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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.6 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Corpo, transmissão e processo civilizador: Sigmund Freud e Norbert Elias

 

Body, transmission and civilizing process: Sigmund Freud and Norbert Elias

 

 

André Oliveira CostaI; Paulo César EndoII

IPsicanalista, membro da APPOA, mestre em Filosofia pela PUCRS, doutor em Educação pela UFRGS. E-mail: androlicos@gmail.com
IIPsicanalista, professor doutor do Instituto de Psicologia da USP e da Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades. E-mail: pauloendo@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo pretende estabelecer um diálogo entre a psicanálise de Sigmund Freud e a sociologia de Norbert Elias, tendo como ponto de aproximação a hipótese a perda pulsional como operador que articula a relação entre sujeito e cultura. Para Elias, o processo civilizador transmite ao indivíduo normas e regras sociais na forma de autorregulação e autocontrole dos objetos e das funções corporais. Em Freud, a imbricação do sujeito com a cultura é uma relação operada pelo corpo. A pulsão dá as condições de coletivização do sujeito.

Palavras-chave: corpo, transmissão, processo civilizador, pulsão.


ABSTRACT

This paper aims to provide a dialogue between Sigmund Freud's psychoanalysis and Norbert Elias's sociology. The common point is the hypothesis of drive loss as an operator that articulates the relationship between subject and culture. For Elias, the civilizing process transmits to individual social norms and rules in the form of self-regulation and self-control of objects and bodily functions. For Freud, the body operates the relationship between subject and culture. The drive gives to subject the conditions of collectivization.

Keywords: body, transmission, civilizing process, drive.


 

 

 

De que maneira podemos pensar a afetação da relação entre indivíduo e sociedade? Devemos considerar o indivíduo como sendo influenciado pelos acontecimentos e mudanças da sociedade ou, ao contrário, a sociedade é quem sofre os efeitos singulares de cada indivíduo? Trata-se de termos independentes e autônomos, mas que se influenciam mutuamente? Encontramos no pensamento do sociólogo Norbert Elias uma alternativa de resposta para essas perguntas que pretende ultrapassar a dicotomia que geralmente se apresenta entre indivíduo e sociedade. Para Elias, mais do que termos separados, o que adquire relevância é a justaposição que se estabelece entre eles. Nesse sentido, "O Processo Civilizador" e "A Sociedade dos Indivíduos" são obras fundamentais para compreender esse projeto, pois ali o sociólogo desenvolve a tese de que a relação entre indivíduo e sociedade não se sustenta na implicação de um sobre o outro, mas de uma continuidade diferenciada, em que ambos são considerados como faces diferentes de uma mesma estrutura.

A questão a partir da qual parte a pesquisa de Norbert Elias se insere na problemática da relação entre as estruturas psicológicas individuais e as estruturas sociais, na medida em que certas disciplinas, dentre as quais a sociologia, tendiam a dar peso a um dos termos da relação, afirmando "um abismo intransponível entre o indivíduo e a sociedade" (ELIAS, 1939b/1990, p. 15). Contudo, ainda hoje esse problema se coloca, quando tentamos pensar a afetação, imbricação, justaposição ou mútua determinação da relação entre indivíduo e sociedade.

Se determinados modelos de pensamento compreendem o indivíduo como uma entidade autônoma e a-histórica de um lado e, de outro, o coletivo, a massa, a sociedade são preconizados como mônadas infensas à singularidade e aos processos subjetivos que os atravessam, fica evidente a carência de formações de pensamento limitadas a princípios ainda não superados.

Para que se possa ultrapassar o abismo que foi construído entre um e outro, sem cair em uma estrutura totalizada, uma perda deve ser inscrita. Nossa hipótese, acompanhando Freud e Elias, é que se trata da perda, imposta por regras sociais aos indivíduos, de uma certa parcela da satisfação pulsional que é capturada ou interrogada no seio de processos pré-existentes e simbolicamente determinantes. Os objetos da pulsão são recalcados da esfera privada para circularem simbolicamente na esfera pública. O que sustenta a imbricação da relação entre indivíduo e sociedade, então, é aquilo que circula no espaço entre eles.

