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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.5 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Imagens do analista na universidade

 

Images of the analist in the university

 

 

Suely Aires

Psicóloga; Doutora em Filosofia (Unicamp); Professora de Teoria e Técnica Psicanalítica na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB); membro fundador do Centro Outrarte/Unicamp; membro do Colégio de Psicanálise da Bahia. E-mail: suely.aires7@gmail.com

 

 


RESUMO

A psicanálise não nasce na universidade, o que não impede que venha cada vez mais ocupando o espaço acadêmico. Seus modos de inserção, no entanto, não se mostram tranquilos, havendo certo mal-estar nas relações instituídas. Este artigo pretende discutir a entrada e permanência de analistas na universidade a partir de duas imagens: o estrangeiro e o sintoma como formação de compromisso. Tal recurso às imagens visa possibilitar uma problematização geral da experiência, sempre singular, de inserção do analista em espaços universitários.

Palavras-chave: psicanálise; universidade; transmissão.


ABSTRACT

Psychoanalysis is not born at the University, which does not prevent it becoming increasingly occupying the academic space. Its insertion modes however are not smooth, and there are certain discontents in relations imposed. This article will discuss the entry and permanence of analysts at the University from two images: the foreigner and the symptom as compromise formation. Such use of images allows a general questioning of experience, always singular, of the analysts' insertion in University spaces.

Keywords: psychoanalysis; university; transmission.


 

 

(...) não é preciso que se tenha a planta de um apartamento para bater com a cabeça nas paredes. Direi, mesmo, mais: para essa operação, normalmente a planta é bastante dispensável. (LACAN, 1960-61/1992).

Este artigo pretende discutir a entrada e a permanência de analistas na universidade a partir de duas imagens: o estrangeiro e o sintoma como formação de compromisso. Tal recurso às imagens visa possibilitar uma problematização geral da experiência, sempre singular, de inserção do analista em espaços universitários.

 

Transmissão da psicanálise e universidade

Partiremos de uma sequência de afirmações que, se não se colocam de forma claramente interligada, fazem encadear-se por certa historicidade que segue do nascimento da psicanálise, em Viena, ao cenário brasileiro atual: (1) a "universidade não foi o lugar de nascimento da psicanálise" (GAY, 1989) - asserção que nos parece óbvia, mas que julgamos fundamental a fim de destacar uma disjunção lógica, de origem e de endereçamento; (2) "a psicanálise prescinde da universidade" (FREUD, 1919/1977) - afirmação que leva à consideração freudiana de que a formação e transmissão da psicanálise se dão a partir do tripé análise pessoal, supervisão e prática clínica; ou seja, (3) "uma instituição de psicanálise pode vir a sustentar o lugar de formação de novos analistas", sem limitar a formação em psicanálise à sua apropriação teórica.

Em uma perspectiva que considera o cenário brasileiro, afirma-se que (4) "a psicanálise também se ensina nas universidades" (LO BIANCO, 2006), permitindo tornar público o conhecimento psicanalítico, bem como divulgar seus pressupostos. E mais: a presença da psicanálise nas universidades não se restringe ao ensino, pois (5) "a psicanálise esteve presente desde a fundação das clínicas-escolas dos cursos de psicologia em universidades brasileiras" (NICOLAU, 2009), por meio da sustentação de atividades clínicas: atendimento, supervisão e discussão de casos; e (6) "na década de 80, a psicanálise foi acolhida nos cursos de pós-graduação de diversas universidades brasileiras" (MEZAN, 2002), possibilitando "interrogar o saber instituído e produzir um saber contingente" (FIGUEIREDO, 2009), que porta a marca da barra e da formalização. Nesse sentido, é inegável que a psicanálise mostra-se presente nas universidades brasileiras, em diferentes departamentos, em cursos de graduação e de pós-graduação, e que, supõe-se, cumpre um papel. Cabe, ainda, destacar que, por meio de recortes específicos e tomando posições distintas, os autores citados concordam em relação à afirmação: o ensino da psicanálise não corresponde à experiência analítica.

 

 

É em relação a essa última afirmação, que podemos considerar como ponto de chegada dos passos anteriores, que deterei minha atenção. Nessa direção, seguirei um viés particular: o endereçamento do que se fala sobre e a partir da psicanálise. Ou, dito de outro modo, como se diz o que é dito - em relação à psicanálise - no espaço da universidade. Tal proposição se ancora na distinção entre dito e dizer, o que permite relançar o dizer, como ato de enunciação, sobre o dito, indicando os pontos de ultrapassagem de sentido.

