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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.5 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2013

 

ARTES

 

Uma tragicômica variação freudiana

 

 

Bárbara Guatimosim

Psicanalista, Membro da EPFCL - Mestre em Estudos literários Fale/UFMG

 

 

 

No princípio era o verbo? Não, no princípio era o ato! Eis o que nos dizem as mitologias.

No princípio era o ato. O ato de criação. Poiesis. Do caos se fez o cosmos. E do nada nasceu tudo. E o ato se fez verbo. E o verbo se fez carne. E os versos tomaram corpo. E foi criado o Universo.

No princípio era o ato. O ato de castração. Entre sangue e deuses, leite e esperma. A via fez-se láctea. O mar vermelho. Com os pés na mãe Terra, a foice de Cronos rasgou o Céu de Uranos. O filho castrou o pai. Da espuma testicular nasceu Vênus. E foi criado o amor.

No princípio era o ato. O ato de transgressão. O fogo sagrado do saber roubado acendeu os homens. A promessa liberada. Ardência do desejo de saber. Prometeu acorrentado. A cobra, Eva e a maçã. A árvore da vida amanheceu violada e o homem conheceu a mulher. O mundo foi criado.

No princípio era o ato. O assassinato do tiranossauro. Entre a opressão e a submissão, o estupro e a escravidão, a liberdade só tem uma saída: morte ao tirano! Seus restos são o silêncio onde jazem pulsantes os despojos da razão. Sua herança é a lei dos homens e a interdição do incesto. E foi criada a civilização.

No princípio era o ato. Entre a canção e o gesto, o corpo se faz ação. E o Homem começou a bailar entre as estrelas. Apolo atinge a lua. Chuviscos em todas as ruas e todas as telas. O cosmos virou um caos. E foi criada a TELEVISÃO. (Quinet, O ato: variações freudianas 2, Cena 6)

Do ato mítico primordial que nos conduz nessa gênese poética até a televisão podemos dar início a uma visão comentada da 2ª variação Freudiana com a Cia Inconsciente em Cena desta vez sobre "o ato". A peça é dramatizada no setting de um programa de auditório, que faz seu o público da peça, um talk show como esses que nasceram com a televisão e que poderia ser tão antigo como a telinha, se os recursos multimídia não situassem o programa no cenário dos dias atuais. O figurino melindroso da apresentadora sugere já de início uma retrospectiva (já fazendo referência a virada dos anos 20 na teorização freudiana, ao ato de Freud que postula a existência da pulsão de morte?). E a presença lacaniana do psicanalista judeu Davi Wunschmann, literalmente "homem do desejo" traz ao palco Freud e a psicanálise, não sem uma dúvida que o acompanha desde o início e é explicitador no fim da peça sobre o que pode ocorrer quando a transmissão da psicanálise deixa-se tomar pela divulgação: "Lacan não via diferença entre o público de seus seminários e o da televisão. Será que não é possível um programa de televisão que não degrade o inconsciente?" Vemos o ator Antonio Quinet emprestar à suspeita de seu personagem uma questão que angustia o desejo de todos os analistas que se expõem ao risco de uma divulgação pública da psicanálise.

 

 

A entrevista começa e com ela a transmissão. Ficamos sabendo que o programa focalizará O ato como já tratou do sintoma e, com isso, conta um pouco da trajetória da Cia Inconsciente em Cena (fundada em 2007), que já teve anteriormente no Sintoma o título de uma montagem dentro da série Variações Freudianas, e que nessa encenação é o próprio nome do programa de TV.

Respondendo à entrevista, o psicanalista Wunschmann parte do ato inaugural de Freud do golpe no narcisismo e na razão do homem, desbancados do senhorio de suas próprias casas, assim como fez Darwin e Copérnico descentrando o homem e o planeta terra.