A partir dessas ideias, apresentamos um diálogo entre a psicanálise de Sigmund Freud e a sociologia de Norbert Elias que identifica, a partir dos dois autores, um projeto de ultrapassamento da dicotomia entre indivíduo e sociedade que sustenta uma operação de perda comum a ambos os termos desta relação. O processo civilizador é a operação de transmissão de uma cultura que faz com que as regras e normas sociais, num determinado momento de origem externa, se inscrevam no indivíduo e passem a operar sob a forma de autocontrole. Através do processo civilizador, há uma continuidade entre a estrutura da personalidade e a estrutura social.

Outrossim, a sociedade, ao transmitir seus valores ao indivíduos que a compõem, deve abdicar do gozo sobre a circulação de certos objetos pulsionais. E aquele que recebe a transmissão também deve perder do ganho psíquico da relação com esses objetos. Trata-se de uma transmissão cultural que faz com que a sociedade, sob a forma de controle e regras sociais, se inscreva nos indivíduos, nos termos de Elias, como autocontrole e autorregulação, através de operações sobre os corpos, em suas pulsões e afetos. Entretanto, a inscrição dessa perda não se faz sem a produção de sintomas.

 

A dicotomia entre indivíduo e sociedade segundo Sigmund Freud

Certamente, o primeiro texto de Freud, no qual o objeto específico de análise são as condições da sociedade de seu tempo, é "A moral sexual 'civilizada' e a doença nervosa moderna", de 1908. Entretanto, ele nunca deixou de considerar os efeitos psíquicos produzidos por influências extra psíquicas. A primeira vez que o debate entre indivíduo e sociedade aparece na obra de Freud encontra-se no "Rascunho N", anexado à carta que Freud enviou a seu amigo Wilhelm Fliess, no dia 31 de maio de 1897. Às voltas com a análise de seus sonhos, com o tema do incesto como uma provocação real que formaria as estruturas das neuroses histérica e obsessiva - ponto de vista que será abandonado poucos meses depois - e já tendo fundamentado sua teoria das psiconeuroses no mecanismo de repressão sobre a sexualidade, o debate sobre a tensão que se estabelece entre o registro da sexualidade e o registro social se apresenta na discussão sobre a saúde como um sacrifício que o homem faz a uma parcela de sua liberdade.

O horror que o incesto produz condiciona as organizações sociais, segundo essa passagem de Freud, a manterem uma vida sexual com certas limitações. Assim, afirma Freud, "o incesto é antissocial, e a cultura consiste na progressiva renúncia ao mesmo" (FREUD, 1897/2003, p. 3575). Essa afirmação de Freud estabelece, já em 1897, que a base da sociedade esteja fundamentada na imposição de renúncia ao gozo. Toda experiência que efetiva essa recusa à interdição cultural se inscreve fora do laço social.

 

 

Freud começa o texto "A moral sexual 'civilizada' e a doença nervosa moderna" apresentando as posições de alguns eminentes observadores da época, que afirmavam haver uma implicação direta da vida civilizada moderna com o crescimento das doenças nervosas. Explicitando a antítese entre os fatores constitutivos e os efeitos causados pela sociedade, exemplifica com a hipótese de que uma pessoa, reportando-se a seu médico, bem poderia justificar que, em sua família, todos aqueles que almejaram crescer mais do que suas origens permitiam, ficaram doentes dos nervos. Do mesmo modo, seria possível observar que caem enfermos os descendentes de campesinos, procedentes de famílias pobres, que se deslocaram para a cidade com a intenção de conquistar uma posição social e cultural superior.

São pontos de vista que sustentam a ideia de que a civilização moderna provoca o aumento das doenças mentais. Para corroborar suas hipóteses, elas analisam as condições da vida social do início do século XX. E Freud apresenta os resultados: as extraordinárias conquistas dos tempos modernos; as grandes descobertas; o aumento das necessidades individuais; a busca pela realização imediata do prazer; o luxo que pode ser acessado por uma quantidade maior de pessoas; o desenvolvimento das telecomunicações; tudo é pressa e agitação; as pessoas passaram a participar mais das atividades políticas; a vida urbana cada vez mais insegura; a busca por prazer; a desvalorização dos princípios éticos. Até mesmo as artes cênicas e plásticas, assim como a música, que se tornou mais agitada e mais barulhenta, são eventos modernos que acrescem as doenças neuróticas.

