SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número2No suficiente poâteTommy com Freud: do LSD ao DSM índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.5 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

A arte como laço dissidente: nota sobre o Puxador Paisagem de Laura Lima

 

Art as dissident bond: note on the Landscape Handle by Laura Lima

 

 

Tania Rivera

Psicanalista e professora do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: taniarivera@uol.com.br

 

 


RESUMO

O ensaio propõe como hipótese que a dissidência seja tomada como um tipo de laço social que oferece um contrapeso à concepção freudiana da massa. Através de um diálogo com Homem=carne/mulher=carne Puxador Paisagem (1999-2013), trabalho de Laura Lima, tentamos trabalhar a noção de "gesto dissidente" como um convite fundamental endereçado ao outro pela arte. Em vez da significação e da identificação, o laço dissidente teria como base a transmissão e o efeito de sujeito, e implicaria um reviramento do Imaginário de modo a deixar que surja algo a respeito do Real.

Palavras-chave: Arte Contemporânea; Dissidência; Real; Laura Lima.


ABSTRACT

This essay proposes the hypothesis of the dissent as a kind of social bond that offers a counterweight to Freudian conception of the mass. Within a dialogue with Laura Lima's work Man=flesh/woman=flesh landscape handle (1999-2013), we try to conceive the notion of "dissident gesture" as a fundamental invitation addressed to the other by art. Instead of signification and identification, the dissent bound is based in transmission and subject effect, at the same time it leads to a reversal of the Imaginary to let emerge something about the Real.

Keywords: Contemporary art; Dissent; Real; Laura Lima.


 

 

Todo abismo é navegável a barquinho de papel.
Guimarães Rosa

A instalação Homem=Carne/Mulher=Carne -Puxador Paisagem (1999/2013), da artista mineira radicada no Rio de Janeiro Laura Lima, foi apresentada em 2013, na série de exposições intitulada Por Amor à Dissidência, no Museu Universitário de Arte Contemporânea, Universidade Nacional Autônoma do México (MU AC).

Um homem nu tem nos ombros alças de uma fita muito resistente, que se ramifica em outras fitas do mesmo material, as quais seguem, como uma teia, pela parede do museu e ganham o exterior, enodando-se a pontos da arquitetura e da natureza ao redor do prédio. O homem empenha-se, com força, em mover tudo isso para dentro de uma sala de exposição.

Puxando a paisagem para dentro do museu, esse trabalho questiona, sem dúvida, os limites desta instituição e do próprio campo de visibilidade da arte. Seus fios, dialogando com a bela arquitetura do prédio, levam-nos de dentro para fora do museu e, em seguida, novamente para dentro da sala de exposição - do lugar reservado à contemplação de objetos de arte para a natureza e para a vida, e, em seguida, novamente para a arte. Podemos ver, nas imagens que acompanham esse ensaio, o jogo fora-dentro que esse trabalho realiza, valendo-se da transparência do vidro e em diálogo com a arquitetura de linhas retas do prédio.

 

 

Ganhar o espaço vivencial, eventualmente pelo apelo à presença real do corpo, é uma aspiração da arte contemporânea que vai de par com o intento de criticar a representação como imitação, como mímesis da realidade, para abrir o espaço im-previsível do sujeito. Da imagem ilusória e encobridora sustentada pelo reflexo do corpo próprio no espelho (que costumo chamar de imagem-muro), pretende-se atingir a imagem-furo, capaz de transmitir algo do Real como registro que insiste, fazendo vibrar e oscilar o imaginário, sem chegar jamais a se inscrever inteiramente no simbólico (cf. RIVERA, 2008).

Lacan, com sua necessária crítica à primazia do imaginário na psicanálise, segue um eixo fundamental à arte e à literatura de seu tempo, enunciado pelo grande Stéphane Mallarmé já em 1885: "o moderno desdenha imaginar" (MALLARMÉ, 1998). Além de desdenhar, o homem do século XX desconfiava das imagens e buscava modos de assegurar a elas alguma autenticidade quanto ao mundo e ao próprio homem. Essa pontuação histórica é importante para situar o pensamento psicanalítico acerca da imagem, mas ela não nos deve restringir a uma cronologia estéril. O importante não é tomar o moderno e o contemporâneo como momentos bem delimitados em relação ao que os precedeu. Como mostra o próprio Lacan, logo após a sistematização, no Renascimento, das regras da perspectiva que davam ao eu uma posição central e organizadora no mundo da representação, os pintores logo começam a subvertê-las, com a técnica da anamorfose (LACAN, 1998), de modo a apontar para algo que é furo na imagem - e golpeia fortemente a ilusória centralidade do eu. "O eu não é senhor em sua própria casa", como dizia Freud (1917/1944, p. 295), e a arte é o campo cultural que põe em jogo e à mostra seu descentramento.

