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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.5 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Da cena trágica à cena analítica

 

From the tragic scene to the analytic scene

 

 

Denise Maurano

Psicanalista, membro do Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro; professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), atuando no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e no Centro de Ciências Jurídicas, Políticas e Sociais. E-mail : dmaurano@corpofreudiano.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda a afinidade estrutural entre a psicanálise e a arte trágica, aproximando o campo da ética ao campo da estética.

Palavras-chave: psicanálise; tragédia; ética; estética.


ABSTRACT

This paper addresses the structural affinity between psychoanalysis and tragic art, approaching the field of ethics to the field of aesthetics.

Keywords: psychoanalysis; tragedy; ethics; aesthetics.


 

 

Curiosamente, o que me levou a avançar num trabalho de aproximação entre a psicanálise e a arte foram questões extraídas da ética na qual se pauta a clínica psicanalítica. Isso significa que pensando acerca da direção da intervenção do psicanalista, acabei por me deparar com a importância da estética para psicanálise.

Comecei pela investigação publicada em meu livro Nau do desejo: o percurso da ética de Freud a Lacan (MAURANO,1995). Nele ressalto que a ética, que implica uma reflexão sobre o agir humano foi, na perspectiva da tradição filosófica, sempre situada em relação a um ideal a se atingir. Entretanto, na abordagem psicanalítica, visa-se focalizar não um ideal, mas os impasses, os conflitos, e sobretudo a desmedida que vigora na relação do homem com sua ação.

Isso é o que fará Lacan afirmar que "é na dimensão trágica que as ações se inscrevem e que somos solicitados a nos orientar em relação aos valores" (LACAN, 1988, p.376). Tendo já dito, anteriormente que "a filosofia de Freud é fundamentalmente anti-humanista, conclui que "Freud deve ser situado numa tradição realista e trágica, o que explica que é à sua luz que podemos hoje compreender os trágicos gregos" (LACAN, 1985, p.273).

Por essa via que me debrucei sobre a relação entre a psicanálise e a arte trágica. Estes dois campos, embora não constituam nenhuma visão totalizante do mundo, levantam reflexões fundamentais acerca da condição humana, as quais evidenciam uma proximidade estrutural importante entre eles. Resolvi, então, buscar, na obra de Freud e de Lacan, elementos para a construção de uma concepção psicanalítica de trágico que pudesse servir à elucidação da ética da psicanálise, tanto no que diz respeito à clínica, quanto no que se refere à intervenção do pensamento psicanalítico na cultura.

Esse pensamento não nos encaminha para a apologia do homem e de seus feitos, mas revela o pathos, o espanto que surge na confrontação com o limite humano, confrontação com o limite do que pode ser visto ou sabido acerca da condição humana, ponto que pode ser designado pelo termo grego Até. Esse termo, bastante valorizado por Lacan, é precioso para nós analistas, pensarmos a ética. Ele designa o móbil da verdadeira ação trágica que aponta para uma certa calamidade fundamental, frente à qual o herói, movido pelo desejo, não se detém, malgrado o risco que sua ultrapassagem comporta.

 

 

Não se trata, para a psicanálise, de abordar esse limite da Até, enquanto um erro -harmatia-um equívoco removível, como pensava Aristóteles. Trata-se de algo bem mais radical que isto, que intervém tanto no pensamento trágico, quanto no psicanalítico.

Instalado no universo estruturalmente errante da linguagem, desalojado das determinações cerradas do mundo natural, onde a codificação genética delimita a eficiência das ações no atendimento das necessidades, o homem busca, por meio do desejo, transpor a fenda cavada pelo corte com o natural. Na emergência do desejo, Freud localiza a fundação do psiquismo, suas operações simbólicas e, correlativo a estas, a invenção do sentido. Desta forma, para o homem, as coisas não são o que são, mas o que representam.

Desamparado, prematuro, desabrigado do campo das determinações naturais, o bebê humano torna-se presa do universo da linguagem, e é atraído para esse universo pela imantação do desejo do Outro, que lá estava. Tomando o Outro como referência na constituição de seu próprio desejo, paga com o assujeitamento o preço de seu ingresso no campo da linguagem, campo humano por excelência. Assim, passa a chamar-se sujeito, ou seja, subjectum, posto debaixo.