Todos esses acontecimentos, descritos por esses críticos da modernidade, exigiram dos homens maior gasto de energia, foram feitos "à custa do sistema nervoso" e pelo esforço mental para acompanhar a crescente exigência social sobre o indivíduo. Freud não discorda desses autores. Mas sua posição é que essas críticas são insuficientes para explicar as patologias nervosas, ao ignorarem o fator etiológico mais importante: "Podemos, portanto, considerar o fator sexual como o fator básico na causação das neuroses propriamente ditas" (FREUD, 1908/2003, p. 1251). E Freud deixa mais claro ainda: "a influência prejudicial da civilização reduz-se principalmente à repressão nociva da vida sexual dos povos (ou classes) civilizados através da moral sexual 'civilizada' que os rege" (FREUD, 1908/2003, p. 1251). Se, por um lado, os fatores sociais são 'prejudiciais', na medida em que produzem os sintomas, por outro lado, eles participam do processo de recalcamento, próprio da estruturação psíquica.

Pouco tempo depois, no texto "O interesse cientifico da psicanálise", de 1913, Freud anuncia os princípios que sustentam suas ideias sobre uma psicanálise social. O fundamento que Freud parte é o seguinte: "A psicanálise estabelece uma íntima relação entre essas realizações do indivíduo e da sociedade ao postular para ambos a mesma fonte dinâmica" (FREUD, 1913/2003, p. 1864). É certo que a psicanálise começou investigando os sintomas neuróticos individuais, "mas ao fazer estas investigações, não podia deixar de tratar as bases afetivas da relação do indivíduo com a sociedade" (FREUD, 1913/2003, p. 1865). Toda psicologia individual é também uma psicologia social. Esta afirmação, porém, só pode ser verdadeira se ambos compartilham, pelo menos, um elemento em comum. Nos sentimentos sociais também são encontrados elementos eróticos, que, ao sofrerem a força da repressão, constituem as doenças anímicas.

o conhecimento das doenças neuróticas do indivíduo facilitou muito a compreensão das grandes instituições sociais, pois as neuroses mostraram ser tentativas de resolver individualmente os problemas da compreensão dos desejos insatisfeitos, que deveriam ser resolvidos socialmente pelas instituições (FREUD, 1913/2003, p. 1864).

Assumindo que há uma perda comum que forma as estruturas psíquicas e as estruturas sociais, nos colocamos em direção oposta ao entendimento de uma implicação recíproca de uma sobre a outra. No pêndulo entre o registro psíquico e o campo social, a psicanálise reconhece que "as neuroses são associais em sua natureza, e tendem sempre a expulsar o indivíduo da sociedade, substituindo a segura reclusão monástica pelo isolamento da enfermidade" (FREUD, 1913/2003, p. 1865). A solidão da neurose marca o empuxo ao afastamento dos laços sociais.

Assim, fica evidente que ele estabelece uma relação entre estruturas psíquicas e estruturas sociais que tem a mesma origem. Ambas são formações do inconsciente análogas umas às outras, pois o conteúdo recalcado que não pode ser inscrito no laço social retorna na forma de sintomas. O recurso do mecanismo psíquico da analogia permite afirmar que, de acordo com os diferentes percursos adotados para suas soluções, os conflitos levam à criação das neuroses e das instituições sociais. Quando escreve o texto "Psicologia das massas e análise do eu", em 1921, sua ideia é bastante clara: "tentaremos admitir a hipótese de que na essência da alma coletiva existem também relações amorosas, ou para empregar uma expressão neutra, laços afetivos" (FREUD, 1921/2003, p. 2577). O inconsciente não se encontra em nenhum dos lados da equação, mas no entre da singularidade do indivíduo e a pluralidade do coletivo.