O ato de nascimento da psicanálise foi um sonho de Freud nos conta Wunschmann: "O sonho da injeção de Irma" que assistimos no espaço do palco reservado às encenações teatrais (um teatro dentro do teatro). Vemos então Freud envolto em suas associações, em plena descoberta, alcançando a revelação do sonho como realização do desejo sexual inconsciente. Um ato onírico de Freud dá início a um novo tempo, com a gravidade convincente do ator Samir Murad, inaugurando o movimento de busca de uma verdade que transgride o limite imposto pela ação humana até então. A emergência do desejo inconsciente, muda seu destino e de todos os homens. O autor se apaga e surge em ato o inconsciente, criador e criatura.

A partir de fundação da psicanálise o enredo da peça desdobra variações do ato com a presença do inconsciente se manifestando nos atos falhos, nas atuações, nas passagens ao ato. Esta última, em sua "saída de cena", é - nos apresentada através de imagens clássicas dos casos clínicos de Freud. O "caso Dora" no estilo do programa torna-se "mini série". Deslizamos nosso olhar para o lado esquerdo do palco e passamos a assistir no telão, que funciona na peça como um palco dentro (e ao lado) do palco, recurso novamente acionado, a representação gravada em vídeo do episódio da cena do lago do "Caso Dora"; e mesmo sabendo o fim da história o texto do diálogo entre o casal nos prepara de tal modo que, em suspense, ficamos esperando ansiosos pela bofetada que Dora desfere no S.K, "aquele imbecil"! como exclama Lacan.

Na sequência assistimos também no telão através do Software "Freud is alive", o pai da psicanálise discorrendo sobre o mal estar na civilização e, em diálogo com Wunschmann, demonstra o quanto o seu anúncio (feliz? infeliz?) do homem como um "Deus de próteses" se confirma na tecnologia dos dias de hoje quando vemos os aparelhos se tornarem imprescindíveis órgãos auxiliares e muitas vezes instalarem os homens em um autismo assistido pela maquinaria eletrônica.

O palco-tela também recebe em "Doco-drama" a cena da análise da "jovem homossexual" com Freud que, no divã, ao contrário do que queria o pai e mesmo Freud, afirma seu desejo e amor pela Dama ao mesmo tempo em que confessa com seu ato de jogar-se da passarela, diante do olhar fulminante do pai, o quanto sua atuação está a ele destinada.

 

 

O ato sexual, como não poderia deixar de ser, ganha também espaço na peça-programa e vemos Davi Wunschmann com o suporte clínico/teórico do psicanalista Antônio Quinet em linguagem simples, mas impregnada de toda sua experiência, enveredar pela questão candente do sexo e do amor ora separando-os em seus gozos distintos, ora aproximando-os pela contingência feliz da fantasia que os une, mas sem nunca fazer Um. O ato sexual é por impossibilidade o ato falho por excelência e desse fracasso a psicanálise acolhe os sintomas. Entre um bate-bola e outro em que Davi contracena com Freud no telão explorando as muitas dimensões do ato, a intriga familiar e o destino do amor de Dora é o tema encenado em segundo episódio da minissérie, para terminar em um terceiro no qual Dora desenrola toda a trama em que se viu enredada distribuindo verdades para todos, sem que Freud seja poupado.

No dinamismo do roteiro temos na sequência um depoimento real de uma ex paciente de Lacan. Convocada às sessões de análise, Christine conta como seu analista interveio chamando-a ao telefone e fazendo a voz de sua mãe. No telão a analisante comenta o quanto essa representação foi definitiva, o quanto esse gesto fez uma diferença de antes e depois em sua vida. Vemos que Lacan atuava como ator. A atuação está na base do faz de conta verdadeiro do jogo analítico, pois o analista não está na cena como sujeito, mas como alguém que se empresta na contracena com o texto que está sendo escrito pelo analisante.

Aproximando do fim vemos a peça, que partiu do ato falho sempre em fracasso, achegar-se ao único ato bem sucedido: a morte, introduzida pela pergunta de Miranda apresentadora do programa: "Se você diz que a vida não se escreve em prosa, como um romance, e sim em ato, a morte é nosso último ato?" E se Davi defende que "nada é levado até o fim, só o ato de morrer"; lembra ainda que "para Freud toda morte é um suicídio disfarçado", consequências de um modo de viver, já que a vida é feita de escolhas e nem sempre vitais, pois se "o desejo é indestrutível, o corpo não".

