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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.6 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

A poesia, o amor e o fracasso do inconsciente

 

Poetry, Love and the Failure of the Unconscious

 

 

Paulo Sérgio de Souza Jr

Psicanalista; doutor em Linguística (IEL/Unicamp). Residente à Rua Frei Caneca, n. 348 - apto 148/ Consolação, São Paulo - SP, CEP 01.307-000. E-mail: contra_sujeito@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Na Índia do século XI já se afirmava que a poesia opera sobre nós como a pessoa amada, capaz de nos transportar para além de nós mesmos, para além do mundo quotidiano. Ouve-se o eco dessa afirmação nos trabalhos de Jacques Lacan, em que ele compreende a poesia como subversão da ordem cristalizada na língua e intervenção na ordem do semblante. Sobretudo no Seminário 24 (L'insu..., 1976-77), associada ao amor cortês, a poesia oferecerá a Lacan a oportunidade de teorizar sobre o amor como tal, a partir da ideia de que ele seria precisamente o fracasso do inconsciente.

Palavras-chave: inconsciente; fracasso; amor; poesia.


ABSTRACT

In the XIth century India it was already stated that poetry works on us like a beloved, capable of transporting us beyond ourselves, beyond everyday world. One has heard the eco of this statement in Jacques Lacan's works, where he understands poetry as subversion of the crystallized order in language, as intervention on the order of the semblant. Especially in Seminar 24 (L 'insu..., 1976-77), associated to courtly love, poetry will offer him the opportunity to theorize about love itself, based on the idea that it is precisely the failure of the unconscious.

Keywords: unconscious; failure; love; poetry.


 

 

A poesia, o amor e o fracasso do inconsciente

"É fácil agora definir a diferença entre a identificação e esse
desenvolvimento tão extremo do estado de estar amando [Verliebtheit]
que chamam de fascinação [Faszination] ou de servidão amorosa [verliebte Hõrigkeit].
No primeiro caso, o eu enriqueceu-se com as propriedades do objeto, 'introjetou '
o objeto em si próprio [...]. No segundo, empobreceu-se, entregou-se ao objeto,
colocou-o no lugar do seu constituinte mais importante. "

- S. Freud, Psicologia das massas..., (1921, p. 83).

"A psicanálise não passa de uma fraude, como a própria poesia. "

 


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- J. Lacan, L'insu..., (15 de março de 1977).

Mammata, pensador da poética na Índia do século XI, asseverava que a poesia opera sobre nós como a pessoa amada, capaz de nos transportar para além de nós mesmos, para além da vida quotidiana (SHULMAN, 2007, p. 306). Se depreendermos dessa afirmação, à nossa maneira, o fato de que a poesia talvez esteja mais para o lado do amante que para o lado do amor, então não surpreende pensarmos o poeta como o faz Baudelaire n'As Multidões: como alguém que "goza desse incomparável privilégio que é o de ser ele mesmo e um outro", para além de si; e que, consequentemente, "isto que os homens denominam amor é bem pequeno, bem restrito, bem frágil comparado a esta inefável orgia, a esta solta prostituição da alma que se dá inteiramente, poesia e caridade, ao imprevisto que se apresenta, ao desconhecido que passa" (BAUDELAIRE, 1869/1995, p. 42).

Não é por menos que a poesia será entendida por Jacques Lacan como subversão, na língua, da ordem cristalizada; e é justamente com isso que nos deparamos ao observar que, com relação às manifestações ordinárias da linguagem em sua função comunicativa, há aí uma diferença fundamental: algo que fratura as estratificações entre os níveis possíveis de nela serem reconhecidos - afinal, como a própria tradição védica já apontava (mas também futuramente notariam, por exemplo, tanto Ferdinand de Saussure quanto Roman Jakobson), a poesia trata-se de um lugar onde som e sentido são igualmente dominantes (SHULMAN, 2007, p. 305).

