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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.6 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2014

 

ARTES

 

Travessia

 

 

Natasha Corbelino

Atriz

 

 

sou poeta e dramaturgo, me chamo william e dela diria que, por afinidade na escuta do outro, foi a primeira leitora e a última antes que minhas palavras entrassem em cena, permitindo, com sua peculiar generosidade, que minha obra olhasse de frente para os enigmas humanos a decifrar.

sou dramaturgo, me chamo nelson e dela diria que tinha em si os sentidos mais vorazes sobre a palavra, registrando com delicadeza uma opinião transgressora da vida que pude cultivar em minha obra.

sou poeta, dramaturgo e ator, me chamo antonin e dela diria que foi quem permitiu que meu corpo visse o teatro como cultura, além de arte, e a respiração como linguagem possível.

sou atriz, me chamo cacilda e dela diria que foi quem me fez querer entender o homem em sua complexidade e em seu contexto, sem reduzi-lo a um feixe de neurotransmissores sem espírito.

sou atriz, me chamo cleide e dela diria, completando a fala de minha irmã, que foi quem que me ensinou a ver o homem como um leque desejante, que é o que me viabiliza como artista.

sou dramaturgo, me chamo sófocles e dela diria que sua estrutura ética iluminou minhas escolhas no discurso trágico de contar a vida de um herói em toda a dimensão da sua subjetividade e voz própria.

sou dramaturgo, me chamo qorpo-santo e dela diria que foi por seu olhar que elaborei minha linguagem com uma rapidez caleidoscópica para fazer do meu jato de criação a escritura de minhas peças.

sou estudante de teatro, me chamo antonio e dela diria que minha primeira peça é a estreia do discurso instaurado na escuta do outro que ela me ensinou a exercitar, na fala que ela me deu ao pensar a criação como eleição de uma pesquisa pessoal dos meus temas como sujeito no mundo.

sou fã de teatro, me chamo luiz e dela diria que foi quem mais me inscreveu no mundo a partir dos nossos debates sobre o nada que posso reescrever como arte e das possibilidades de se estar na vida a partir deste ponto.

 


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Entre julho de 2011 e janeiro de 2014, Marci Dória Passos trabalhou em alguns muitos projetos de teatro. Psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise e da International Psychoanalytical Association, professora e pesquisadora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Faculdade de Letras e no Instituto de Psiquiatria (IPUB), respectivamente, Marci era, antes de ser, uma pessoa da Cultura. Da Cultura como forma de exercer a vida. Nesses dois anos e meio, sua produção em diálogo com o teatro foi intensa. Colaborou com textos na pesquisa de conteúdo para a criação de novas dramaturgias, compartilhou com grupos de artistas sua leitura transdisciplinar de personagens e da linguagem dramática, participou de debates em processos de ensaio, iniciou a construção de um pensamento para a obra de teatral do ponto de vista da cidade, criou espaço para o encontro do discurso da criação artística se articular com o discurso da psicanálise, expandiu a área de atuação da cena teatral para o convívio desta com usuários da academia e do Instituto de Psiquiatria, sem perder de vista a extensão do diálogo com a comunidade e os conceitos de formação, transmissão e pesquisa.

Abaixo, segue uma cronologia de suas contribuições para o fazer da linguagem teatral:

Julho de 2011 → Ensaios e estreia do espetáculo Todos os cachorros são azuis, do livro de Rodrigo de Souza Leão, projeto idealizado por Ramon Mello, dirigido por Michel Bercovitch, com o próprio Ramon, Bruna Renha, Camila Rhodi, Gabriel Pardal e eu no elenco. Aqui, Marci aportou pelas mãos precisas da Professora Doutora Sílvia Jardim, que trabalhava o livro de Rodrigo nas aulas de psicopatologia do IPUB. Foram ver o ensaio como colaboradoras e depois falaram sobre o que viram do nosso trabalho a partir do texto e do universo do autor. Já então, determinou novos caminhos de entendimento para a estrutura da cena que buscávamos. Era o início de nossa parceria.