Se morrer é um ato perfeito, o suicídio é o ato mais que perfeito. Samir Murad à esquerda do palco dá novamente corpo a Freud. No último ato vemos o pai da psicanálise em Londres, para onde fugiu com sua família perseguida pela violência nazista, despedindo-se da vida e de seus amores com o desejo de que seu nome, a psicanálise perdure e lhe sobreviva. A injeção letal que lhe dá seu amigo e médico Max Schur é o alívio último de um tempo terminal só de dores e torturas.

Ao longo das 18 ágeis cenas, em alguns momentos difíceis de seguir, divertimo-nos, não sem horror, com referências críticas diversas ao mundo multimídia e ao discurso capitalista capaz de engolfar as causas mais díspares, inclusive o mais legítimo discurso analítico e o mais singular de um sujeito:

- Aline Deluna fantástica como apresentadora se põe no papel daquelas que são menos que entrevistadoras, e mais perguntadeiras que literalmente metralham interrogações incessantemente, pouco se importando com os entrevistados e com suas respostas.

- A peça critica e ao mesmo tempo vale-se da interação com o público através das redes sociais, pelas quais a enxurrada de mensagens substituem as montanhas de cartas comumente dirigidas aos programas de auditório.

 


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O analista Davi Wunschmann nos faz lembrar a caracterização de Freud do psicanalista possível: alguém nada ideal e mesmo um "pobre diabo" que tem que se haver com forças muito mais poderosas que ele. Freud com isso não faz de modo algum uma depreciação e usa a mesma expressão para Einstein logo após tê-lo conhecido: "Ele é um pobre diabo como todos nós". O comentário de Freud deixa claro estar visando mais o desamparo humano que acomete a todos, uma ruptura no semblante do poder do homem. Essa figura tão pouco prepotente do "pobre diabo" pode ter servido para compor o personagem do psicanalista nessa variante freudiana: Wunschmann, exausto, quase em desalinho, sem nenhuma pose, consegue aos trancos e barrancos fazer sua transmissão, deixar seu recado, sempre com a ameaça de ser empacotado como o próximo produto a ser anunciado. As últimas considerações na peça são do psicanalista:

Tudo começou com uma seringa e terminou com uma seringa. Uma seringa de desejo e uma seringa de morte. Será que a vida é isso? Um longo trajeto para se encontrar uma solução a ser aplicada?
Recomeçar.

Enquanto tudo isso se passa, Zé Eduardo confortavelmente representando ele mesmo esbanja competência na lateral do palco fazendo a trilha sonora que entre empréstimos e originais, ambienta o palco/estúdio acompanhando a variação tragicômica das cenas. Sim, porque a peça consegue ser seriíssima, com momentos de tocante gravidade, e divertidíssima com a leveza lúdica de um bate bola.

Com uma ficha técnica extensa da produção impecável de atos & Divãs e a direção surpreendente de Walter Daguerre que deixa irreconhecíveis os atores principais, temos com O ato uma comédia que inclui o que de mais trágico se vive pela lente do que a psicanálise nos revela. Uma peça que parte do ato e, como saída, nos deixa... o ato. Pois somente o ato torna possível a diferença do desejo fazer diferença em um mundo que tende cada vez mais ao uniforme, que sempre serve aos que consomem o que é bom para todos.

Por fim, essa tragicômica variação Freudiana, ela mesma cheia de variantes, concebida e escrita por Antônio Quinet, toca em um ponto importante e bastante sério: Diante da função de destituição que tem o humor na psicanálise, indo muito além de fazer rir, cabe aos analistas estarem advertidos: a psicanálise tem o poder de ser divertida mas - e a ressalva é de Lacan - só seriamente se divertem os devidamente d'escolados.

 

 

Recebido em: 20/05/2013
Aprovado em: 12/06/2013

 

 

Peça: "O Ato - Variações Freudianas 2". Cia Inconsciente em cena, Antonio Quinet.
Fotografias de Dalton Valério