Contudo, se com Lacan (1973-74, sessão de 8/1/1974) partirmos do entendimento de que "o amor é o amor cortês" - na medida em que ele representa o impossível do laço sexual com o objeto, de modo que amar é dar o que não se tem pra quem não quer -, então a poesia, como escrita de um fracasso (escrita que opera o fracasso para ela em jogo), seria um dos lugares possíveis para que pensemos a relação entre o retorno do mesmo na língua - constitutivo do poético (MILNER, 1989, p. 53) - e o amor pensado não apenas como restrito e frágil, mas tanto como uma artimanha no tratamento da falta quanto como fracasso do inconsciente.

Dito isso, depreendemos uma discrepância: o amor como suplência à inexistência de relação, de um lado, e o amor como aquilo que evidencia a hiância entre os corpos, de outro. Se o véu não apenas oculta, como também indica a existência daquilo que ele recobre, essas duas formas de entender o amor acabam sendo as duas faces de uma só e mesma coisa, de modo que a orientação aí é, pois, algo determinante - na medida em que suscita também posicionar-se a respeito do privilégio dado a um ou outro entendimento possível disso que pode se manifestar através da dubiedade do fenômeno poético.

Ora, num primeiro momento podemos pensar a poesia como sendo a incidência da língua sobre ela mesma, e, assim, algo que retira a linguagem do contexto ordinário - contexto este que é correlato da tentativa comunicacional de unificação entre os seres; da existência da linguagem como algo que se cria, preenchendo-o de uma certa maneira, no intervalo radicalmente inarredável entre um corpo e outro (DE CORDEMOY, 1668/1970). É nessa direção que se pode pensar, com Lacan, que o amor cortês é uma homenagem que a poesia presta ao seu princípio (o desejo sexual), pois, "ainda que esteja dito no texto de Freud que, fora das técnicas especiais, o amor só é acessível sob a condição de sempre permanecer estritamente narcísico, o amor cortês é a tentativa de ultrapassar isso" (LACAN, 1968-69/2008, p. 225).

Eis, então, a poesia como algo que se encontra no limite entre aquilo que se produz como semblante na linguagem (entremeado à manutenção narcísica e o tamponamento da falta) e o ímpeto de cometer aí um atravessamento. Dito isso, como operação de escrita - franca ourivesaria com a instância da letra -, a poesia é não apenas efeito de sentido, mas também efeito de furo (LACAN, 1976-77, sessão de 17/5/1977). Todavia, o poético, então reavivado na temática do amor cortês - na temática do amor cortês, insisto -, cria problemas. Afinal, se o "amor é apenas uma significação", e "o próprio da poesia, quando ela fracassa, é justamente ter apenas uma significação, ser puro nó de uma palavra com uma outra" (LACAN, 1976-77, sessão de 15/3/1977), o que é que aquilo que se passa na poesia cortês e aquilo que, enquanto efeito de sentido, está presente na poesia em geral guardam de relação entre si? Acaso há poesia que não seja fracasso; que, minimamente, não acabe fracassando em dar conta daquilo que a terá produzido?

A própria temática do amor cortês, digamos, insistência sobre o impossível, subtraise a si pela prática textual de uma métrica e de uma rima que a colocam justamente no nível do possível, do simétrico e do regular. Dessa forma, se a poesia cortês fracassa, tendo apenas uma significação, ela, por outro lado, tem êxito em sua constituição material que a retira do círculo quotidiano das práticas verbais - afinal, é poesia, e não outra coisa. Se, portanto, dotada de significação, fracassa como efeito de sentido, ela rompe com a cadência ordinária da língua, em todo caso, e produz o fracasso da cristalização aí em jogo, constituindo obra poética: então, tem êxito. Logo, a tensão entre o sentido e a significação, por sua vez, parece fundamental para que Lacan possa continuar a falar da poesia, de modo geral. E desse modo, como acabamos de notar, aquilo que pode ser chamado de fracasso na ordem do poético mostra-se bastante relativo, uma vez que o que pode muitas vezes fracassar trata-se justamente do que garante alguma eficácia - e que aquele que entra no jogo do poético o faz justamente na medida em que coloca algo a perder.

