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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.6 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2014

 

RESENHA

 

Convite à devoração

 

 

Luiz Moreno GuimarãesI; Thiago Emanuel LuzziII

IMestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e estudante de Letras Clássicas da mesma Universidade. Endereço eletrônico: luiz.moreno@usp.br
IIEstudante de Psicologia da Universidade de São Paulo. Endereço eletrônico: thiago.galvao@usp.br

 

 

 

Resenha do livro 100 anos de Totem e tabu. [Organização:] Betty B. Fuks, Carina Basualdo, Néstor A. Braunstein. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2013. 256 p.

Não se trata apenas de rastrear, na vida psíquica dos povos, certos acontecimentos e correlações comparáveis àquelas reveladas pela psicanálise no indivíduo; trata-se também de arriscar-se na tentativa de esclarecer, por meio das ideias psicanalíticas, o que na psicologia dos povos permanece obscuro e duvidoso. A jovem ciência psicanalítica quer, por assim dizer, restituir o que, em seu começo, recebeu de outras áreas científicas, esperando devolver ainda mais do que recebeu (Freud, 1912/2013, p. 33, grifo nosso).

Esta citação de Freud - que, como veremos, era inédita em português até a presente publicação comemorativa do centenário - resume o intento maior dos onze ensaios que compõem o livro 100 anos de Totem e tabu, além de definir um princípio ético de toda incursão psicanalítica por diferentes campos do saber: cada autor, a sua maneira, searriscou a devolver ainda mais do que recebeu. É nesse sentido que seus trabalhos são semelhantes ao do chiste, que toma emprestado elementos avulsos, submete-os a outra lógica e os devolve - com surpresa e revelação - ao mundo.

Organizado por Betty B. Fuks, Carina Basualdo e Néstor A. Braunstein e publicado simultaneamente em espanhol, como o título Freud: a cien años de Tótem y tabú (México D. F.: Siglo XXI), e em francês, Totem et tabou, cent ans après (Lormont: Le Bord de L'Eau), o livro ganha agora sua versão em português (Rio de Janeiro: Contracapa), com acréscimos da maior importância. O leitor perceberá que se trata de um empreendimento de organização e editoração louváveis - e que faz jus à constelação de textos que compõe o livro.

 

I.

100 anos de Totem e tabu está dividido em quatro partes e possui onze ensaios de diferentes autores. A primeira parte, contudo, é dedicada a um retorno à atmosfera de composição e recepção de Totem e tabu. Nela encontramos extratos da correspondência de Freud e de seus colaboradores que vão desde as primeiras intuições enviadas à Fliess - "Doideira? Psicomitologia?" (p. 17) se perguntava Freud em 1897 - até o pedido de observações ou críticas feito a Jones em 1913 - dessa "aventura mais ousada em que me meti" (p. 28) -; passando por Jung, Ferenczi, Abraham e Pfister; de tal forma que conclui: "estou todo em Totem e tabu" (p. 21).

Segue-se a esses fragmentos um curto texto de Freud de cinco parágrafos, inédito em português; trata-se da Introdução ao primeiro ensaio de Totem e tabu, "O horror ao incesto", publicado na revista Imago em março de 1912. Esta Introdução foi suprimida na ocasião em que os quatro ensaios freudianos foram agrupados em forma de livro em 1913. Sabemos, principalmente pelo Projeto para uma psicologia científica de 1895, que os textos que o próprio Freud não incorporou às suas obras são de tal riqueza que não raro nos perguntamos o motivo de sua exclusão - não é diferente com esta Introdução. Os organizadores conjecturam que "a menção a Jung e a seus alunos acerca da relação destes com a origem das ideias freudianas expressas em Totem e tabu tenha sido o principal motivo de sua supressão" (p. 36).