Agosto de 2011 → Início do grupo de pesquisa Literatura & Clínica, no IPUB (UFRJ), idealizado por Sílvia Jardim, que nos proporcionou o encontro com a poesia de Sylvia Plath e seu desdobramento em teatro. Com reuniões semanais, iniciamos o trabalho em torno da obra da poeta e sua relação com a estética da melancolia. Além dos encontros teóricos, fazíamos intervenções poéticas nas aulas de psicopatologia de Sílvia com os alunos da graduação. Os poemas de Sylvia Plath eram performados por mim e o trabalho seguia com as falas de Sílvia e Marci, sempre com monitoria de Gabriela Dottori, em diálogo com as impressões dos alunos. No período até a estreia do espetáculo Plath, um mar se move em meus ouvidos, em outubro de 2012, nós quatro recebemos importantes colaboradores na pesquisa, como: Ramon Mello, Ana Andrade, Ana Cecília Carvalho, Carolina Cibella, Ingrid Vorsatz, Leila Danzinger, Leonardo Gandolfi, Nena Balthar, Rita Isadora Pessoa.

Fevereiro de 2012 → Esteve presente, em companhia de Sílvia Jardim, com intervenção teórica sobre o tema "mulheres que matam por amor", no processo de criação do espetáculo Assassinas por amor, texto de Marcia Zanelatto, dirigido por Renato Carrera e produzido por Vanessa Galvão, que também estava no elenco. O áudio deste encontro traz a construção de uma abordagem psicanalítica para a dramaturgia ainda em construção. Nessa abordagem, é possível escutar a generosidade da sua paixão pelas personagens, passeando por todos os pontos de vista, e compartilhar a imersão por onde seu pensamento requintado nos leva, dentro da trama proposta.

Abril de 2012 → I Encontro Poesia & Clínica, realizado como mais uma ação do grupo Literatura & Clínica, na Biblioteca João Ferreira, no IPUB (UFRJ). Tivemos uma mesa de abertura, que Marci apresentou, com falas de Sílvia Jardim, Ingrid Vorsatz e Leonardo Gandolfi, uma palestra com Ana Cecília Carvalho e a intervenção poética Papai, de Sylvia Plath, por mim. Do vídeo que registra este projeto, virá a transcrição das falas e sua posterior publicação.

Agosto de 2012 → Mostra A Cena da Cidade, Vozes em Alta: Literatura, Teatro e Psicanálise, com patrocínio da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, através do edital para festivais de teatro e a parceria dos locais da programação na infraestrutura, como o IPUB (UFRJ). Neste projeto, esteve na curadoria com o Grupo Literatura & Clínica. Também foi ponte responsável pela montagem da grade de programação no IPUB e pela mediação entre artistas e técnicos do projeto, e a equipe do Instituto. Como integrante da programação, foi debatedora nos encontros sobre processos criativos ao longo do programa. Por ocasião dessa Mostra, além de pesquisadora de conteúdo e palestrante, Marci mostrou-se produtora cultural, articulando muitos canais entre o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o IPUB e a cidade. Nesse projeto, foram realizados espetáculos, debates, leituras dramatizadas, demonstrações de processos criativos e oficinas em alguns aparelhos culturais do Rio, como o Teatro Gláucio Gill, onde houve uma emocionante sessão do espetáculo Um Navio no Espaço ou Ana Cristina Cesar, com Ana Kutner e o poeta Pedro Rocha, direção de Paulo José, com a plateia preenchida por internos e técnicos do IPUB encaminhados por ela. Foi um instante de beleza o trânsito entre IPUB e a sala de espetáculo. E o consequente retorno dessa ação executada pela força produtiva de Marci. Sobre essa experiência, começamos um texto, quase outra peça, que ficou para o futuro. Há também, com o Grupo Literatura & Clínica,o projeto de publicação de um livro com os registros fotográficos do trabalho, os textos das mesas de debate e as impressões sobre os espetáculos. Para esse plano, Marci privilegiava o foco sobre a interação entre os vários espaços e públicos que circularam pela programação. Ou ainda, que fizeram transitar a programação pela cidade, principalmente como extensão do trabalho com a cultura para além e para dentro dos muros da Universidade.

