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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.5 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2013

 

RESENHAS

 

O corpo e seus desvarios

 

 

Tatiana Silvera Porto Campos

Psicanalista membro da Letra Freudiana, mestre em Psicanálise, saúde e sociedade pela UVA-RJ

 

 

 

Livro: Corpo para que te quero? Usos, abusos e desusos
Junia de Vilhena e Joana de Vilhena Novaes (orgs.), Rio de Janeiro: PUC-Rio: 2012

Em 1914 Sigmund Freud publicou um artigo que é um dos mais densos de seus escritos 'Sobre o narcisismo: uma introdução' (FREUD, 1914). Nesse texto apresenta o Eu, instância psíquica resultante de uma nova ação psíquica, o narcisismo, que uma vez estabelecida ganha estatuto de objeto de amor. O Eu é assim um outro.

Mas o Eu é, também e acima de tudo, corporal. O bebe identifica-se com sua imagem no espelho adquirindo assim uma unidade corporal. E ainda, no texto de 1914, acrescenta que não só as zonas erógenas, mas também toda e qualquer parte do corpo, qualquer uma, desde a pele até os órgãos internos, pode ser erogeneizada, o que serviu de referencia para todo o trabalho da psicanálise com o campo da psicossomática. Pois bem, Corpo para que te quero? Usos, abusos e desusos, é uma coletânea de trabalhos que dão testemunhos do alcance e da importância das afirmações de Freud. Cada vez mais vemos o corpo encarnar os destinos pulsionais uma vez que na contemporaneidade parece estarem esgarçados, e em alguns casos até rompidos, os laços simbólicos engendrados pelo princípio da modernidade. Se a cultura de consumo de inicio reificou o tempo, tornando-o produto de consumo - time is money - o que vemos hoje é o corpo e o outro, sendo também tomados e oferecidos como tal. Mas a plasticidade da expressão pulsional não se restringe, nem se constrange. Assim, podemos assistir a como o corpo pode ser tomado como tela, superfície de expressão, customização, tentativa de inscrição da função simbólica? Talvez sim, em alguns casos, talvez não em outros. O que sabemos é que os mais diversos usos, abusos e desusos do corpo se fazem cada vez mais presentes na clínica, nos hospitais, nas escolas, nas artes, nas ruas... Convido-os então, a aprender um pouco com a generosidade dos diversos autores que nos presenteiam com suas experiências.

O primeiro artigo, "Se seu corpo ficasse marcado...", foi elaborado a partir da experiência de atendimento psicanalítico a pacientes portadores de HIV em um hospital universitário. Com referencia à premissa freudiana de que o eu é corporal, Ana Cleide Guedes Moreira, Elizabeth Samuel Levy e Igor Francês fazem uma análise do impacto do resultado positivo do exame no narcisismo e as consequências na subjetividade. Ressaltam igualmente a importância da escuta oferecida pela psicanálise no tratamento desses pacientes e as peculiaridades do atendimento psicanalítico no ambiente hospitalar.

Também referido a um trabalho situado no contexto de um hospital da rede pública de saúde Você tem fome de quê? Sobre a clínica da obesidade em um hospital público de Joana de Vilhena Novaes, é "uma colcha de retalhos" costurados com os fios transferenciais da clínica da delicadeza compostos pelas relações entre a comida e o sofrimento psíquico. Este rico artigo, repleto de questões e novidades, é um dos efeitos de sua pesquisa de pós-doutorado que dá continuidade a seus trabalhos anteriores ao mesmo tempo abre novos caminhos.

Seu outro artigo, "Corpo arma, corpo ferramenta ou corpo capital? Escutando lutadores de MMA" investiga esse universo em progressiva expansão devido ao sucesso atual dos campeonatos de MMA ou UFC. "Um mundo que cultua a espetacularização da violência, da tragédia, da dor e do sofrimento." Sendo ao mesmo tempo um mundo extremamente hierarquizado e organizado, no qual orem e respeito são premissas básicas nesses esportes que representam signos de masculinidade dentro e fora dos ringues.

Considerando a saúde como um registro de ordem subjetiva que incide sobre o psiquismo humano e que exige ações, planejamento e um dimensionamento político, Henrique Figueiredo Carneiro, se propõe a analisar os impactos sociais das práticas psicológicas em duas vertentes, uma de ordem social e outra de cunho subjetivo. É disto que trata o autor em "Sujeito e Corpo: intervenções e limites no campo da saúde".