Para pensar o nosso tempo - o contemporâneo -, o importante não é nele apontar características próprias e inéditas, mas sim nele perceber repetições que se assumem como tal, apostando no só-depois como instante de furo e surgimento de algo imprevisto (como a psicanálise nos permite pensar com a noção freudiana de Nachtraglichkeit). Não teremos espaço, nessa breve nota, de aprofundar e pôr à prova essa hipótese, mas é ela que fornece aqui o elã para uma reflexão sobre a arte, o homem e o mundo, em diálogo com o Puxador Paisagem.

O homem-carne de Laura Lima ironiza a posição central do homem e sua força diante da Cultura. O rapaz contratado pelo museu para "puxar a paisagem" não conseguirá destruir natureza e arquitetura; seu labor é inútil e trágico. Ele é um herói, mas sua luta é, de saída, fadada ao fracasso. Seu esforço inútil não deixa de desenhar no espaço, porém, a louca possibilidade de transformar radicalmente o mundo com seu ato singular, sua insistência. Tal ato não se baseia em uma ilusória potência sobre-humana, mas consiste em sublinhar sua fragilidade e impotência - e assim, poeticamente, ele nos atinge e convoca a alguma transformação.

 

 

Com seu corpo, o homem tenta furar aquele lugar concreto e bem delimitado da sala do museu, sugando tudo o que está fora, junto com as próprias paredes de concreto, para dentro, como se fosse capaz de atravessar uma espécie de sumidouro e assim tudo revirar. É como se Homem=Carne/Mulher=Carne... quisesse mostrar o avesso da cena na qual o espectador se encontra, revelando Outra Cena (para evocar o modo como Freud caracteriza o Inconsciente, no início de sua teorização). Tal revelação não passa, porém, de uma possibilidade, de uma virtualidade, ou melhor, de um convite, pois o homem nu praticamente não avança; ele apenas faz força, inutilmente. Ele jamais conseguirá revirar a cena, sua casa, pelo avesso. No máximo, ele conseguirá desatar alguns dos nós que sustentam toda essa trama, desfazendo-a - como aconteceu, por acaso (ou tique, encontro real?) justo nos momentos que antecederam minha chegada ao museu, em março de 2013.

Trata-se, neste trabalho de Laura Lima, de um preâmbulo a algo que não chega a acontecer. Estamos diante de uma promessa louca, inviável. E talvez nisso resida seu caráter de invenção, no sentido mais forte da palavra: gesto inútil que, justamente por sua inviabilidade prática, funciona como uma poderosa incitação para que nós possamos concebê-lo e, portanto, de alguma maneira, vivê-lo.

O registro do Real lacaniano talvez deva ser pensado a partir deste ato que arriscaremos, em diálogo com essa exposição, nomear como gesto dissidente, e no que ele nos permite conceber como avesso do imaginário. É enganoso e ilusório trazer enunciados a respeito do Real em si, pois só podemos fazê-lo ao imaginarizá-lo. Mas o campo da arte - aquele terreno de contornos incertos que Freud (1919/1986) já indicava com a noção de estranho, Unheimliche -é aquele que nos convida a um reviramento do imaginário capaz de convidar à subversão do sujeito, dando notícias do Real (cf. RIVERA, 2013).

***

Esse gesto de dissidência - ou melhor, de amor à dissidência, como sugerido pelo título dado pelas curadoras Cecilia Masse e Alejandra Labastida - pode ser tomado como uma bela e trágica definição do que são Sujeito e Cultura. A Cultura não corresponde apenas à massa coesa, unida por laços identificatórios imaginários em torno de um líder, como bem elabora Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu (FREUD, 1921/1986), mas também se define como dissidência: singularidade e divergência assumida contra a massa, e endereçada ao outro como convite a certa transmissão.

