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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.5 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2013

 

ARTES

 

Hímeros

 

 

Antonio Quinei

Psicanalista, teatrólogo e professor no Programa de Pós Graduação da Universidade Veiga de Almeida, R.J.

 

 

 

Se o artista antecede o psicanalista, a psicanálise deve-se deixar aplicar pela arte. Eis a única maneira para que ela se separe de sua origem médica, pois é "a última flor da medicina" (Lacan). E isso sem deixar de ser um tratamento: o tratamento do real pelo discurso. Não existe psicanálise "aplicada" à obra de arte, pois a psicanálise como tratamento pelo discurso só se aplica a sujeitos. No entanto, existe a arte aplicada à psicanálise para que tampouco esta não caia nas teias das aderências psis que permitiram uma ego psychologie e nem na pura lógica matemática de acento paranóico cedendo à tentação científica de foracluir o enigma do ser falante. Entre o matema e o poema, duas formas de tratamento do real: a primeira procura cingilo, o segundo representá-lo. Lacan passou do matema ao poema como norte da prática do analista.

A psicanálise sempre foi tributária da arte: a tragédia de Sófocles deu a Freud a pista para o complexo de Édipo e para um gozo para além do princípio do prazer, de Shakesperare sua forma neurótica e disfarçada na patologia do ato, Leonardo da Vinci lhe deu a estrutura da fantasia e as vicissitudes da pulsão escópica; Jansen, o delírio histérico e a interpretação analítica a partir da equivocidade das palavras, Michelangelo, a definitiva morte do pai, etc. Para Lacan, só para citar dois conceitos fundamentais: o objeto a é tributo da pintura com o lahr e do som do Shofar com a voze; a letra, recebeu-a do retrato do artista quando Joyce e sua letter-liter. A psicanálise é também por ambos considerada uma arte: di pore e di levare; fiat lux e fiat vox! É desse lugar da arte antes da psicanálise - e não ao contrário - que artistas e psicanalistas são convidados a se expressarem. Lacan foi na Idade Média para encontrar um lugar próprio para a psicanálise: ela está entre a artes liberais.

O psicanalista deve (soll) deixar-se ensinar pelo inconsciente artista. O inconsciente literato e sua prática da letra. O inconsciente musical estruturado pela canção de lalíngua que compõe a enunciação. O inconsciente plástico que retrata e abstrai, esculpe e modela, pinta e bordeja a paisagem do mundo. O inconsciente performático com seus atos, passagens ao ato e atuações e criações. O inconsciente teatral como palco de gozo de sua escritura cênica de fantasias. O inconsciente cinematográfico com seus planos-sequência e mise em abîme que fazem do sonho seu paradigma. Por eles se esparrama a Outra Cena.

A psicanálise aplicada pela arte a um sujeito. Freud chamou a fala do analista de "arte da interpretação" e Lacan a qualificou como poética. E seu ato deve ao teatro o conceito de semblante (faz-de-conta) que longe de ser falso, é um fazer no real com base na verdade. "A arte, diz Alain Badiou, é rigorosamente coextensiva às verdades que prodigaliza - essa verdades não são dadas em nenhum outro lugar a não se na arte". É só por meio do semblante, calcado numa verdade, que se Poe alcançar o real. Todas os artes participam do semblante (Aristóteles chamou de mímesis) que, ao fisgar o real do desejo, esperta o sujeito em sua verdade. Antígona de Sófocles, com Lacan, nos faz ver "o ponto de virada que define o desejo... que vai em direção a uma imagem que detém não sei qual mistério e que faz arregalar os olhos no momento em que o olhamos". Essa imagem de Antígona fascina por produzir o hímeros, o reflexo do desejo, efeito de beleza que capta o espectador.

Hímeros é o reflexo do desejo que aparece no cristal da língua, no brilho da voz, na pincelada na tela, no timbre do músico, no gesto do ator e ... no ato do analista em sua enunciação. Hímeros é o brilho de um personagem de uma obra secular. Imortal. Do lugar vazio êxtimo do entre duas mortes nasce ex nihilo o reflexo do desejo do artista - um poema que se eterniza na poeira dos séculos. Hímeros é afirmação do duro desejo de durar, desejo de refletir o que do nada se transfigura em arte.

 

 

Recebido em: 12/10/2013
Aprovado em: 22/11/2013