A leitura detida desses cinco parágrafos introdutórios ao primeiro ensaio - e, de certo modo, a todo Totem e tabu - permite-nos perceber que neles Freud aborda pontos da maior importância; entre eles, destacamos: (i) as relações entre a vida psíquica dos indivíduos e a psicologia dos povos (similar ao início de Psicologia das massas e análise do eu); (ii) uma ressignificação primorosa do que se entende por psicanálise aplicada; (iii) a dificuldade inerente a essa forma de trabalho, isto é, a impossibilidade de abarcar - sem grandes lacunas - os dois campos requeridos para essa forma de análise (psicanálise e teorias provenientes de outros campos de saber); (iv) a pressa com que o texto foi publicado - prematuramente, sem período de incubação -, mas também ressaltando a necessidade dessa pressa: como quem diz sumaria e rapidamente o que há muito deveria ter sido dito. Em suma, Freud, em poucas linhas, deixa claro que com Totem e tabu trata-se de estabelecer as bases para "uma nova meta para trabalhos que vão além da psicologia individual" (p. 33).

De quebra, temos a chance de acompanhar e verificar a tradução no texto original em alemão que vem em notas de rodapé no caso dos extratos de correspondência e ao lado no caso da Introdução. O leitor, portanto, antes mesmo de entrar no corpo dos onze ensaios que compõe propriamente o livro, é transportado para essa atmosfera da ousada composição freudiana e da expectativa de recepção de Totem e tabu.

 

II.

"Tabu de hoje, totem de amanhã" é o título da segunda parte do livro que, parafraseando o título do quarto ensaio de Totem e tabu, pretende examinar o retorno ao totemismo hoje.

Anne Dufourmantelle propõe uma aproximação entre Freud e Wittgenstein: ambos se recusam "a opor o progresso das Luzes à visão dos 'primitivos', e propõe[m] que pensemos nossas próprias concepções de mundo como formações tão singulares e heterogêneas quanto as que são próprias a eles [aos primitivos]" (p. 40) - esse é, de certa forma, o tema central que reúne os quatro primeiros ensaios: o arcaico na contemporaneidade. A autora diferencia e relaciona trauma e sacrifício: se por um lado "A repetição do trauma é a repetição de uma cena sem sujeito" (p. 48, grifo da autora), por outro "o sacrifício totêmico retoma o cenário maligno fixado pelo trauma, mas o utiliza de outro modo" (p. 49): o sacrifício possibilita o aparecimento do sujeito na cena traumática e desta forma o retira da repetição demoníaca (daímon). Tais definições - tão próximas tanto da clínica psicanalítica como das observações etnográficas - nos lembram de imediato essa dupla filiação que fez surgir Totem e tabu.

A pergunta central do texto de Daniel Koren é: "Qual é enfim o destino do pai hoje?" (p. 75). O autor coloca em xeque uma série de diagnósticos provindos da psicanálise e de outros campos (filosofia, antropologia, sociologia etc.) que concluem o argumento com a degradação da figura paterna na contemporaneidade - leituras que em geral aproximam muito rapidamente "fatos" clínicos ou sociais a conceitos psicanalíticos. Evidenciando as inconsistências dessas leituras, o autor propõe uma divisão da figura do pai em três rubricas: Pai Hordinal, Pai Hobsceno e Pai Hordinário - o que lhe permite localizar com maior precisão o desaparecimento e os Destinos do pai (título de seu texto).

Em O pai primitivo e o pai digitalizado. Do Urvater ao Big Brother, Néstor A. Braunstein nos oferece, no mais puro e propício estilo ensaístico, uma aproximação à forma do gozo contemporâneo, onde nossa "carne goza de sua alienação cibernética" (p. 85). O atual sistema de escrita universal (o binarismo sucessivo de zero e um) não requer nem tradução nem compreensão: ele se coloca como a metalinguagem virtual, da qual surge um novo objeto - "objeto @" - e um novo pai - "o pai mais-que-primitivo" (p. 94). O mérito do autor, entre outros, está em estabelecer a correspondência entre o primitivo e o pós-moderno, através da "fecundidade dos mitos, o pré-histórico de Freud e pós-histórico de Orwell" (p. 100): há algo de futurístico nessa cena fantástica e fantasmática, figurativizada em Totem e tabu, que estabelece a origem da vida social.