 

Imagens de Freud

Dois judeus encontraram-se num vagão de trem em uma estação na Galícia. "Aonde vai?", perguntou um. "A Cracóvia", foi a resposta. "Como você é mentiroso!", não se conteve o outro. "Se você dissesse que ia a Cracóvia, você queria fazer-me acreditar que estava indo a Lemberg. Mas sei que, de fato, você vai a Cracóvia. Portanto, por que você está mentindo para mim" (FREUD, 1905/1977, p. 136)?

Tendo como apoio tal chiste, que opera pela técnica do absurdo e produz uma inversão entre mentira e verdade no ato de enunciação, Freud lança uma questão: "Estaremos certos em descrever as coisas tal qual são, sem nos importarmos em considerar a forma pela qual nosso ouvinte entenderá o que dissermos?" (FREUD, 1905/1977, p. 136). No texto freudiano, uma resposta é esboçada por meio do questionamento quanto ao que determina a verdade, pela relação de ambiguidade que se institui na estória entre judeus. Há certa objetivação do semelhante, que retira o sujeito de sua posição de busca, lançando-o na certeza antecipada sobre a fala do outro - posição tanto verdadeira quanto enganosa. Nesse sentido, Freud alerta: o que os chistes céticos atacam é "a própria certeza de nosso conhecimento, uma de nossas capacidades especulativas" (FREUD, 1905/1977, p. 136).

Não por acaso, Lacan se detém na estória dos judeus na estação de trem ao se referir aos jogos intersubjetivos (LACAN, 1955/1998), de trapaças e enganos, em que o jogo de verdade se apresenta como uma construção intersubjetiva, fruto de uma lógica coletiva (LACAN, 1945/1998). Nesse contexto, é possível construir outro silogismo, em uma paráfrase ao texto lacaniano (LACAN, 1945/1998): (1) um homem sabe o que é verdade; (2) os homens partilham entre si o que é verdade; (3) eu afirmo dizer e saber o que é verdade, por medo de ser convencido pelos homens de não saber diferenciar o que é verdade do que não é e, portanto, ser um tolo mentiroso (cf. AIRES, 2010). É a certeza antecipada que precipita o sujeito na lógica coletiva, sustentando-o no engano e permitindo sua inclusão no laço social imaginário.

No Seminário 9: l'identification (1961-1962), em que o chiste dos judeus na estação de trem é retomado, Lacan problematiza a lógica coletiva por meio dos passos ou pegadas falsas: se um animal pode produzir pistas falsas para encobrir seus rastros ou apagar as próprias pegadas, enganando seu predador, o homem, por sua vez, busca enganar o outro em um jogo que envolve três tempos, reavivando as marcas que acabara de apagar. Considerar os três tempos - inscrever, apagar, reinscrever - implica a suposição do engano como intenção do semelhante. Nesse sentido, podem-se inscrever os traços justo onde já estavam. É, pois, um movimento retroativo que permite lançar o terceiro tempo sobre o primeiro, de tal modo que o traço se reinscreva tanto melhor quanto mais apagado tenha sido, em um jogo de espelhos que se sustenta na intersubjetividade, na intenção e no engano. Nessa direção, o efeito cômico do chiste dos judeus na estação de trem se dá pelo (não) reconhecimento do relançamento do dizer sobre o dito - "vou a Cracóvia!" Um efeito cômico semelhante é obtido no chiste sobre a maionese de salmão (cf. FREUD, 1905/1977, pp. 66-67): um argumento aparentemente lógico se sustenta no equívoco, deslocando e fixando o sujeito em outra posição enunciativa.

 

 

Tomemos uma segunda imagem freudiana, explorada em Psicanálise Selvagem (1910/1977): após discutir as indicações do médico para uma mulher recém-separada e a concepção de sexualidade veiculada, apontando para a incompreensão da teoria psicanalítica que leva ao erro técnico, Freud afirma:

É ideia há muito superada, e que se funda em aparências superficiais, a de que o paciente sofre de uma espécie de ignorância, e que se alguém consegue remover esta ignorância dando a ele a informação (acerca da conexão causal de sua doença com sua vida, acerca de suas experiências de meninice, e assim por diante) ele deve recuperar-se. (...)