Setembro a dezembro de 2012 → Ensaios e temporada do espetáculo Plath, um mar se move em meus ouvidos, e, com eles, a participação vibrante do olhar clínico de Marci para a exaltação do discurso da cena. Como ação constitutiva do processo criativo e dentro da pesquisa do Grupo Literatura & Clínica, em 21 de setembro, houve, no Auditório Leme Lopes do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, o "Centro de Estudos Todos os nomes da melancolia", mediado por ela, com as falas de Alfredo Grieco e Leila Danziger. O espetáculo a partir da obra de Sylvia Plath, com texto de Maurício Arruda Mendonça, direção de Ana Lucia Torre, Susanna Kruger e eu no elenco teve sua temporada de estreia também no IPUB, na Sala Henrique Roxo, com patrocínio do Fundo de Apoio ao Teatro, FATE, da Prefeitura do Rio, e parceria do Instituto na infraestrutura. Nesse espetáculo, o papel de Marci Dória Passos trouxe-nos o auge do conceito de equipe, com o grupo de pesquisa Literatura & Clínica. Ao longo do processo criativo, Marci pôde fazer-nos ver, a todos, a beleza da sabedoria em função do trabalho coletivo. Sua transdisciplinaridade latente foi um eixo para que a interlocução entre cultura e comunidade acontecesse e interferisse em sua melhor forma para o acontecimento teatral. A estreia da peça, no dia 27/10/2012, na Sala Henrique Roxo do Instituto de Psiquiatria, foi uma grande conquista. Uma constatação privilegiada dos artistas participantes do projeto foi a visão de uma pessoa da cultura inscrevendo-se plenamente na obra teatral a partir da psicanálise e com a arte no discurso. Marci falava com propriedade da linguagem da cena, estava no ritmo da criação e permanece na melodia de cada palavra escrita no espaço teatral que construímos ao longo de mais de um ano de pesquisa e ensaio. A escuta generosa que lhe era peculiar tornou-se motor para o desenho da voz no espaço teatral. Sua abordagem precisa sobre os rompimentos ou continuidades de sentido a partir da sonoridade das palavras inaugurou um lugar precioso na construção da minha curva cênica para o texto do Maurício, um processo que permanece instaurado no meu corpo como repertório de procedimentos criativos para dar conta das poéticas que virão a partir daqui. Também escreveu um texto potente sobre a linguagem dramática em Sylvia Plath, que foi base para a formatação do projeto que apresentei na fase de captação de recursos e, depois, no diálogo com o autor sobre o que, da poética plathiana, gostaríamos de ter em cena. Do espetáculo, muitos registros visuais e de conteúdo e o plano de fazer deles novas obras. O livro com o texto da peça e textos da pesquisa produzidos por Sílvia Jardim, Gabriela Dottori, Marci, eu e colaboradores do Literatura & Clínica é uma meta. Um curta documental sobre os deslocamentos que nos podem causar as linguagens artísticas de que se serve o teatro, outra possibilidade. Eis o texto que ela escreveu para o programa da peça:

Celebrar Sylvia Plath é celebrar todos aqueles que contribuem para o Tesouro do Simbólico, que serve de referencial aos falantes. Transformar o sofrimento singular em metáforas poéticas, assim como teorizar a clínica é desdobrar uma experiência particular em um universal partilhável. A palavra em diferentes associações, tons, pausas e vazios desloca sentidos fixados e ressoa em nossos corpos novas possibilidades. Toda expressão que permite o humano se revelar no homem liberta a fala de aprisionamentos sintomáticos, esse um laço que une arte e psicanálise.

Abril de 2013 → Ainda no caminho plathiano, outra grande ação de sua autoria foi viabilizar o registro da pesquisa no programa Globo Universidade, com a retomada do espetáculo no IPUB e no Midrash Centro Cultural. Alguns meses de mais articulações e direcionamento de conteúdo e tanto o espetáculo como o trabalho cultural do IPUB com a comunidade, e sua força de ensino, pesquisa e assistência, orquestrados pela Diretora Professora Maria Tavares Cavalcanti, ganharam voz atenta e cuidada, em um recorte do caminho transformador que vem sendo estruturado no Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Desse programa, há o vídeo ainda disponível na internet, no link: http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/videos/t/edicoes/v/pacientes-de-psiquiatriafazem-seminarios-para-alunos-de-psicologia/2633125/

Abril e maio de 2013 → Começava a pesquisa para o encontro do jogo teatral com a literatura infantil, para o núcleo cultural que ela gostaria de implantar em uma escola rural do interior do Mato Grosso do Sul. A meta era, a longo prazo, inserir teatro nos textos literários do programa educativo anual das crianças da Fazenda Margarida. Mais adiante, estariam eles mesmos, alunos e professores, produzindo seus próprios textos para uma cena autoral. Trabalharíamos com ressignificações da escrita, da leitura e da escuta do outro para gerar uma rede de interesses criativos comuns em torno da linguagem a ser reinventada. Pensando o plano de viabilidade para este trabalho, Marci Dória Passos levou-me a entender que preencher os vazios institucionais da existência poderia ser escrever para a cena as cenas do meu inconsciente artista.