Mas perder o quê? Ora, se a poesia é - além de efeito de furo - efeito de sentido, cabe lembrar que "o certo é que a vontade de sentido consiste em eliminar o duplo sentido, o que se concebe realizando, se posso assim dizer, este corte, isto é: fazer com que haja apenas um sentido" (LACAN, 1976-77, sessão de 15/3/1977). Ou seja, a poesia é capaz de antecipar-se ao sujeito e nele conclamar o apego a um sentido, a saída prévia de uma ambiguidade, uma escolha, uma resolução. É aí, aliás, que podemos começar a entrever a relação entre os atos poético e analítico, entre aquilo que faz o rapsodo e aquilo em que o analista se propõe a ousar - partida em que Lacan, com efeito, é obrigado a dizer que chega sempre em segundo lugar: "não sou tanto rapdouso, não sou rapdousetanto" (LACAN, 1976-77, sessão de 17/5/1977).

Então resta, inevitável, a pergunta: "Como o poeta pode realizar essa proeza de fazer com que um sentido se ausente?".

É, muito evidentemente, substituindo-o, o sentido ausente, pelo que chamei de significação. [...] A significação é uma palavra vazia; dito de outro modo, é o que, a propósito de Dante, se expressa no qualificativo empregado à sua poesia, à saber, que ela é amorosa. [...] O desejo tem um sentido, mas o amor, tal como já mencionei no meu seminário sobre a Ética, tal como o amor cortês o suporta, é apenas uma significação (LACAN, 1976-77, sessão de 15/3/1977).

É a partir daí que podemos adentrar o título do Seminário em questão, no qual se pode ler - em seus furos, bordejando-os de uma certa maneira - que o fracasso do Unbewusste, o inconsciente, é o amor: L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre (onde ecoa precisamente "l'insuccès de l'une-bévue [Unbewusste], c'est l'amouf'). E isso na medida em que o apego a uma significação, vazia de sentido, faz frente à profusão das formações do inconsciente que com ele estão justamente relacionadas - quer na inundação do sentido causada por um lapso, um ato falho, uma ambiguidade, quer na presentificação do contrassenso em jogo no chiste (uma vez que só o reconhecimento do non sense já supõe, necessariamente, uma demanda de significação não satisfeita).

Se Sigmund Freud pode chegar a admitir que "os processos do sistema Ics são atemporais [zeitlos], isto é, não são ordenados temporalmente [zeitlich geordnet], não são afetados pela passagem do tempo [verlaufende Zeit], não mantêm nenhuma relação com o tempo [keine Beziehung zur Zeit]" (FREUD, 1915/ 2010, cap. 5), e se o inconsciente, que não conhece o tempo, tampouco conhece a negação e o paradoxo, é porque ele é pura articulação de cadeias significantes capazes de se interpenetrarem em pontos quaisquer. Isso justifica, aliás, a afirmação lacaniana de que o paradoxo só se constitui na escrita, a partir da letra, uma vez que, no nível do significante, desconhece-se esse tipo de conflito.

O amor como fracasso, como vazio, traz na temática da poesia cortês a oportunidade de que se instaure, para essa abundância de associações entre cadeias, uma restrição: uma restrição na profusão de sentidos que se engendram no resfalar significante - isto é, um cerceamento dos restos, já que, afinal:

O conteúdo do Ics pode ser comparado a uma população psíquica primitiva [Urbevölkerung]. Se existem no homem formações psíquicas herdadas, algo análogo ao instinto animal [Instinkt der Tiere], é isto que constitui o núcleo do Ics. A isto se soma, mais tarde, o que foi descartado como inútil durante o desenvolvimento infantil, o que, por natureza, não precisa necessariamente ser diferente do que foi herdado. (FREUD, 1915/2010, cap. 6).

O poético encontra-se, então, num lugar privilegiado para dar a esse fator de impossibilidade atribuído ao amor uma formulação linguística stricto sensu. Esta é materializada

na toada da gramática da poesia (em todas as restrições em jogo na sua construção formal), o que não se trata de uma operação qualquer - uma vez que aquilo que se passa com o poeta, enquanto alguém capaz de produzir um texto de natureza tão específica, em definitivo não é algo sumariamente assimilável, como Freud não deixaria de assumir (FREUD, 1907/1969, p. 171); ao mesmo tempo em que o que isso pode dizer à doutrina analítica não é óbvio, dando azo minimamente a apropriações entre si tão diversas do poético quanto aquelas feitas pelo próprio Freud e, num segundo momento, por Lacan.