Se o conhecimento acerca do inconsciente fosse tão importante para o paciente, como as pessoas sem experiência de psicanálise imaginam, ouvir conferências ou ler livros seria suficiente para curá-lo. Tais medidas, porém, tem tanta influência sobre os sintomas da doença nervosa, como a distribuição de cardápios numa época de escassez de víveres tem sobre a fome (FREUD, 1910/1977, p. 211).

A imagem da distribuição de cardápios para quem tem fome revela, no texto freudiano, a ineficácia de dar informações ao paciente visando remover sua ignorância, pois tal orientação desconsidera a própria noção de inconsciente como saber que não se sabe e que não se confunde com o conhecimento sobre um fato. Ora, o que vemos obliterar-se na relação entre ignorância e conhecimento, para aqueles que se guiam por "aparências superficiais", é a dimensão da verdade, como dizer que se coloca para além do dito. Não se trata, portanto, na perspectiva psicanalítica, de um modo de endereçamento que se sustenta no conteúdo da mensagem, na informação, mas de uma interpelação que inclui o sujeito e permite certo efeito subjetivo; uma enunciação que implica sujeito para além de seu enunciado.

Mais uma vez, ecoa a frase freudiana: "Estaremos certos em descrever as coisas tal qual são sem nos importarmos em considerar a forma pela qual nosso ouvinte entenderá o que dissermos" (FREUD, 1905/1977, p. 136)?

 

Cada analista reinventa a psicanálise

Na abertura dos Escritos (1966/1998), Lacan afirma: "Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si" (LACAN, 1966/1998, p. 11). Essa talvez seja, de fato, a especificidade de Lacan: engendrar um leitor que precise colocar algo de si na leitura e construção do texto. Tal posição de leitura se coloca, segundo Lacan, como efeito de um estilo, noção problematizada ao longo da abertura: "O estilo é o próprio homem", primeira frase deste pequeno texto, atribuída a Buffon. Frase que se faz deslocar sob a pena de Lacan por meio do questionamento do termo "homem", mas também e fundamentalmente pela inclusão da noção de endereçamento. "O estilo é o homem; (...) o homem a quem nos endereçamos?" (LACAN, 1966/1998, p. 09).

Não se trata, portanto, de quem endereça a mensagem, mas a quem nos endereçamos e o que daí advém. O efeito desse endereçamento, para aquele que o enuncia, é a inversão da mensagem: torna-se uma demanda de reconhecimento. Então, para que endereçar essa mensagem, aquela que justifica a compilação dos Escritos? Lacan insiste: "Eis exatamente a questão que nos coloca esse novo leitor do qual foi feito argumento para reunirmos estes escritos" (LACAN, 1966/1998, p. 10). É no contexto de um endereçamento e da construção de um novo leitor, que julgamos interessante problematizar o que se diz sobre e a partir da psicanálise no espaço da universidade.

Em 1967, no Seminário 15: O Ato Analítico (1967-1968), Lacan aponta: "o que quer que nela [na universidade] se profira, não ocasionará desordem", pois tudo isso - em um modo específico de relação com o saber - será "apresentado, posto em circulação, precisamente de forma tal que não leve a consequências" (LACAN, 22/11/1967). Que modo de endereçamento pode vir a ser constituído por um analista na universidade que venha potencialmente a produzir efeito? Tal questão se sustenta na consideração de que a experiência analítica se contrapõe ao ensino universitário justamente pelas consequências postas em jogo, dentre as quais se destaca "uma conversão da posição que resulta do sujeito quanto à sua relação ao saber" (LACAN, 22/11/1967). Nesse sentido, a experiência analítica como um dado de modo de relação com o saber, que impõe um dever de interrogação, produz uma subversão do sujeito e abre "uma hiância verdadeiramente perigosa" (LACAN, 22/11/1967) e não preenchível.