O que se configura como cultura, ethos, morada da condição humana, é o que se tece em torno do Outro enquanto absoluta alteridade, onde, paradoxalmente, se ancora o desejo onde o sujeito abriga o mais essencial dele mesmo. Ponto de exterioridade íntima, - extimidade, no dizer de Lacan -, em torno do qual o inconsciente se constitui como discurso do Outro. Nessa referência / reverência ao "de fora", o sujeito situa-se como suplicante, arremessando demandas que visam "acertar na mosca" do desejo e calar sua inquietação, operação incansável, que deixa sempre um resto que testemunha a indestrutibilidade do desejo. E assim, seguimos desejando.

Para Freud, a constituição da cultura é correlativa do assassinato do pai, como polo de organização da lei, do pacto que visaria colocar uma ordem nas coisas. A ambivalência na relação a este mito organizador das paixões humanas traz como consequência a culpa, que aparece num limite exterior como temor, e que provoca a retenção do homem no "serviço de bens", ou seja, na preocupação com a conservação da vida, e com as garantias imaginárias. Assim, o que vim a propor em A face oculta do amor: a tragédia à luz da psicanálise (MAURANO, 2001) é que a história do pensamento, assim como a história da arte, e tudo o que envolve os encaminhamentos da cultura, mostram o desfile, ao longo do tempo, de diferentes valores erigidos, em Nome do Pai, aos quais se pediu uma resposta que estancasse a errância, e fechasse com um sentido as aflições do existir humano. Cernir a vida com um sentido, apreendê-la no que se pode nomear, eis aí o mais essencial da função paterna, função original e iniciadora da existência do símbolo.

Entretanto, tanto a arte trágica, quanto a psicanálise, embora sendo frutos da cultura, emergem como uma ruptura com o pensamento corrente. Não permitem a obturação da falha que existe no saber, não reduzem a vida à representação, e denunciam a impossibilidade de tais valores erigidos em Nome do Pai, de calarem o enigma da existência.

Nos dois campos, tais valores são expostos em queda, nos trâmites de seu ocaso, o que é bem caracterizado pela posição de fim-de-linha na qual se esboroa o herói trágico, que, no entender de Freud, encena a queda do pai. Isto vem caracterizar o espaço entre-duas-morte (LACAN, 1988, p.327), onde se desenrolam as tragédias. Espaço situado entre duas fronteiras que não coincidem. Uma é a morte de fato, ocorrida quer seja por acidente, velhice, ou o que for. Outra é a perspectiva em que a morte é visada como meio de eternização, passagem para a posteridade rumo à superação da finitude, na afirmação do desejo.

Tanto a tragédia, como a psicanálise apontam, portanto, para o que se endereça para além do mito do pai. Lacan destaca, ao longo da história, diferentes formas de incidência da função paterna. Isso me inspirou a tentar localizá-las nos diferentes valores de sustentação da cultura que se mostram em queda na tragédia grega, na tragédia moderna e na tragédia contemporânea, respectivamente.

A tragédia grega abordada, sobretudo, a partir da trilogia tebana de Sófocles, reflete o momento da constituição da cidade, momento de nascimento do Direito como via privilegiada de organização da cultura. Expõe-se nela o apelo à lei como tentativa de responder aos impasses da existência. Tal apelo à lei, seja esta referida ao oráculo, aos deuses ou à cidade, é exibido na tragédia na desmedida do esgarçamento de seus limites, até que, pelo efeito mesmo desse esgarçamento, tal valor privilegiado se rasga, e deixa o herói ao desabrigo. Ultrapassando a Até, o limite onde se sustenta a existência humana, tanto Édipo, quanto Antígona encontram o termo radical de seu desejo, ao preço, entretanto, de sua aniquilação como sujeitos. Nessa dimensão de dessubjetivação, ou seja, de queda subjetiva, encontram, paradoxalmente, o mais essencial deles mesmos, para além de todo narcisismo, até mesmo aquele indispensável para sustentar a continuação da existência, o que mostra o risco dessa ultrapassagem para o homem comum.