A analogia entre um sintoma neurótico e uma produção social se explica pelo fato que as neuroses são formações que tentam realizar através de meios particulares o que não pode ser realizado por meios coletivos. Freud avança nas pesquisas sobre a correspondência entre os campos da "psicologia individual" e da "psicologia social" através da aproximação entre ambas. Mais do que uma aproximação, o que faz é afirmar que o coletivo recapitula os mecanismos próprios do inconsciente. Poder dizer que toda formação psíquica é também uma formação social deve ter em consideração a relação lógica que se estabelece entre indivíduo e sociedade. Mas a superação dessa dicotomia não se faz sem a produção de restos.

Todo sintoma individual é também um resto das relações sociais. Na formação dos sintomas, identifica-se os recalques desse ultrapassamento, pois a neurose faz o indivíduo associal, afastando-o dos laços sociais. Afirma Freud: "Abandonado a si mesmo, o neurótico se vê obrigado a substituir as grandes formações coletivas de que se achava excluído. Ele cria seu próprio mundo de imaginação, sua religião e seu delírio" (FREUD, 1921/2003, p. 2609). O isolamento nos sintomas neuróticos fica como saída do mal-estar social. Para a resolução dos conflitos psíquicos, a reinscrição nas formações sociais: "sempre que se manifestam tendências à formação coletiva, se atenuam ou mesmo desaparecem os sintomas neuróticos" (FREUD, 1921/2003, p. 2608). E assim se estrutura o seguinte paradoxo. A vida em comunidade é uma das fontes do mal-estar, que só pode ser resolvido na inserção em laços sociais. Fazer do mal-estar possível é insistir no impossível de reinscrevê-lo.

 

O ultrapassamento da dicotomia entre indivíduo e sociedade por Norbert Elias.

Na segunda metade da década de 1930, Norbert Elias estava trabalhando em sua obra "O processo Civilizador". Uma parte desse livro, que dizia respeito à relação entre a sociedade e os indivíduos, foi retirada da publicação original e só veio a aparecer ao público em 1987, com o título "A Sociedade dos Indivíduos". Ambas as obras, porém, sustentam uma das elaborações críticas centrais de seu pensamento, a saber, ultrapassar a oposição abismal que o pensamento moderno estabelece entre o indivíduo e os objetos, determinando-os como termos opostos e mesmo inconciliáveis.

Por efeito da distinção entre o que é próprio e o que é alheio, qualquer ideia que se baseie num abismo intransponível entre indivíduo e sociedade, de alguma forma, assume uma posição a favor ou contra um dos lados. A posição de Elias, ao contrário, explicitamente se afasta desta antítese. Assim, ele projeta em "A Sociedade dos Indivíduos": "Mas e se uma compreensão melhor da relação entre indivíduo e sociedade só pudesse ser atingida pelo rompimento dessa alternativa ou isto/ou aquilo, desarticulando a antítese cristalizada?" (ELIAS, 1939a/1994, p. 18). Nem a sociedade, nem o indivíduo receberiam maior importância que o outro. Nem um seria o fim, nem o outro o meio. A vida em comunidade não se fundaria apenas em um harmonioso agir sob regras de conduta e os indivíduos não funcionariam apenas numa moralidade subjetiva, isolada de seus pares.

Para Elias, cada pessoa é criada por outras que existem anteriormente a ela, surgindo necessariamente como parte de uma associação de pessoas, de um "todo social". Isso, porém, não distingue graus de importância entre o indivíduo e o grupo social ao qual ele pertence. Apenas quer dizer que nem a sociedade é maior que o indivíduo, nem o indivíduo é parte da sociedade, assim como nem o indivíduo tem maior ou menor valor que seu coletivo. Elias busca uma maneira de pensar os indivíduos como indissociáveis da relação com o outro, assim como de conceber a sociedade como resultante de um agrupamento de pessoas.

conceitos como "indivíduo" e "sociedade" não dizem respeito a dois objetos que existiriam separadamente, mas a aspectos diferentes, embora inseparáveis, dos mesmos seres humanos, e que ambos os aspectos (e os seres humanos em geral) habitualmente participam de um processo de transformação estrutural (ELIAS, 1939b/1990, p. 220).

