acesso aos acervos de fontes documentais, garantindo-lhes sigilo e obliteração, e lê-se o terror e a violência como desvio histórico, daí a facilidade em recorrer à demonização e à heroicização, dupla face de uma mesma moeda. Se "nada está arquivado, se tudo está apagado ou destruído, a história tende para a fantasia ou o delírio, para a soberania delirante do eu, ou seja, para um arquivo reinventado que funciona como dogma" (ROUDINESCO, 2006, p. 9). Um culto de si que oblitera a História: moeda perversa do sigilo.

 

NOTAS

(1) Pesquisa financiada pelo CNPq, uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no Congresso Internacional História, Memória e Justiça, realizado pelo Ministério da Justiça e pela PUC- RS, em maio de 2011.

(2) Nascida na Rússia em 1904 e morta em 1977, Evgeniia Semenovna Ginzburg foi membro atuante do Partido e professora universitária. Escreveu suas memórias sobre os 18 anos que esteve no GULAC. Foi a primeira obra de uma mulher sobre os campos de concentração russos.

(3) Originalmente publicado naquele ano na Itália, como Viaggio nella vertigine, foi também publicado em 1967, em Nova York, pela Hartcouth, com o título de Journey into the Whirlwind, com tradução de Paul Stevenson e Max Hayward. O livro divide-se em duas partes: na primeira, sua prisão, julgamento e seus dois anos de solitária. Na segunda, sua deportação para Kolyma, um grupo de prisões no Gulag siberiano.

(4) GINZBUG, Evgeniia. Journey into the Whirlwind. NY, Hartcourt, 1967. p 162. In: JUDT, Tony. reflexões sobre um século esquecido (1901-2000). Rio de Janeiro, Objetiva, 2010. p 148. No original em inglês: Sweet is't to sleep, sweeter to be a stone/In this dread age of terror and shame,/Thrice blest is he who neither sees non feels./Leave me here, and trouble not my rest.

(5) "Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa". MARX, Karl. "O 18 Brumário de Luiz Bonaparte", p 329. In: MARX, Karl. Manuscritos económico- filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1978.

(6) Em português, Homenagem à Catalunha.

(7) O livro saiu na Grã Bretanha em 8 junho de 1949. Quinze dias depois, foi também publicado nos Estados Unidos.

(8) Quatro produções norte- americanas, uma polonesa, uma britânica, uma iugoslava, uma francesa e uma soviética.

(9) The Last Stage, The last Stop, título em inglês.

(10) Estes dados, embora possam não ser precisos, foram levantados em fontes variadas na internet. Seu sentido é demonstrar a tendência filmográfica. Informações com mais complexidade podem ser obtidas a partir do site://www.cine- holocaust.de/eng/index.html, por exemplo.

(11) Em 1919, vários países, inclusive o Brasil, foram signatários da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

(12) Tanto Hannah Arendt como Michel Foucault possuem reflexões interessantes no que diz respeito, respectivamente, ao esvaziamento da esfera pública e à teoria da arte de governar como gerência populacional na modernidade. As possibilidades de análise que Arendt oferece ao redimensionar o problema da escravidão existente nos Estados Unidos como completamente alheio à questão da liberdade e da cidadania, e, portanto, não implicados nos princípios de liberdade e de preservação da esfera pública, fazem possível recolocar a questão política como a questão fundamental da humanização do Homem. Vide a este respeito: ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983; ARENDT, Hannah. Da Revolução. Brasília/São Paulo, Editora Universidade de Brasília/ Ática, 1988; FOUCAULT, Michael. "Governamentalidade". In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

(13) Reinhold Niebuhr, James Isaac Loeb, Murrey Gross (da International Ladies Garment Workers Union) e Melvyn Douglas foram algumas das personalidades marcantes que fundaram a agremiação, baseada no pacifismo em contraposição aos regimes ditatoriais e comprometidos com a administração de Franklin D. Roosevelt. Em 1946, possuía cerca de 5 mil membros.

(14) Um dos principais textos referentes ao final da ideologia é o de SCHLESINGER JR, Arthur M. The Vital Center. The Politics of Freedom. USA, DaCapo, 1988, publicado, originalmente, em 1948.

(15) A este respeito, vide os trabalhos de um outro intelectual engajado no combate às "ideologias totalitárias", especialmente ARON, Raymond. O Ópio dos Intelectuais. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1980. O trabalho foi originalmente publicado em 1955. Segundo Aron, os países engajados na vida democrática seriam: Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Irlanda, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Suécia, Suíça, Grã- Bretanha e Estados Unidos. Mas ideias semelhantes às de O ópio dos intelectuais já haviam sido desenvolvidas por Aron em L'homme contre les tyrans. ARON, Raymond. L'homme contre les tyrans, New York: Editions de la Maison Française, 1944.

(16) Estima-se que cerca de 87 mil mulheres alemãs tenham sido violentadas pelo exército soviético, com plena aquiescência de Stalin e o silêncio dos aliados. Apenas recentemente o assunto vem sendo abordado. Marta Hiller publicou anonimamente, em 1954, o livro Eine Frau in Berlim, sobre suas memórias no período. O livro foi praticamente execrado por rememorar traumas inconvenientes. Em 2003, tornou-se um best seller alemão e, em 2008, foi lançado como filme. A este respeito, ver também: BEEVER, Antony. Berlin, The Downfall 1945. London: Penguin, 2002.

(17) Os recentes livros de Karen Armstrong são sintomáticos da tentativa de resgatar o sentido da humanidade através da tolerância religiosa e da compaixão como fundamentais na vida política. Vide principalmente ARMSTRON, Karen. Twelve Steps to a Compassionate Life. New York: Alfred Knoph, 2010.

(18) Sobre virtude política e as diferenças entre ódio e ira, sugiro a leitura de CANCELLI, Elizabeth. "Pensando a América: de Thomas More a Hannah Arendt, em nome da virtude, da política e de Deus". In: DUARTE, André; LOPREATO, Christina e MAGALHÃES, Marion. A banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.

(19) In: CANCELLI, Elizabeth. O Brasil e os outros: o poder das ideias. Porto Alegre: EDIPUC, 2011. (No prelo)

(20) "Don't we believe that we relive the past more fully because we no longer represent it alone, because we see it now as we saw it then, but through the eyes of another as well?" In: HALBWACHS, Maurice. The Collective Memory. New York: Harper & Row, 1980. p. 23

(21) SARLO, Beatriz. Tiempo Passado: Cultura de la Memoria y Giro Subjetivo. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005.

(22) Tragédia utilizada no sentido aristotélico.

(23) Sobre a ruptura da solidariedade e a presença do conformismo, ver: ARENDT, Hannah. O sistema totalitário. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1978.         [ Links ]

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em: 12/6/2012
Aprovado em: 19/11/2012