Vazio. É disso que Lacan testemunha, em seu ensino, reafirmando que se entra nesse campo de saber "por uma experiência única, que consiste simplesmente em se submeter a uma psicanálise" (LACAN, 1967-1968/2006, p. 17), produzindo uma modificação nas relações entre sujeito e saber, bem como nos modos de conceber cada um destes termos. Por um caminho próprio, Lacan reitera a distinção entre o que se ensina da psicanálise e o que nela se apreende: o ensino da psicanálise não corresponde à experiência analítica. Nessa direção, problematiza a experiência analítica daquele que "de forma muito acertada é chamado de paciente", indicando que, ao falar de seu percurso de análise, o analisante diz de certo modo de experiência daquele que o analisou, tal como ele próprio, analisante, recebeu. Trata-se de uma construção sobre outra construção, superposição de planos narrativos, cuja enunciação traz as marcas de uma transmissão.

Nesse sentido, "a análise é uma experiência de fala, descontínua, com efeitos ligados ao tempo, à antecipação, ao 'só-depois' [après-coup], com afastamentos entre o enunciado e a enunciação, com intervenções do analista..." (PORGE, 2009, p. 19). Portanto, um relato linear, cronológico, não daria conta do que aí se passa em relação às mudanças de posição subjetiva, em relação ao saber e à verdade. Não há, portanto, relato ou narrativa propriamente ditos, mas uma fala cuja fragmentação testemunha não uma identidade, mas o inconsciente.

Essas pessoas que vêm me ver tentando me dizer algo, devo dizer que eu nem sempre as respondo. Eu tento que isso passe; ao menos eu o desejo. (...) É por isso que eu tentei dar algum testemunho sobre o modo como nos tornamos psicanalistas: o que faz com que após ter sido analisante, se venha a ser analista? Tal como agora chego a pensar, a psicanálise é intransmissível. É embaraçoso [ennuyeux (1)] que cada psicanalista seja forçado - pois é necessário que aí ele seja forçado - a reinventar a psicanálise (LACAN, 1978).

Por constituir-se como único discurso que pode enunciar o inconsciente sem negá-lo, o discurso psicanalítico insiste no esforço para alcançar certo rigor na transmissão. Como dizer disso que se coloca na experiência analítica e que toca os limites do saber em seu litoral com o real? Como fazer passar adiante? Um imperativo de reinvenção se coloca como tarefa de cada um analista, como um teórico da práxis psicanalítica e não meramente um técnico que aplica um conhecimento adquirido. Cabe a cada um analista reinventar a psicanálise no espaço em que se encontra, como aquele que refaz o percurso da psicanálise por meio da articulação entre análise pessoal, estudo dos textos teóricos e prática clínica. E - aspecto fundamental - que se endereça a um outro.

 

Na universidade: outras imagens

Podemos supor que cada analista ocupa, de modo particular, um lugar na universidade. Podemos supor ainda que cada analista exerce, de maneira singular, um modo de transmissão da psicanálise no lugar em que se encontra. Nesse sentido, ao falar como psicanalistas no âmbito da universidade, não falamos desde um lugar comum - a não ser ao preço de falar de um lugar-comum, onde proliferam os chavões e as frases feitas. Para que uma fala tenha efeito de transmissão, deve necessariamente implicar o reconhecimento da alteridade.

É justamente o (não) reconhecimento da alteridade que pode vir a produzir relações tensas entre psicanálise e universidade, parecendo apontar para uma resistência. Mas, resistência de quem? Questão que não se mostra tão simples quando a tomamos mais detidamente, colocando em primeiro plano o endereçamento e os efeitos dessa mesma resistência. Uma resistência, essencial e constitutiva, pode vir a silenciar, produzir esquecimento e relançamento discursivo (FOUCAULT, 2006). Um posicionamento de resistência, por parte dos pós-freudianos, impulsionou Lacan a propor um retorno a Freud (LACAN, 1956/1998), relançando os modos de leitura do texto freudiano. Consideramos que uma dada forma de resistência, que produz esquecimento da condição paradoxal da psicanálise na universidade, pode se dar a ver nos modos de inserção do psicanalista neste espaço.

Diante das relações de tensão e mal-estar que se instituem pela inclusão da psicanálise nos currículos regulares de cursos de graduação e/ou pós-graduação, um analista pode buscar aceitação e assimilação da psicanálise a um campo de conhecimento instituído e reconhecido socialmente. Dilema semelhante pode dar-se nas ações de pesquisa e de atendimento clínico em instituições - pode-se buscar adequação. Nesse contexto, tomo uma imagem: aquela proposta por Freud como sendo a formação de compromisso na criação de um sintoma.