 

 

A tragédia moderna, recortada aqui, sobretudo por meio do Hamlet, de Shakespeare, e da Atalia, de Racine, focaliza a vigência da hybris, do exagero, num apelo à razão, e ao que pretensamente esta sustenta: a subjetividade. Tais elementos, a razão e a subjetividade, são hiperinvestidos neste período. Descartes, o pai da Modernidade, propagou sua analogia entre ser e pensar. Disso decorre o contraponto da loucura, seja ela de Hamlet ou Ofélia, ou de tantos outros personagens trágicos deste período, e o contraponto também da vacilação do sentido e do domínio da fé, demonstrada na tragédia Atalia. A vigência da dúvida, ser ou não ser, a hesitação na ação, a problematização do sentido das coisas, revelam o fracasso da pretensão da razão de cernir, com o saber, a amplitude da vida.

 

 

Na Contemporaneidade, diferentemente desse apelo à lei ou à razão, o que é privilegiado é o valor da libido, com tudo que circula em torno da tematização do amor e da sexualidade. Como a tragédia contemporânea O pai humilhado, de Paul Claudel, bem o denota, através da sedutora imagem da personagem cega chamada Pensée, o desejo de pensamento da Idade Moderna torna-se pensamento de desejo na atualidade. Foucault (1976) revela o quão recente é o termo sexualidade. Apenas a partir do séc. XVIII começa a se constituir um discurso sobre a sexualidade. A arte erótica da Antiguidade, cuja função era essencialmente estética, sem caráter regulador ou normatizante, cede aqui à ciência sexual, que visa a apreender no discurso o que se passa na dimensão enigmática do amor e do sexo.

O amor e o sexo são na Contemporaneidade chamados a responder pela existência, chamados a curar a ferida da falta-a-ser que aí vigora. A psicanálise surge neste contexto, surge em função exatamente dessa demanda. Mas, congruente com sua perspectiva trágica, não aparece para endossar esse apelo, mas para esgarçá-lo até que ele se rasgue, e revele quão desmedida é a pretensão de obturar a vida com um valor unitário.

O Nada, em torno do qual a existência gravita, não é tomado pela psicanálise abstratamente. O conceito freudiano de castração vem indicar a configuração psíquica da perda do "natural" com a qual o sujeito paga sua inscrição no mundo simbólico. O phallus, monumento na Antiguidade de exaltação da vida, símbolo da plena turgescência vital, vem indicar o que é visado pelo sujeito, exatamente por ser o que lhe falta.

O sujeito não habita a plena turgescência vital, embora a ela esteja referido na busca de fisgar o que lhe falta. É essa falta do pleno que opera na positividade da busca que o faz desejante. Se tentamos localizar imaginariamente o phallus no corpo, na sua relação com o pênis, é exatamente na medida em que o pênis serve para configurar um objeto que se destaca, que pode ser destacado ou faz falta, por onde adquire seu valor significante, prestando-se assim a meio de comparação, unidade de medida do valor do sujeito, de sua potência vital. Algo que, não pertencendo efetivamente a ninguém, sendo o que se situa sempre alhures, funciona como o estopim para circulação do desejo.

Determinados objetos são investidos de valor fálico, especialmente na medida em que se apresentam como o que faz falta. A ênfase dada na contemporaneidade às relações de objeto, maneira pela qual a psicanálise designa os laços de amor, denuncia o que, nos encaminhamentos de Eros, passa pelo apego fálico, mesmo que vise o que se situa para além deste, como veremos mais abaixo.

A inflação libidinal, tentativa de redução do psiquismo à sua dimensão econômica, parece ter aberto campo para o surgimento da psicanálise, que acolhe essa demanda para desvelar sua desmedida pretensão. Mas também é, a meu ver, a pedra de toque na profusão de teorias econômicas sideradas pelo valor do objeto na relação entre produção e consumo.

No caso do capitalismo, objeto, reduzido a seu valor de mercadoria, é avaliado segundo a quantidade abstrata de dinheiro que representa. O dinheiro só interessa porque acena com a possibilidade de acesso ao gozo do phallus, via imaginária de obturar a falta que vigora na relação de objeto.Da mesma forma, a abundância de seitas que se alastram a cada dia vem no rastro desse apelo exagerado ao amor, tomado aí como meio de transporte para o Além, de promessa de encontro da plenitude, de acesso ao gozo, onde obviamente não haveria nem falta, nem desejo.