Porém, nos importa aqui mais o fato de que o poético constitui, na língua, justamente um fazer com a restrição: seja ela declarada, seja o simples fato de que a sua construção se baseia na eleição de uma prática verbal inútil, i.e., uma retirada do domínio das trocas nas quais a comunicação ordinária está invariavelmente inserida - e da qual, cumpre notar, a prosa tende mais a herdar alguns elementos. Enquanto corruptela da tentativa de reunir os corpos através da fala, no espectro das línguas, a poesia faz com o irrecuperável da sua própria separação; elege a falta não apenas como seu operador, mas como seu tema - e, não por menos, a poesia diz invariavelmente de si mesma, mediante um retorno das línguas sobre si mesmas (versus) que sempre revela o vazio que tal percurso comporta: a "falha ontológica" de que falava Foucault (1963, p. XXII) a respeito da linguagem.

Nesse momento podemos retomar a afirmação freudiana a partir da qual, ao longo do tratamento analítico, assevera-se que wo Es war, soll Ich werden [onde isso era, eu deve advir]. Se esses processos levados a cabo na análise se efetuam no nível do eu que advém, e se este não é totalmente consciente, não custa notar que talvez o que esse eu sofre é justamente os efeitos de algo que o traspassa e o rebaixa, a ponto de se poder afirmar que "os processos inconscientes só se tornam reconhecíveis para nós sob as condições do sonho e das neuroses; portanto, quando processos do sistema mais elevado, o Pcs, forem remetidos de volta para uma fase anterior por [força de] um rebaixamento (regressão)" (FREUD, 1915/2010, cap. 5). Assim, embreador dessa passagem, o ato analítico pode ser entendido como algo que convoca uma inscrição, a ultrapassagem de algo não sabido por esse eu que assume o seu lugar - desconhecimento em jogo, aliás, tanto para o analista quanto para o analisante, uma vez que o eu terá sido menos o mobilizador do que justamente o implicado nos efeitos desse ato, já que sequer o sujeito é o seu gatilho (LACAN, 1967-68, sessão de 29/11/1967).

Contudo, a poesia amorosa, enquanto tema genérico, não é capaz de subsumir as características da temática do amor cortês de que fala Lacan. Isto é: a poesia amorosa, de modo geral, é exatamente o apego ao sentido, e não a significação vazia do amor que explicita o impossível da relação sexual. Somos obrigados, então, a conceber duas dimensões da poesia: primeiramente, aquela que é capaz de conclamar do sujeito um sentido ao qual ele se fixe e dele tire consequências (capaz, portanto, de despertar um discurso) - a poesia escrita, na medida em que atualiza o rompimento com o compromisso presente na língua saussuriana; em segundo lugar, a poesia dita, que, segundo afirma o próprio Lacan, adormece - uma vez que as escolhas moduladas pela voz do sujeito que fala já apaziguam a natureza daquilo que estava colocado ali enquanto radicalidade da letra. Talvez ainda se possa acrescentar à segunda a poesia que se orienta na esteira do sentido, cuja temática suplanta o que se pode modular no nível do significante (o que poderíamos chamar, em oposição a uma prosa poética, de uma poética prosaica), ao mesmo tempo em que lembrar, junto à primeira, de uma certa prosa capaz de lidar com o estilhaçamento em jogo na pena poética.

Se, por fim, o poeta, como já citamos dizer Baudelaire, consegue ser ele mesmo e um outro, na inefável orgia das construções verbais, a poesia amorosa é traição de si mesma, no jogo tímido de reavivar a intimidade dos corpos, no ritmo e entonação de suas polifonias; ao mesmo tempo em que, como furo - a poesia como uma prática da "anderobscenidade" de lalíngua - incide no real da língua como transgressão do comum, como extimidade. Estamos diante, portanto, da traição da cristalização linguística no uso: tentativa de franqueamento do amor narcísico, tão presente para Lacan no amor cortês justamente porque, como já observara Freud (1921, pp. 82-3):