Octavio Chamizo, por sua vez, opera uma releitura da relação entre tabu e o ato de tocar. A situação paradoxal de hoje, que percorre todo o texto, é: se por um lado "Existe hoje, mais do que uma proibição, um convite, quase uma ordem, para tocar" (p. 104), onde tudo se encontra à mão, por outro lado "as expressões clínicas revelam a impossibilidade, a loucura e o despotismo aniquilador e alienante dessa aposta" (p. 104). O que nos lembra os versos de Drummond: "As coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / a palma da mão" (1) - o texto de Chamizo é o desenvolvimento metapsicológico desse paradoxo.

 

III.

A terceira parte do livro, que recebeu o belo título Entreato. Mais além da horda, excursões exogâmicas, reúne textos que visam estabelecer diálogos - a partir de Totem e tabu - com outras áreas de saber.

Paola Mieli tece algumas notas sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano; seu texto retoma as teorizações freudianas acerca da questão da natureza do pensamento, de tal forma que percebemos que em Totem e tabu "a conceituação do processo de pensamento [é] um de seus aspectos essenciais" (p. 125). É interessante notar que a primeira excursão exogâmica do livro se dá justamente com um retorno à densidade da metapsicologia freudiana - paradoxalmente: todo "retorno a" é exogâmico.

Jacques Nassif deixa clara a intenção de seu texto já no título: Entre Freud e Lacan, há Bataille. Trata-se de contribuir "para discernir com precisão o que Lacan introduziu de novo e de diferente em relação a Freud" (p. 142) e isso requer um retorno a Bataille, "àquele de quem Lacan é mais diretamente tributário depois de Freud, sem que jamais tivesse julgado necessário pagar o que lhe devia" (p. 141-142). A análise de Bataille da soberania, relacionada com a interpretação freudiana do totem, evidencia uma leitura que foi apropriada por Lacan ao estabelecer a ética da psicanálise: Bataille ressurge então como esse "alicerce oculto da refundação da psicanálise por Lacan" (p. 146).

Carina Basualdo, acompanhando o desenvolvimento argumentativo em As estruturas elementares do parentesco, evidencia como o pai da antropologia estrutural a cada capítulo de seu livro retoma um diálogo indireto com Totem e tabu - apesar de citá-lo poucas vezes; esse diálogo é caracterizado - antes de tudo - por uma ambivalência marcada por um reconhecimento implícito. De tal forma que Totem e tabu, texto central para se pensar a noção de ambivalência, se tornou "objeto de um denegação própria à ambivalência de Lévi-Strauss acerca da psicanálise freudiana" (p. 168) - ambivalência inicial que, de certa forma, influencia toda relação que se estabelece entre a antropologia e a psicanálise.

Patricia Gherovici, em O escato-logos de Freud. Toletes da cultura, acompanha outras incursões de Freud ao campo da antropologia para além de Totem e tabu, em especial à obra de John Gregory Bourke sobre os Ritos escatológicos de todos os povos. Retomando a interpretação freudiana do "cocô como o primeiro presente" dado pela criança, passando pelo apaixonante levantamento de Bourke que enumera meticulosamente as diferentes formas de uso que os homens fizeram de seus próprios excrementos, a autora - pautada em Lacan - repensa a origem do pudor como "o véu que recobre essa instância mítica surgida quando uma parte do corpo caiu" (p. 185).

 

IV.

Temos, por fim, o facear sem medo do mal-estar, a ferocidade do contemporâneo. A quarta e última parte do livro convoca sem mais delongas ao pensamento político dentro da psicanálise, podendo os três últimos ensaios serem lidos como uma tentativa de responder a um par quiasmático de questões centrais: "que fazer com Totem e Tabu, diante do horror traumático que nos marca?" e "que fazer com esse mal-estar em que vivemos, diante da [já exposta] atualidade do centenário Totem e Tabu?".