Para a psicanálise, o apelo feito a Eros, à pulsão sexual, não exprime a totalidade da dinâmica psíquica. Ao lado da pulsão sexual, amalgamada a ela, age silenciosamente a pulsão de morte, o império do não-senso, que se opõe aos esforços da sexualidade . Não se pode então reduzir o trabalho de Freud à referência à sexualidade, ao que gravita em torno do phallus, malgrado a importância disso. A participação da morte na vida faz aí sua incidência, e é reconhecida tanto na teoria, quanto no rigor ético da clínica psicanalítica.

Na arte trágica, a dimensão de horror que isso porta, o "antes não ter nascido" (SOPHOCLE, 1964, p.294) proferido pelo sábio Sileno (NIETZSCHE, 1977, p.50), e que ganha tantas versões em diferentes tragédias, é transfigurada pela presença da música e pela beleza das ações e da cena, o que a purifica de toda a amargura e desencorajamento que aí poderiam se alojar, e lhe dá uma perspectiva de celebração da vida em todas as suas dimensões, mesmo aquelas em que se abriga o sofrimento. Não se pretende nela a destituição do sofrimento da vida, o que amputaria davida uma de suas dimensões fundamentais. É a expansão da vida, e não sua conservação, o que aí vigora. Aqui uma aproximação com a interpretação nietzscheana da tragédia não é mera coincidência.

E quanto à psicanálise? Se a sua ética também não recua da entrada nessa zona de horror, o que atuaria como elemento transfigurador para tornar possível a abordagem desse insuportável?

Proponho, por um lado, que a regra fundamental da psicanálise, na qual o sujeito é convocado a dizer não importa o quê, marcando-se com isso a primazia do significante sobre o significado, evidencia a dimensão fundamental do som, da musicalidade da fala, como o elemento que encoraja adentrar em terrenos de outro modo impossíveis de serem penetrados. Sem dúvida há uma dimensão de busca de significação na psicanálise, manifestada na busca da lógica do fantasma, ou da fantasia fundamental com o qual o sujeito veste seu eu. Mas esse percurso de apelo ao sentido é realizado, exatamente para ser ultrapassado, na medida em que isso for possível, donde advém a ideia do final da análise como travessia do fantasma.

Por outro lado, há ainda o que anima este trajeto. Sugiro que a dimensão da beleza enquanto elemento transfigurador participa também da psicanálise, por meio da relação, atestada desde Platão, do amor com a busca do belo.

No Banquete, Platão escrevendo sobre o que Diotima ensina para Sócrates, sublinha um sentido amplo de amor, no qual a busca do belo não se coloca como objetivo de complementação, mas sim elemento de inspiração para a reprodução, seja pelo corpo, seja pela alma. Assim, o belo interessa não como um objetivo em si mesmo. Não pelas propriedades particulares a um objeto bonito. Desse modo algo belo incita uma visão que transpassa a opacidade de um objeto e deixa ver mais além. Daí inspirar reproduzi-lo, remetendo-o para além dele mesmo. O amor coloca-se portanto, não como objetivo, mas como meio de geração, de engendramento, promovendo assim "a imortalidade compatível com a natureza mortal".(PLATÃO, 1949, p.140).

Não foi à toa que Lacan valeu-se do Banquete, tão amplamente, em seu seminário sobre A transferência (LACAN, 1992). O processo psicanalítico tem como motor o amor, nele contextualizado como transferência. O surgimento desse efeito da beleza que transporta o sujeito para além do apego ao objeto ( no caso, o analista) dando-lhe sua dimensão de infinitude, depende da forma do manejo do amor na análise. Efetivamente, o analista não fim, mas meio. Busca-se que a ênfase na demanda de ser amado se desloque para a celebração da atividade de amar, para o "dom ativo do amor". Nesta perspectiva, o amor toma a forma inapreensível do belo. Opera como um véu que manifesta como imagem o que se localiza além, enquanto falta. Se, por um lado, o amor coloca em função a dimensão imaginária da relação de objeto, por outro lado, por sua relação à falta, mostra a dimensão do Real intangível que vigora no seio dessa mesma relação, na medida em que nenhum objeto pode responder à existência do sujeito, nenhum objeto a pode autenticar. O manejo do amor na psicanálise tem essa direção ética, o que o coloca não como meio de complementariedade, promessa de obturação da falta, mas como via de reconciliação com a atividade desejante. Isso é o que leva Lacan a dizer que só o amor pode fazer o gozo ceder ao desejo.