Não são dois elementos isolados, eles não estão em relação de subordinação do maior sobre o menor, nem são estruturas harmônicas e estáveis. O pensamento dicotômico que coloca uma barreira intransponível entre indivíduo e sociedade costuma assumir aquele como um ser independente, autossuficiente e fechado em si mesmo. Por outro lado, a sociedade fica caracterizada como "alguma coisa completa em si, de uma formação de contornos nítidos, de uma forma perceptível e uma estrutura discernível e mais ou menos visível" (ELIAS, 1939a/1994, p. 20). Comumente encontramos no pensamento acadêmico uma personagem marcada por essa estrutura fechada. Na Filosofia, por exemplo, o sujeito filosófico existe a priori e em excelência. Não é alguém que passou pelo processo de desenvolvimento próprio da natureza humana e de sua sociedade. Trata-se do homo philosophicus que, olhado mais atentamente, pode ser encontrado em diferentes versões: homo œconomicus, psychologicus, sociologicus e pœdagogicus. São personagens acima de tudo ideais, estáticos e universalmente replicáveis.

Identificadas na figura do homo clausus, ela estabelece uma crítica a todos os campos de conhecimento que definem o indivíduo como um ser autônomo, cuja estrutura é independente e isolada dos objetos e do contexto do qual faz parte. Assim a descreve Elias: "seu núcleo, seu ser, seu verdadeiro eu aparecem igualmente como algo nele que está separado por uma parede invisível de tudo o que é externo, incluindo todos os demais seres humanos" (ELIAS, 1939b/1990, p. 238). Mas a natureza dessa parede nunca chegou a fazer questão para essas disciplinas. A distinção entre continente e conteúdo, entre dentro e fora, parte como se indivíduo e sociedade - ou pensamento e corpo - fossem como um vaso, cuja parede contém em si o verdadeiro ser e como se a pele fosse o limite entre o que é interno e externo.

Movimentando-se no caminho inverso às posições totalizantes, Elias propõe uma interrelação de indivíduos abertos, com um certo grau de liberdade para as mudanças, formando uma teia de laços invisíveis, igualmente aberta, denominada de 'sociedade'.

A imagem do homem como 'personalidade fechada' é substituída aqui pela 'personalidade aberta', que possui um maior ou menor grau (mas nunca absoluto ou total) de autonomia face à de outras pessoas e que, na realidade, durante toda a vida é fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente delas. A rede de interdependência entre os seres humanos é o que os liga (ELIAS, 1939b/1990, p. 249).

Desaparece a concepção idealizada de sociedade estática e composta por membros isolados. Antes disso, o que se mostra são redes sociais que sofrem constantes transformações e mudanças através da ação do processo civilizador, da aprendizagem social, da educação, da socialização e das necessidades sociais recíprocas. A teia social não passa de uma pluralidade de numerosas pessoas interdependentes em relação a suas funções.

Elias também não pensa a sociedade como tendo contornos nítidos, completa em si mesma, com todas as estruturas visíveis: "Consideradas como totalidades, [as estruturas sociais] são mais ou menos incompletas: de onde quer que sejam vistas, continuam em aberto na esfera temporal em direção ao passado e ao futuro" (ELIAS, 1939a/1994, p. 20). Conceber a incompletude da estrutura social implica reconhecer sua condição de estrutura dinâmica, em constante mudança, na qual cada pessoa assume um determinado lugar, tem uma função, uma propriedade ou uma tarefa específica em relação aos outros.

A anterioridade da rede social na qual o indivíduo nasce determinam a escolha das mudanças de suas funções. Cada indivíduo emerge dentro de um contexto de "laços invisíveis", de dependência de outros e destes igualmente dependentes dele. Esses laços formam uma rede na qual cada um pode circular de forma limitada. Não é da livre escolha de um indivíduo mudar de posição no laço com os outros, sendo passível, apenas, que se desloque para aquelas funções que seriam determinadas previamente pela estrutura de relações na qual foi formado.

Por nascimento, ele está inserido num complexo funcional de estrutura bem definida; deve conformar-se a ele, moldar-se de acordo com ele e, talvez, desenvolver-se mais, com base nele. Até sua liberdade de escolha entre as funções preexistentes é bastante limitada. Depende largamente do ponto em que ele nasce e cresce nessa teia humana, das funções e da situação de seus pais e, em consonância com isso, da escolarização que recebe (ELIAS, 1939a/1994, p. 21).