Em "Corpo e imagem excessos em deslocamentos", através da comparação da obra de Rembrandt, que é um exemplo da arte barroca e o trabalho contemporâneo de Gunter Von Hagens que com a técnica da plastinação eterniza os corpos mortos, Ana Lúcia Mandelli de Marsillac e Edson Luiz André de Souza desenvolvem uma excelente análise das representações e resistência às representações do Eu e do corpo no cenário contemporâneo. Criticam o discurso da ciência que pretende desvendar a verdade que serviria para todos os sujeitos, uma essência do ser, ignorando que o próprio saber é uma "ficção" construída para podermos viver, a partir de um recorte da imensidão que é a realidade, o que, segundo os autores, encontra-se materializado no trabalho de Hagens. Por outro lado, enfatizam, a partir da abordagem psicanalítica, que, como está representado na obra de Rembrandt, o eu, uma vez pensado enquanto efeito de imagem, "(...) possibilita-nos pensar na aparência e no para-além-das-aparências, pois o eu desconhece aquilo que lhe move e o que lhe desestabiliza, modificando-o."

Para eles, "Exaltar a potencia humana e a imagem completa do eu só reforça a nossa alienação à lógica individualista em que estamos inseridos, encobrindo a falta que nos é constitutiva. 'Mostre-se!' - nos diz a sociedade escópica que propõe a existência associada ao ser visto. Hagens nos diria 'Mostre-se até mesmo morto!', já que a morte não mais implica, a partir da técnica da plastinação, a decomposição do corpo, e assim, permaneceremos impenetráveis pela matéria do mundo, presos a nossa individualidade, olhados pelo panóptico onividente, mesmo após a morte."

Professor adjunto da UFF, do seu trabalho com a disciplina Corpo e Cultura e inspirado na teoria de Dauster, "saber de fronteira" entre os campos da antropologia e educação, Anderson Tibau adotou a fotoetnografia - "construção de uma narrativa visual que seja eficaz e contenha informações interpretativas acerca de uma determinada realidade" - como metodologia. Seu objetivo foi observar a forma que jovens estudantes de escolas publicas da Ilha Grande (Angra dos Reis, Rio de Janeiro) criam espaços com "existência material", considerando os conflitos, presentes nas representações nativas, de identidade entre a ilha e o continente. É muito interessante acompanhar como esses jovens encontram maneiras de construir os seus espaços de existência mantendo as referencias locais sem deixar de se sentirem pertencentes ao universo do mundo globalizado, subvertendo esses conflitos.

Por que repensar a questão do corpo? Flavia Sollero-de-Campos e Monah Winogard afirmam que esta necessidade advém uma vez que a questão do corpo é o "umbigo da psicanálise". Fazem uma crítica pertinente às abordagens oferecidas pela psicologia e mais especificamente pela neurociência. As autoras nos propõe então repensar essa questão com as referencias freudianas e a comparação dos trabalhos de dois psicanalistas: Sándor Ferenczi e Daniel Stern. O primeiro, que desenvolveu seu trabalho a partir de uma clínica de "casos difíceis" sob uma perspectiva positivista, acreditava que fatos reais eram a causa da catástrofe psíquica de seus pacientes. Enquanto Stern, autor contemporâneo desenvolve o conceito de eu pré-verbal através do estudo de bebes até dois anos de idade. As inconclusões a que as autoras chegam são um convite ao trabalho.

Os "negros de todas as raças", principalmente aqueles que são os mais excluídos, mais marginalizados pela sociedade, como os loucos e os moradores de rua em geral, compõe objeto de estudo sobre o qual Junia de Vilhena, Carlos Mendes Rosa, Elza Ibrahim e Paula Petrelli de Abreu se dedicaram. Considerando que é nos corpos reais dos que vivem ou viveram que se inscreve toda historia humana, é para esses corpos que direcionaram seu olhar a fim de saber sobre o mundo humano e principalmente no que diz respeito a violência e o enclausuramento que estão inseridos no cenário brasileiro evidenciada pela presença cada vez mais frequente de sujeitos sociais que vivem em situação de flutuação na estrutura social. É disto que trata "Corpos invisíveis, violência e dor".