Assim o que é enfatizado não é propriamente a relação ao objeto, mas seus impasses, a falta que aí opera na positividade de uma busca, que, transpondo o que é perecível, aponta uma dimensão de infinitude, aponta um mais além do objeto. No campo do amor , encontramos o limite de toda a nossa possibilidade de controle, de asseguramento, porque o mais essencial do amor resiste ao saber. Amar portanto, implica um fazer com a falta, com o desamparo.

A operação de catharsis, fundamental na tragédia, continua a ser de interesse para a psicanálise, desde que interpretada como meio de purificação do temor e da piedade, que são as paixões que detêm o sujeito em seu encaminhamento em direção ao desejo. O desejo, definido como metonímia de nosso ser, não é apenas o que se modula na cadeia significante, mas é também o que corre debaixo, "que é propriamente, o que somos, e também o que não somos, nosso ser e nosso não-ser"(LACAN, 1988, p.371). Então é preciso pagar o preço do não-ser, o preço da perda da ilusão de encontrar consistência por meio do objeto, que é caracterizado por Lacan como objeto a, o objeto sempre perdido, e que por isso mesmo, vira causa de desejo, ponto extremo da destinação do herói em seu percurso.

A arte trágica, que se origina no culto à Dionísios, deus do vinho, implicando por aí uma elegia ao estado de "fora de si", tem etimologicamente o sentido de canto do bode, animal imolado em homenagem a este deus. Proponho que o "bode", o "animal sacrificial" imolado na psicanálise é o atrelamento narcísico do sujeito ao phallus. A presença do paradoxo, que estrutura a tragédia, tanto quanto o inconsciente, vigora também na cura analítica. Isso porque, se o que é visado no trabalho analítico é o acionamento da função do Nome-do-pai, naquilo em que esta mostrou-se deficitária para a regulação simbólica, a cura mesma pretende, entretanto, levar o sujeito a poder dela se passar, ou melhor, a poder ultrapassá-la. Eis aí a dimensão do que se situa na tragédia como queda do pai, perda de garantia onde é tocado o registro do que está para além do domínio do phallus. Ponto onde se localiza mulher no sentido de enigma absoluto, no sentido da alteridade absolutamente radical, grafado conforme proposta de Lacan, com uma barra sobre o artigo definido A..

Assim toda a análise, na medida do possível, conduz em direção mulher. Diria que esse é o ponto limite do saber, do sentido, da representação, que está em uma relação de vizinhança com o Nada ao qual chega o herói na tragédia, para ir até o fim com o seu desejo. Ir até o fim com seu desejo, na psicanálise significa ultrapassar essa ancoragem do sentido, da espaçosa subjetividade, para tocar um Nada que mostra bem seu valor efetivo, dado que é tudo o que resta. Curiosamente, essa relação do trágico com o feminino nos conduz a uma outra via de investigação da qual temos a pista através das observações de Lacan no Mais ainda... (LACAN,1982) quando faz referência a sua aproximação à expressão barroca. Se mencionamos o Barroco, é porque este, em sua relação com o feminino, nos serve de alavanca metodológica para melhor transmitir a especificidade da perspectiva psicanalítica. Só para situá-lo, como vocês devem saber, apenas no século IX, com Wölfflin (1952), que o Barroco ganhou status de estilo de arte. Até então, era referido como uma degeneração do Clássico, ou arte grotesca, por mais que seus artistas encontrassem penetração no campo social e religioso.

O Barroco diz respeito a um tipo de expressão artística que associa esplendor e impureza. Nele, uma identidade a partir dos defeitos é transformada em eloquente afirmação da natureza e assim, a vida pulsional não está encoberta pelas exigências de harmonia e ordenação que vigoram na perspectiva clássica. Trata-se de expressar a infinitude do ser na dimensão finita da natureza e do humano. O sujeito apresenta-se impregnado de mundo, e mesmo confundido com ele. Por isso a noção de "dessubjetivação" seria aquela que paradoxalmente, parece que melhor designaria a subjetividade barroca. Ela refere-se à ideia de um sujeito em evasão, imbricado no que o circunda.