Formação de compromisso. Forma que o recalcado vai buscar para ser admitido no consciente, retornando no sintoma, no sonho e, mais geralmente, em qualquer produção do inconsciente: as representações recalcadas são então deformadas pela defesa ao ponto de serem irreconhecíveis (LAPLANCHE & PONTALIS, 1986, p. 257).

É justamente o tornar-se irreconhecível, como modo de fazer-se aceitar, que torna tal tomada de posição extremamente perigosa para a psicanálise: estar como um analista na universidade que não se faz reconhecer como tal. Os aparentes ganhos desta posição - poderíamos dizer, ganhos secundários - colocam-se em relação a certa redução do mal-estar, em um modo de fazer-se incluir que reduz os conflitos e possibilita alguma aceitação. Mas qual o preço a se pagar por tal assimilação? Ao não se fazer reconhecer como um analista, ainda se pode transmitir a psicanálise, em sua ética? Ou estaríamos no campo do saber instituído, como mais um conhecimento? "Paradoxalmente, a diferença que garante a mais segura subsistência do campo de Freud, é que o campo freudiano é um campo que, por sua natureza, se perde. É aqui que a presença do analista é irredutível, como testemunha dessa perda" (LACAN, 1964/1990, p. 122).

A subsistência do campo aberto por Freud depende de cada analista, em sua tarefa de reinvenção e transmissão da psicanálise, em qualquer espaço em que se encontre, seja na universidade ou fora dela. Caso um analista venha a buscar aceitação na comunidade em que se encontra, tenderá a suprimir os pontos de divergência, os conflitos e discordâncias, destacando as semelhanças que permitem a constituição de um grupo, de certa identidade comum. Manter-se em condição exterior ao campo, à sedução de constituição de um grupo comum, daqueles que falam a mesma língua, implica, por sua parte, certo exílio - preço alto a ser pago. É nesse contexto que a imagem do estrangeiro (2) parece interessante para se pensar a posição do psicanalista na universidade.

O estrangeiro - em sua aproximação etimológica a extraneus, estranho (BERMAN, 2002) - coloca em questão a sua posição em relação ao outro: alter, alienus ou hetero, o outro representado pelo estrangeiro traz questões quanto a sua identidade. Quem és? - pergunta aquele que o encontra. Quem és? - é a resposta dada. A questão que o estrangeiro sustenta causa desconcerto, pois se anuncia como estranha, outra língua - outra linguagem - que implica o questionamento da identidade de ambos. Vindo do exterior, o estrangeiro anuncia que há um fora, para aqueles que se encontram dentro de certa fronteira, e insere, com sua presença, um fora no dentro. Novo desconserto. Insistindo no Quem és?, coloca em questão a nomeação: Como te chamas? Entre nomeado e inominável, o estrangeiro vem de outro lugar e, como tal, porta uma marca de origem que se faz traduzir neste espaço. Sua tradução, no entanto, pode se fazer domesticação ou manutenção do estranhamento.

Na condição de estrangeiro que afirma sua posição, um psicanalista pode vir a sustentar um lugar de questionamento frente ao campo em que se encontra, em certo modo de enunciação que permite que as questões sejam colocadas na ordem das normas e da língua daquela comunidade. O questionamento que permite o fora-dentro, a exclusão interna, traz à tona o (des)conhecido - estar no campo, sem, no entanto, deixar-se assimilar ou homogeneizar; restar estranho, outro, desconhecido, Unheimlich. Sem identidade pré-definida, constituir-se a cada interlocutor, a cada ação de endereçamento, portando uma marca: aquela que se constituiu no percurso de análise pessoal, prática clínica e estudo teórico - marca fabricada e reinventada, a cada novo endereçamento. Nesse sentido, não é possível afirmar uma identidade, no sentido clássico do termo, mas uma identificação - ao traço constitutivo da escolha de cada um analista pela psicanálise, escolha que se sustenta no desejo e na perda de ser. Um devir-analista, não-idêntico, "que permite ao sujeito buscar pela palavra uma designação para aquilo que, vindo de fora, está nele mesmo, embora lhe seja estranho" (FUKS, 2000, p. 76). A escolha de cada analista pela universidade, seu modo de inserção e permanência neste campo de alteridade, porta também uma marca singular. E cada um analista poderá responder a isso de forma simultaneamente própria e alienada.