isso acontece com especial facilidade com o amor infeliz e que não pode ser satisfeito, pois, a despeito de tudo, cada satisfação sexual envolve sempre uma redução da supervalorização sexual. Ao mesmo tempo desta "devoção" [Hingabe] do eu ao objeto - a qual não pode mais ser distinguida de uma devoção sublimada a uma ideia abstrata -, as funções atribuídas ao ideal do eu deixam totalmente de funcionar. A crítica exercida por essa instância silencia; tudo que o objeto faz e pede é correto e impecável [recht und untadelhaft]. A consciência não se aplica a nada que seja feito em prol do objeto; na cegueira do amor, delinque-se sem pesar. A situação toda se deixa resumir inteiramente numa fórmula: o objeto foi colocado no lugar do ideal do eu [Das Objekt hat sich an die Stelle des Ichideals gesetzt].

Essa particularidade que a poesia entretém com o fracasso do amor e o objeto faz com que ela, em geral, seja capaz de inocular estilhas de real no simbólico, sem, todavia, fazer coagulá-los na ordem da escrita científica. Com isso, ela talvez diga muito do fato de que Lacan - para além das falas plena e vazia - tenha ido procurar exatamente no poético um outro estado de língua para dar sequência às suas teorizações. Ao afirmar, por exemplo, que a poesia é "imaginariamente simbólica" (LACAN, 1976-77, sessão de 15/3/1977), Lacan a qualifica da mesma forma que a Verdade. Assim, se, para "interrogar a demansão da Verdade" - como ele afirmava no Seminário 18 - é indispensável a escrita... não parece banal que, desde o início dos anos 1970, vá dando cada vez mais peso à escrita poética e a espacializações capazes de veicular aquilo que está em jogo no e para o inconsciente, através de exacerbados exercícios de topologia.

Se aqui falamos de fracasso, franqueamento e traição, há muito o que se pensar sobre a poesia no campo da psicanálise. Afinal, como afirmou Henri Meschonnic - ecoando o Freud que falava sobre o campo do saber que desenvolvia em torno de sua invenção do inconsciente - , a "poesia nunca é a poesia que já obteve êxito", ela é o ato de "reinventar relações que não são apenas de palavras, mas de sujeitos com o mundo, entre eles, e com sua história" (MESCHONNIC, 1985, p. 181).

Ora, se o amor é aquilo que vem juntamente na suplência e na possibilidade de transgredir o intervalo radical entre os corpos dos amantes, não custa notar em que medida ele ritualiza o fracasso disso que pressupõe a linguagem - aparato que se inscreve precisamente numa impossibilidade, nesse entremeio, mas que a ela não cansa de retornar na tentativa de desmenti-la; e que, sendo condição para a existência de um saber que não se sabe sabendo, não deixa de estar sujeito à degradação de um amor, um amor que empobrece o eu e que, produzindo devastações (LACAN, 1972-73/1982, p. 12), é capaz de convocar o sujeito a refazer, de outro modo, os laços com as suas circunstâncias: "o eu se torna cada vez mais despretensioso, modesto [anspruchsloser, bescheidener] e o objeto cada vez mais sublime, precioso [großartiger, wertvoller], até obter finalmente a posse de todo o auto-amor do eu [Selbstliebe des Ichs], cujo autossacrifício decorre, assim, como consequência natural. O objeto, por assim dizer, exauriu o eu [hat das Ich aufgezehrt]" (FREUD, 1921, p. 82).

 

Referências bibliográficas

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De CORDEMOY, Géraud (1668/1970) Discours physique de la parole. Facsímile da edição de 1704. Paris: Le Graphe.         [ Links ]

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MILNER, Jean-Claude (1989) Introduction à une science du langage. Paris: Seuil.         [ Links ]

SHULMAN, David. (2007) "How to bring a goddess into being through visible sound". In: LA PORTA, Sergio; SHULMAN, David. (Orgs.). The Poetics of Grammar and the Metaphysics of Sound and Sign. Leiden-Boston: Brill, p. 306-341.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 12/06/2014
Aprovado em: 06/09/2014

 

 

1 Nota do editor: a imagem do quadro de Kari Grasmo está em seu catálogo virtual no endereço http://bildegalleri.karigrasm0.n0/#!album-0-35