No barroco há uma inspiração musical e de abundância, remetida a uma melodia infinita. Ele é voltado para as forma que voam. Ele não recua da designação de arte do grotesco se, com Maffesoli, considerarmos que grotesco remete a grota, e "as grutas úmidas remetem, no imaginário social, aos mistérios do vazio inquietante mais fecundo"(MAFFESOLI,1996, p.205). Essa expressão encontra-se aqui sendo pensada não como restrita a arte relativa a um certo período, mas como um modo de orientação do psiquismo. A arte aí se faz afirmação e sustentação do espaço constituído pela Coisa que enquanto perdida para o humano, seria o ponto de partida de todo seu movimento de busca. Neste ponto, revela-se a fecundidade do côncavo, do vazio, do não proeminente, do não fálico, como emblemáticos de um nicho tranqüilizador, nas palavras do autor citado.

O que queremos destacar é que, por essa via, o furo pode ser acolhido por certos recursos que a vida e certas expressões da cultura como o barroco, a tragédia e a psicanálise disponibilizam. Tais expressões da cultura, talvez descortinem uma outra relação ao gozo, o qual, ao invés de regozijar-se narcisicamente com a afirmação fálica da distinção da identidade, remete-se a um movimento de entrega, no qual vigora uma transcendência do "si mesmo". Tal gozo cinge a dessubjetivação, operando uma torção que evidencia certa relação ao feminino, que não sem razões se avizinha da mística. O que aí se apresenta é um campo que excede ao delimitado pela cultura fálica, e o saber desse excesso não é senão savoir-faire - saber fazer com a falta.

Com isso se indica uma modalidade de gozo que não é do objeto, não é do Um, é gozo Outro, articulado à falta que vigora num certo "dom ativo do amor" que, como mencionamos acima, inspira-se na beleza porque nela, o ser fecundante "se dilata, engendra e produz"(PLATÃO, op.cit., p.140), palavras de Diotima, quando esta, no Banquete, ratifica a significação originária do amor, antes de ter sido confundida com o imbróglio: de dois fazer um. Ou seja, revela por que via, a falta, fonte de horror, pode transfigurar-se em motivo de celebração, de modo que pela relação à beleza, o homem se faz criador, e participa com sua natureza mortal do que é da ordem do divino.

Nesse sentido cabe ao amor analítico a definição aludida por Lacan, referida a uma citação de uma parábola bíblica na qual é dito que "amar é dar o que não se tem". Dar o que não se tem é dar a falta (o que não se tem). Mas é óbvio que isso só é indício de amor, na medida em que dar a falta for oferecer possibilidades de operar com ela. Trata-se, portanto, de produzir a partir mesmo dessa falta. Isso porque ela é irredutível, como revela o fracasso dos obturadores imaginários que tentam suprimi-la. Toca-se aí a questão da transmissão de uma dimensão Real da experiência, que em nosso caso é a experiência analítica.

Nessa perspectiva estamos a léguas de distância dos ideais de independência, autenticidade, e harmonia, alardeados por alguns ideários filosóficos e por muitas promessas de cura milagrosa. A cena artisticamente trágica nos interessa por sua coerência com o que a vida nos revela, mas também por sua potência transfiguradora. Por possibilitar uma forma de não recuar do que inelutavelmente nos aguarda, e nos oferecer meios de poder lidar com isso.

A psicanálise encontra-se nessa mesma direção, já anunciada por Freud com a epígrafe por ele escolhida para abertura do texto considerado inaugural de sua invenção: Sobre a interpretação dos sonhos. "Se não posso conciliar com os deuses celestiais, moverei os do inferno" (FREUD, (1900/1988, p.1). Certamente, há muitas coisas entre o céu e a terra, e há também até o que excede ao céu e a terra e inclusive os envolve. A psicanálise nos convoca a esse movimento que não desconsidera o recurso às potências do inferno. Com Lacan, parece ficar ainda mais evidente a proposta de que arriscando-nos pelo "continente negro" - maneira pela qual Freud refere-se ao feminino - , nos despertemos para a Outra Cena onde vigora a vida não amputada da morte. Eis nossa proposta de percurso da cena trágica à cena analítica.

 

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Recebido em : 22/07/2013
Aprovado em: 15/10/2013