 

Por uma ética

Retomo, então, uma questão anteriormente feita: Que modo de endereçamento pode vir a ser constituído por um analista na universidade que venha potencialmente a produzir efeito? Se considerarmos, de fato, o que se coloca como endereçamento por parte de um analista na universidade, devemos perguntar-nos: a quem nos endereçamos? E mais: como endereçarmos aquilo que endereçamos? Ou seja, devemos questionar-nos quanto ao modo de enunciação que cada um produz e como esse ato de palavra implica potencialmente um efeito de deslocamento e subversão dos sujeitos envolvidos.

Se, como afirma Lacan, "a psicanálise procede por um retorno ao sentido da ação" (LACAN, 1959-1960/1998, p. 374), o questionamento quanto ao sentido das ações desenvolvidas na universidade por um analista deve estar sustentado por uma ética própria à psicanálise: ética do bem dizer que pode vir a formular uma resposta para a questão - "agiste em conformidade com o desejo que te habita?" (LACAN, 1959-1960/1998, p. 376). A singularidade da resposta a ser dada por cada um coloca-se em relação direta à singularidade da própria questão, bem como à retificação das relações do sujeito com a realidade: agiste conforme o desejo que te habita, a ti sujeito particular?

Nesse contexto, a dimensão do desejo, como operador de uma função, articula-se diretamente à interpretação, de tal modo que se torna impossível interpretar o desejo sem constituir, em sua própria enunciação, desejo (LACAN, 1958-1959). Não se trata, portanto, de alguma revelação de um sentido, mas de uma história do desejo que se organiza na fala, a qual se produz no insensato: metáforas ou condensações, deslocamentos, cujo objeto parece escapar por entre os dedos; ou, melhor dito, por entre as palavras. Nesse sentido, interpretar não é de modo algum reduzir a fantasia ao atual da realidade, mas perguntar-se: "qual é o meu dever?" (SAFOUAN, 2006). Eis um dos pontos de contato entre o desejo e a dimensão ética: o retorno ao sentido da ação, sentido inconsciente cuja ação se coloca em relação ao desejo que a habita; modo de questionamento que permite interpretar o desejo por meio da ação de reconhecer os significantes nos quais ele mesmo se faz reconhecer. Posição enunciativa.

O reconhecimento dos significantes que articulam o desejo faz-se après-coup, por um percurso de análise, e é aí que a função do analista se coloca de forma diferenciada. "O que o analista tem a dar, contrariamente ao parceiro do amor, é (...) o que ele tem. E o que ele tem nada mais é do que seu desejo, como o analisado, com a diferença de que é um desejo prevenido" (LACAN, 1959-1960/1988, p. 360). A consequência de um desejo prevenido, segundo Lacan, é tornar impossível para um psicanalista consentir em deter-se no engodo. E um dos engodos da presença do psicanalista na universidade pode ser o ignorar sua condição paradoxal, o dentro e fora em que se encontra, a condição de alteridade e "estrangeiridade" em relação ao saber instituído na universidade e que poderia levar à confusão entre ensinar e transmitir psicanálise.

Ao visar uma transmissão da psicanálise, cada um analista deve-se haver necessariamente com seu desejo, com o outro a quem se endereça, com um modo de enunciação que implica sujeito. Em sua condição paradoxal, testemunha uma perda e reinventa a psicanálise a cada ato de endereçamento, relançando os restos dessa operação sem ter garantias. De certo modo, trata-se de uma ética que se sustenta no apelo à dignidade do vazio, de um saber fazer com o real, que se nomeia invenção.

 

Notas

(1) Do verbo ennuyer, o termo pode ser traduzido de diversas formas relacionadas aos verbos importunar, chatear, incomodar, aborrecer. Optei por traduzir ennuyeux por embaraçoso em função das assonâncias com outros textos de Lacan, em que ele discute o termo embarras. Cf. Lacan 1962-1963/2005.

(2) Essa imagem me foi inspirada pela apresentação de Betty Fuks no Simpósio Psicanálise e Universidade, em Salvador - BA, dias 06 e 07 de dezembro de 2012.

 

Referências Bibliográficas

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Recebido em: 02/02/2013
Aprovado em: 20/05/2013