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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.2 Rio de Janeiro Jul./Dec. 2012

 

ARTES

 

Ninguém falou que seria fácil: dores e alegrias de ser contemporâneo

 

 

Beatriz Lopes Corrêa de MattosI; Pedro Sobrino LaureanoII

IGraduada em Psicologia Clínica pela PUC- Rio, produtora cultural e coordenadora do Ateliê Clínico Educativo Crianceria. E-mail: beatriz@crianceria.org
IIMestre em Psicanálise Clínica pela PUC- Rio. Doutorando em Psicanálise Clínica pela PUC- Rio. Membro da SPID- Sociedade de Psicanálise Iraci Doyle. pedro@laureanopsi.com.br

 

 


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À Chaim Samul Katz em agradecimento pela abertura
de novos caminhos e vontade de pensar diferentemente.

A peça Ninguém Falou que Seria Fácil começa pelo meio do fim. Um caminho, um olhar contemporâneo, recorte de uma realidade que nunca se totaliza. Logo no início, o chão inquieta-se, quebra-se um paradigma: não como gesto de contestação ou transgressão, mas por simplesmente 'se existir'. Na primeira cena aparece o esboço de uma constelação edípica, através do tema do casal e da criança; mas logo descobrimos que se trata de uma paródia. Édipo não chega a se constituir, não há Pai que nos diga o que devemos amar, por proibi-lo. A dialética entre transgressão, lei e desejo se quebra, e a impossibilidade adentra o palco, como um vento que dispersa os fragmentos- de personagens, histórias, falas, gestos... -, ao mesmo tempo em que os põe a dançar.

Todo um enlace se dá, jogo de cena que desvela as tramas onde se apoiou a subjetividade moderna. Esta na qual, sem dúvida, Édipo fazia sentido: ligando a impossibilidade à norma, e o desejo à transgressão. Ninguém Falou que Seria Fácil, dirigida por Alex Cassal e co- dirigida e escrita por Felipe Rocha, ressoa com alguns dos temas principais da psicanálise contemporânea, se desenrolando num tempo onde o Édipo perde a força de lei, e os personagens deste palco- mundo veem-se confrontados com a impossibilidade como condição de criação.

Felipe Rocha, ator e autor, não tem pena, de si, dos personagens ou dos espectadores. Não poderia tê- la, pois se a tivesse jamais teria tido fôlego para olhar de tal janela e arranjar a cena desta forma. A compaixão descrita por Aristóteles na Poética (1990), como sendo, ao lado da repugnância, um dos afetos que o teatro deveria suscitar, dá lugar a uma espécie de impiedade cuja descendência próxima talvez seja, o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud. A encenação já não nos fornece um olhar piedoso ou uma aversão moral. Trata-se da indecidilidade da faculdade de juízo: Felipe monta uma cena para além das categorias da antiguidade aristotélica ou dos tribunais da Razão moderna. Por isso, sentimos esta estranha inocência que percorre a encenação. Um estranho impulso que leva a pós-modernidade para além do multiculturalismo e do narcisismo, até uma terra devastada de onde o novo se anuncia ininterruptamente.

Desde sua primeira peça, Ele Precisa Começar, a escrita e encenação de Felipe Rocha é oblíqua à modernidade obsessiva encarnada na figura de Hamlet, mostrando que, entre o ser e o não ser, existe um terceiro: o desvio, a criação, que faz coexistir ser e não ser. O campo imaginário é trazido como coadjuvante, não mais subordinado às gestalstens do corpo, para compor a cena como intensidade, força. Composição de figuras não totalizáveis: na crise das representações estáveis de papéis e normas sociais, "o nada a se representar" abre espaço para a "presentificação". Daí a força, a presença intensiva e ao mesmo tempo inventiva de Ninguém Falou que Seria Fácil. A peça nos traz um ar refrescante de ver e rever a realidade que somos. O corpo aberto à produção de novas sensações, memórias, direções. Aqui o sentido não está determinado a priori, ele é construído à medida que o tempo presente se movimenta, se furtando ininterruptamente de um ensimesmamento.

 

Como falar da história, ou do tema, da peça?

O caráter flagrantemente sugestivo das linhas escritas acima não é sem causa. Trata-se da dificuldade que Ninguém falou que seria fácil nos traz de construir uma narrativa coerente, estável sobre uma obra- objeto. De qualquer maneira, tudo começa com um casal desesperado, em busca da filha perdida num país estrangeiro. Ao assistir a peça nos sentimos como uma criança órfã e perdida e será à maneira das crianças que poderemos falar, não sobre, mas com ela.

Para onde olhar, aonde ir, quando não podemos mais decifrar racionalmente os regimes de signos que nos rodeiam, e perdemos os caminhos que estruturavam nossos possíveis e nossas ações? Entre um instante e outro, um corte abrupto, uma quebra na continuidade do tempo medido; diversos espaços coabitam, os mesmos atores encarnam múltiplos personagens. O pouco de narrativa que poderia nos tranquilizar, em meio à pletora de referências, à multiplicidade de apelos, é aquela do casal. Busca-se um casal, espera-se um casal, tal como, em Beckett, espera-se Godot. E é nesta impossibilidade do casal Edípico que começa a autêntica aventura, a verdadeira criação.

Sabemos que Freud (1930) via no desamparo do recém- nascido uma das experiências fundamentais na gênese do psiquismo, experiência de dependência radical em relação ao cuidado do Outro. Ao buscar a si mesmo num Outro, o bebê se humaniza no mesmo gesto em que perde sua identidade substancial, se reconhece e ao mesmo tempo se perde no rosto do Outro. O direcionamento de uma demanda, de amor ou de ódio, através dos primeiros balbucios, gritos, movimentos, torna-se um apelo que jamais será silenciado, ao longo da vida. Uma demanda primária (força de criação)- sociabilidadepática que atravessará até o final a vida de cada um.