Em "Amor materno, fome e reconhecimento social", elegendo a fome como paradigma de uma experiência que coloca em cena as fronteiras entre o corpo e o desejo, a natureza e a cultura e sob a luz da psicanálise, Karla Patrícia Holanda Martins e Cecília Maria Girão Gomes apresentam uma leitura que escapa a lógica binária de causa-efeito, leitura preocupada com as condições de estruturação do sujeito que toma como direção colocar o impossível a trabalhar.

Dos autores Nelson da silva Jr, Amanda Galioni Saud dos Santos, Carlos Eduardo Ribeiro, Luiz Eduardo de Vasconcelos Moreira, Pedro Eduardo Silva Ambra e Stelio de Carvalho Neto, "Construções do corpo na razão diagnóstica da psiquiatria e da psicanálise" examina as possibilidades de diagnóstico das relações do sujeito da sociedade com os corpos que compõe sob a análise crítica da contemporaneidade como cultura do capitalismo tardio.

Maria Bernadete Brasiliense nos apresenta seu artigo "Corpo e tempo: o desabrochar da mulher de meia idade" que surgiu a partir de um trabalho fotográfico realizado com um grupo mulheres entre 60 e 80 anos de idade, que frequentam o Centro de Convivência do Idoso na UCB (universidade de Brasília). Mulheres que "(...) passam por caminhos instáveis e tortuosos quanto à construção da corporeidade, da identidade e da subjetividade, que se constróem na sua experiência de vida, mas não se deixam abater com os modelos propostos (...)". Mary Del Priore também aborda o tema do envelhecer e suas dificuldades relacionadas às exigências impostas ao corpo da mulher através de "Conversas sobre a história do Corpo" da mulher brasileira.

Não há um ideal de corpo padronizado, e sim um corpo ultramedido introduzido, estimulado e normatizado pela mídia, pelos costumes e assimilações sociais, que produz novas práticas de consumo e gera novas demandas no publico feminino. Esta é a hipótese com a qual Selma Peleias Felerico trabalha em "Corpos em revista: uma releitura do corpo ultramedido nas revistas femininas, no sec XXI". Artigo em que apresenta a percepção que mulheres entre 20 e 45 anos têm das capas, matérias e propagandas destinadas à perfeição do corpo e a beleza, veiculadas nas revistas Nova e Boa Forma, relacionando-as com o consumo feminino.

Em "Sobre tudo corpos obedientes", acompanhada por autores como La Boétie e Foucalt, Maria Helena Zamora procura localizar na modernidade a questão da servidão voluntária, sem deixar de reconhecer diferenças nos modos de manifestação e nas intensidades das expressões de submissão. Contudo, a autora também ressalta as possibilidades de resistências às capturas das potências criativas.

Com sua pesquisa localizada na cidade do Rio de Janeiro Maria Inês Bittencourt verifica, em diversos extratos da sociedade, uma preocupação com a aparência, a beleza e a moda em meninas que ainda estão em idade distante da puberdade. O artigo "Infância, consumo e subjetividade: observações sobre o fenômeno da adultização precoce" discute importantes questões sobre a construção da subjetividade na cultura de consumo contemporânea e suas consequências.

"Dos corpos dóceis aos corpos-em-busca-de-uma-morada. Apontamentos clínicos sobre as relações corpo/psique na contemporaneidade" é um relato clínico instigante através do qual Nadja Pinheiro dá testemunho de uma experiência que remete às fundações da estruturação subjetiva.

Vera Lopes Besset e Marina Vieira Espinoza fazem em "Dora hipermoderna: ainda a histeria?" uma reflexão sobre a histeria que embora considerada pela psiquiatria como superada comparece na clínica contemporânea. Ao mesmo tempo trazem indagações relevantes sobre os sintomas no corpo, sintomas "mudos", que nem sempre podem ser considerados histéricos mas que invariavelmente se referem ao feminino.

O livro termina com um peculiar depoimento de uma designer e editora de blog de beleza "Desmistificando a beleza e compartilhando conhecimento" de Cinthia Ferreira seguido de um breve artigo "O corpo e a sustentabilidade" escrito por Izabella Monica Teixeira, Ministra do Meio Ambiente, que relaciona de modo interessante esses temas corpo e meio ambiente.

 

 

Recebido em: 25/05/2013
Aprovado em: 16/11/2013