Nessa perspectiva de estímulo à formação de uma linguagem própria, iniciou o Café com Letras, núcleo baseado na Universidade, no IPUB, em que o trabalho era estimular a produção autoral e abrir espaço para a publicação de um livro com escritos de pacientes do Instituto e sua concomitante encenação por atores profissionais.

Setembro e outubro de 2013 → O desejo de trabalhar sempre acompanhada pela força da palavra trouxe a aproximação com a poesia de Roberto Corrêa dos Santos, para a qual planejávamos a construção de um novo espetáculo, performance com as artes visuais. Marci trazia em sua fala uma consistência plástica e estética que fazia ressoar a palavra em toda a sua corporeidade e, para o trabalho criativo com o texto poético, esta dimensão ilumina o que está por nascer na obra de arte, onde tudo pode vir a ser.

Novembro de 2013 → Encomendou a mim um texto nomeado Prefiro não, referência ao "Bartlebly", de Melville, no qual ela dizia que, enfim, estrearia no palco. Como se antes lá já não estivesse.

Dezembro de 2013 e janeiro de 2014 → Uma nova mostra, ampliando a pesquisa em torno de literatura, teatro e psicanálise, com a ocupação da cidade pelo olhar transdisciplinar sobre o processo de criação, era planejada para quando setembro viesse. Quando setembro vier, estaremos, ela principalmente, no trabalho de encenar seu livro (texto da tese que a intitulou Doutora pela UFRJ) A dor que emudece -Travessia clínica de Louis Althusser, projeto iniciado em agosto de 2013 e que desafia o teatro como lugar impermanente de continuidade e deslocamento constante do ser.

A obra por fazer ilumina a memória do que foi sonhado.

sou dramaturgo, me chamo bertold e dela diria
sou dramaturgo, me chamo anton e dela diria
sou encenador, me chamo peter e dela diria
sou encenador, me chamo bob e dela diria

A luz do trabalho de Marci com teatro está no processo de fazer do discurso, a poética do lugar de se estar na cena teatral. O que ela nos estimulava a fazer, a nós artistas, era dar visibilidade aos múltiplos elementos que entram na construção da cena teatral, evitando os clichês de inspiração e genialidade e valorizando o trabalho determinado e disciplinado, que requer estudo e grande envolvimento com a escolha e o valor dos signos numa cadeia significante poética. Assim, como no universo de Sylvia Plath que trabalhamos, a criação não seria o puro grito do coração que solta da garganta uma catarse afetiva, mas o ato de trabalhar o grito que emerge numa metáfora poética, lapidada.

Esse registro dos processos em parceria não trata de enquadrar a metodologia do trabalho de Marci Dória Passos com a arte teatral, mas de perseguir a composição intelectual que ela construiu tendo como suporte seu olhar colaborativo. Refazer seu percurso na elaboração da poética da cena, não de maneira apenas linear ou descritiva, mas encontrando um arranjo original que permita ressignificações e faça ressoar a força do desejo de se tornar um nome reconhecido no universo das pessoas da Cultura, como ela era.

Assim, torna-se pertinente elencar o universo e a experiência compartilhada como matriz para os desdobramentos de uma potente reflexão sobre o trabalho cultural de Marci Dória Passos, que traz muito a se desdobrar no futuro ainda possível da criação.

A homenagem aparece, então, não como mera ilustração da travessia, mas como forma de iluminar aspectos ainda não registrados. Como bem afirma Valéry, não há detalhes na boa execução. Tudo importa. Fazer do legado de Marci Dória Passos suporte de trabalho responde ao desejo não apenas de destacar a beleza do discurso de Marci, mas permitir que ele funcione em nós, como ela quis.

A produção cultural e a trajetória dessa pensadora vêm auxiliar-nos na construção de hipóteses sobre o que permanece do trabalho com arte. Para citar a própria, como disse certa vez em correspondência eletrônica, "a ideia da imortalidade, só alcançável através da obra, faz lembrar uma frase de Harold Bloom: 'A grande verdade literária é que esta compreende uma angústia a qual não se pode resistir: Shakespeare não permitirá que o enterrem, que dele se escape, ou que o substituam'."

sou diretora de teatro, me chamo ariane e dela diria
sou atriz, me chamo meryl e dela diria
sou dramaturga, me chamo maria clara e dela diria
plínio
gianfrancesco
paulo
marília
sueli
nicette
aderbal
oduvaldo
lilian
fernanda

* sou atriz, autora, produtora cultural, me chamo natasha e dela direi tudo o que escutar do mais humano em arte.

 

 

Recebido em: 12/02/2014
Aprovado em: 10/03/2014