Talvez algo deste desamparo esteja colocado em Ninguém Falou que Seria Fácil, principalmente através do tema da criança. Os personagens assumem posturas muitas vezes infantis, e a criança circula entre os diversos atores, como uma Ideia e um Afeto virtuais que se materializam em tempos distintos. Pensamos que se trata, aqui, de uma experiência propriamente contemporânea. Nenhum Outro parece nos responder em garantia, nenhuma mão se levanta, ainda que enganosamente. Pedimos que nos castiguem, que nos odeiem, se ainda não podem nos amar: mas nenhuma voz retorna. O palco assemelha-se a uma imensa cidade estrangeira global. A profusão de línguas, de culturas, de opções, de mercadorias, produz vertigem.

Uma criança perdida numa cidade estrangeira é, de fato, uma experiência de estranheza radical, uma experiência que talvez se coloque para além do desamparo constitutivo do qual nos falava Freud. E não seria isto que a peça apresenta, um desamparo que não pode ser mais dirigido a um Outro, como fiador e garante do desejo? Que não encontra resposta em governos, mercados, heróis, líderes, gurus? Os personagens que parecem possuir entre 30 e 40 anos, possuem arremedos de vida, de identidade, de família; trabalhos temporários, papéis temporários, amores temporários. Nada parece unificar um trajeto de vida, uma identidade, um projeto.

Mas é aqui que algo estranho acontece, algo que talvez se relacione com aquilo que Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra (1998), chamou de grande meio dia: o apelo, a demanda de identidade, de história, de narrativa, quando não encontra eco- ainda que silencioso-, quando nenhuma voz responde, subitamente transforma-se em canto. A orfandade foi transduzida em um espaço transcendental, vazio- pleno, pura criação. E o corpo, aberto à experimentação. No mais profundo desespero, a doença transforma-se em saúde, os balbucios da criança, no riso contínuo e ininterrupto que atravessa toda a peça, como um fio quebrado onde caminhamos à condição de que tropecemos. Pois a criança não é apenas este ser desamparado, dependente, mas também este olhar virginal, que descobre um mundo em cada encontro, que inventa sentidos para além da razão e do cálculo utilitário neurótico- adulto: micro sentidos, pequenas percepções. E a gargalhada de sempre nos desencontrarmos, de nunca sermos nós mesmos. Mambembes, precários, falhos- e a estranha alegria de tudo isso.

Podemos até dizer que o que dá a tônica da peça, o que constitui o paradoxal fio de consistência que sustenta estes fragmentos de personagens, enredos e histórias, é o humor. Uma gargalhada amorosa que nasce da afirmação de uma geração órfã de ideais, de líderes, de papéis sociais estáveis-mas que pode aprender a amar aquilo que ela é. Um amor que não mais se dirige a um Outro como fiador e garante, pois aprendeu que é na precariedade- onde criança, adolescente, adulto e velhice conjugam-se num mesmo acontecimento- que se vive, que se ama, que se cria. O que de criativo nasce quando são todos os possíveis que se esgotam?

E a peça desenvolve-se neste caminho quebrado, tropeçante e jubiloso. É excelente a notícia de que um jovem autor nacional, cuja criatividade já podia ser vista em sua peça anterior, tenha recebido os prêmios "Shell 2011", "APTR 2011" e "Questão de Crítica 2011", todos na categoria autor. De fato, precisamos de novos autores, destes que são capazes de apresentar e problematizar questões contemporâneas sem falsificá- las, apresentando a dificuldade e o desamparo conjugados a uma alta potência de invenção.

A cenografia de Aurora dos Campos, os figurinos de Antônio Medeiros, a luz de Tomás Ribas, a trilha sonora de Rodrigo Marçal, a preparação corporal de Alice Ripoll, a direção de Felipe Rocha e Alex Cassal, e o elenco, formado por Felipe Rocha, Renato Linhares e Stella Rabello, sustentam de maneira brilhante o ar de improvisação precisa que permite que os elementos da cena não se totalizem e deixem a obra aberta ao público, convidando- o a participar, recriando a cena a partir de como é tocado. A música, a luz, o corpo dos atores, o figurino, são tantos outros personagens. Como Presenças que não se limitam a ser acessório de uma trama principal, de uma narrativa englobante. São linhas quebradas, a- paralelas, que compõe um mosaico, entretanto consistente: não estamos aqui numa pós-modernidade que celebra os fragmentos apenas para reintroduzir, sobre eles, o narcisismo. Não há multiculturalismo qualquer, já que a própria cultura, como conjunto de códigos do belo e do justo, encontra-se destituída em nome de uma contínua re- criação, dolorosa e difícil, mas também alegre e necessária.

É tempo de reinvenção, um foguete maravilhoso.

 

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. A Poética Clássica. São Paulo: Cultrix, 1990. Tradução direta do grego e do latim de Jaime Bruna. (p. 19-22; 28).         [ Links ]

FREUD, S. (1930) "O mal estar da civilização". In: FREUD, S. O futuro de uma ilusão. ESB, Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006.         [ Links ]

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra.Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Bertrand, 1998.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 27/09/2012
Aprovado em: 22/11/2012

 

 

* Esta peça do Grupo Foguetes Maravilha, foi editada pela Editora Cobogó na Coleção Dramaturgia que apresenta peças de novos autores do teatro brasileiro, escritas e encenadas nos últimos anos.