A dissidência é ruptura, abandono de um ideal e destruição da coesão do grupo como modelo de definição da cultura. Ela é a força que se opõe à massa. O homem aí está sozinho, ele é um herói decaído, fadado ao fracasso, mas ele não desiste e reitera seu gesto para nosso olhar. Ele não nos chama exatamente à mesma luta, a unir forças de maneira a formar uma Fotografia Evandro Salles massa uniforme convergindo para um mesmo objetivo, um mesmo ideal. Lança-nos simplesmente seu gesto como um náufrago lança ao mar uma garrafa, sem saber se a mensagem que ela contém será um dia lida por alguém. Ou, para ser mais precisa: sem que haja qualquer mensagem a significar, mas apenas o gesto de jogar a garrafa contra a corrente, contra ventos e marés, endereçando-a a um alguém que se desconhece. Trata-se, assim, da transmissão de um gesto, em um convite a alguma subversão que pode ou não ser aceito e assumido pelo espectador (em algo que não constitui uma "recepção", mas sim outro gesto).

 

 

A arte nos leva a conceber desta forma, em oposição ao laço social da massa, a possibilidade de haver um laço dissidente. Talvez possamos dizer que ele corresponde, simplesmente, à própria ideia de transmissão, no sentido forte que a psicanálise lacaniana dá a esse termo. Nesse sentido, é importante sublinhar que é o próprio sujeito que se produz, na transmissão, fora de si - já que seu íntimo está fora, é êxtimo.

O Real talvez possa ser definido justamente como aquilo que é sempre impróprio: está sempre em transmissão. "É muito impertinente que o real só se conceba por ser impróprio", afirma Lacan (1977, s./p.). O real não é próprio nem a si mesmo, nem à psicanálise. Ele é sempre im-próprio, fora de mim - e, no entanto, está no meu íntimo, como insistência de uma transmissão. Tentar definir positivamente o que lhe seria "próprio" é uma tarefa fadada ao fracasso. Talvez o Real consista em nada além de certo modo de operação - agrupando operações dessimbolizantes e desimaginarizantes. Ele resiste sempre, não cessando de não se inscrever na linguagem e na imagem. E jamais se inscreve inteiramente, portanto, na própria teoria psicanalítica (o risco, que tentamos aqui evitar, é aquele de reificá-lo ou até fetichizá-lo como uma espécie de terra prometida).

Em oposição ao pertencimento imaginário à massa, a dissidência poderia ser tomada como um modo real de enlaçamento social. Em vez do firme laço imaginário da massa, ela implica uma rede de transmissão entre nós. Por isso, ela tem a ver com o amor ou a paixão: laço lábil e desencontrado com a alteridade. Ao contrário da massa uniforme sustentada por uma ligação simbólica (ao líder, substituto do pai) que ancora uma forte identificação imaginária com o outro e assim estabelece um campo de pertencimento e "propriedade", trata-se, com o Real, da afirmação de um terreno de impertinência - no qual se dão repetidos gestos dissidentes.

 


Clique para ampliar

 

O que produz a arte é esse gesto em transmissão. É nisso que ela é contemporânea - do homem e do mundo, assumindo-se como repetição constante disso que jamais se realiza inteiramente. Por isso, ela se posiciona no campo da ética, muito mais do que no de qualquer estética. Trata-se de eticizar o Real - ou melhor, de assumir, em seu alcance ético (e político, em um sentido abrangente), as operações humanas de resistência e crítica das amarras imaginárias da massa.

O puxador-paisagem de Laura Lima materializa uma inútil (e bela) rede de transmissão na qual estamos sós, porém atados aos elementos do mundo - e aos outros.

 

Referências Bibliográficas:

FREUD, S. (1917/1944) "Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse". In Gesammelte Werke. Londres: Imago, vol. XI.         [ Links ]

______. (1919/2010) "O Inquietante". In Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 14.         [ Links ]

______. (1921/1976) "Psicologia das massas e análise do ego". In: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XVIII.         [ Links ]

LACAN, J. (1977) L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre (Seminário 1976-1977). Inédito. 8 mars 1977.         [ Links ]

______. (1998) O Seminário Livro 11. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ]

MALLARMÉ, S. (1885/1998) "Richard Wagner. Rêverie d'un Poète Français". In Écrits sur L'Art. Paris: Flammarion.         [ Links ]

RIVERA, T. (2008) Cinema, Imagem e Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ]

______. (2013) O Avesso do Imaginário: Arte Contemporânea e Psicanálise. São Paulo: CosacNaify.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 22/04/2013
Aprovado em: 29/10/2013