Betty B. Fuks e Caterina Koltai já formulam essa problemática, que marca todo o fim do livro, no título de seu texto: Totem e Tabu depois de Auschwitz; nele, é dado todo o peso à relação entre a "verdade histórica" do mítico assassinato do Urvater (o pai da horda primeva) e o horizonte ético daqueles que se inserem na psicanálise depois da Shoá. Cabe a cada um de nós "renovar o assassinato (subtrair o poder do Um), para que a escrita psíquica (o inconsciente) permaneça inexoravelmente voltada ao porvir" (p. 205). Essa verdade traumática que fala no inconsciente não pode ser apagada; pelo contrário, podemos dizer que se trata antes de recordar o assassinato do pai, repeti-lo, e a ele elaborar.

Uma versão dessa escrita, dessa elaboração, Márcio Seligmann-Silva nos põe à mesa em Totem e tabu: o "mito científico" da era das catástrofes; Freud empreendeu a composição de uma nova mitologia, uma inédita narrativa do pacto social, e "foi o primeiro a realizá-la na era de Darwin, ou seja, após a queda de nossa origem nobre e divina, e no contexto da Modernidade avançada" (p. 210). O autor é astuto ao afirmar que essa escrita tem caráter antropofágico, o que coloca novo olhar sobre a conhecida citação de Freud a Goethe, "Aquilo que herdaste de teus pais / conquista-o para fazê-lo teu" (p. 228), restando o convite à devora, que apenas se inicia, do pai-Freud e do mitema que ele, a partir do método que fundou, (re)construiu.

Em A ressurgência do tirano como inscrição denegada da constituição da fratria, o Totem e Tabu freudiano figura no debate com a "vida nua", trabalhada por Giorgio Agamben a partir de sua leitura de Benjamin; Paulo Endo nos oferece nesse texto o significante "homem tabu" (p. 240) como versão de homo sacer (a partir do caráter antitético que Freud nos faz notar nessas duas palavras análogas, tabu e sacer, já no início de Totem) e isso para que possamos compreender como sistêmica a produção da violência dentro de nossos modelos jurídicos. Tudo se passa como se vivêssemos os frutos da falta de autoria do impulsivo e apaixonado parricídio original, e portanto uma certa desautorização de inscrição na fratria que permite sempre que uns sejam "mais irmãos" que os outros, estando autorizada por sua vez a ressurgência do tirano, da sua massa/horda de algozes, e daqueles que reviverão na pele a matança e o extermínio que restara irreconhecido (p. 249). Aqui, podemos adicionar à escrita mitológica de Freud a escrita e a fala testemunhal, que não tentam reconstruir uma objetividade pura dos fatos, apurá-los, mas conferir "singularidade ao ato de dizer" (p. 247). A análise permanece como espaço possível para, entre dois, se fazer testemunhar o inconsciente.

Na última frase do Seminário sobre a ética da psicanálise encontramos: "o importante é saber o que dará o livro quando tiver sido totalmente comido" (2). Cem anos depois, surge entre nós um livro que nos convida e nos convoca a devorar - em uma devoração ética - Totem e tabu (3).

***

Notas

(1) DRUMMOND, C. Memória. In: ______. Claro enigma. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 34.         [ Links ]

(2) LACAN, J. (1959-1960) Le séminaire - livre VII: L'éthique de la psychanalyse. Paris : Seuil, 1986. p. 375.         [ Links ]

(3) Um possível roteiro de leitura que sugerimos é: (i) ler a primeira parte do livro, que nos conduz à atmosfera de composição de Totem e tabu, sobretudo com os fragmentos de correspondência, além de trazer essa primorosa Introdução de Freud ao primeiro ensaio, inédita em português; (ii) reler Totem e tabu; (iii) ler os ensaios que compõem o livro. Tal sequência deixa evidente a singularidade com que cada autor se apropriou do texto freudiano; em termos mitológicos: evidencia-se como cada comensal devorou o mito científico do pai.

 

 

Recbido em: 11/04/2013
Aprovado em: 12/11/2013