É como fruto da história dos relacionamentos que se estende o plano que sustenta a posição desde onde o indivíduo se enuncia, e é essa história que determina a função que cada um vai ocupar na rede de relações humanas. São como rastros de uma memória que transcende o indivíduo e nele se atualiza a história passada. O indivíduo emerge dentro de uma rede de relações preexistente ao seu nascimento, mas, ao mesmo tempo, tampouco o contexto funcional existe fora dos indivíduos, na medida em que se trata de funções que uma pessoa exerce sobre outras.

A rede de interdependências refere-se às funções que cada indivíduo possui em relação às funções de outros indivíduos. O que se estabelece, portanto, não é exatamente uma associação entre indivíduos, mas relações entre funções. Também não se trata de laços originados pela vontade particular de cada um. Não foi a partir da livre decisão de muitos, como num contrato social, que essa rede funcional emergiu.

Assim, cada pessoa singular está realmente presa; está presa por viver em permanente dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que as prendem. (...) E é essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a outras, a ela e nada mais, que chamamos "sociedade". Ela representa um tipo especial de esfera. Suas estruturas são o que denominamos "estruturas sociais" (ELIAS, 1939a/1994, p. 23).

As regularidades das relações não surgem nem em função de uma entidade social, que se apresenta como supra-individual, nem devem ser buscadas na consciência dos indivíduos, enquanto seres que seriam, em si mesmos, independentes de onde estão inseridos. Sua estrutura encontra-se no entre as partes, entre o complexo de funções que elas assumem uma em relação a outra e ao todo. É preciso começar a pensar, então, não mais na antítese de entidades isoladas e estruturas totalizadas, mas em termos de relações e funções.

É interessante notar a importância da psicanálise na e para a leitura de Elias, especialmente no que diz respeito à função do outro na constituição do indivíduo. No texto "Psicologia das massas e análise do eu", Freud afirma que "na vida anímica individual aparece integrado sempre, efetivamente, 'o outro', como modelo, objeto, auxiliar ou adversário" (FREUD, 1921/2003, p. 2563), e, com isso, mostra que a psicanálise inscreve a alteridade na estrutura subjetiva. Em função da natureza das pulsões e da condição de desamparo que uma criança surge no mundo faz com que ela se desenvolva apenas dentro de laços históricos e sociais. Também para Elias um indivíduo só pode existir enquanto constituído na relação com os outros.

Então se constata - ao se adotar um ponto de vista dinâmico mais amplo, em vez de uma concepção estática - que a visão de um muro intransponível entre um ser humano e todos os demais, entre os mundos interno e externo, evapora-se e é substituída pela visão de um entrelaçamento incessante e irredutível de seres individuais, na qual tudo o que confere a sua substância animal a qualidade de seres humanos, principalmente seu autocontrole psíquico e seu caráter individual, assume a forma que lhe é específica dentro e através de relação com os outros (ELIAS, 1939a/1994, p. 35).

O indivíduo não está propriamente condicionado ao que lhe é externo, pois esta influência alheia não é oposta ao que lhe é interno. A superação da dicotomia indivíduo/sociedade resulta na estrutura de entrelaçamentos de funções e lugares dentro de um conjunto. As unidades são fragmentos funcionais desta rede de relações. Por exemplo, os gestos de um bebê não são produtos de seu organismo, nem de seu ambiente, nem também da interação entre as distintas esferas do "dentro" e "fora".

Qualquer que seja a estrutura ou a parte do indivíduo que recortamos de seu todo - as funções psíquicas como ego, inconsciente e inclusive o próprio corpo - deve-se ter em consideração que se tratam de funções que estão em relação a outras pessoas e coisas. Para Elias, a imbricação entre indivíduo e sociedade deve necessariamente ser pensada em termos de funções que determinam relações: "As estruturas da psique humana, as estruturas da sociedade humana e as estruturas da história humana são indissociavelmente complementares, só podendo ser estudadas em conjunto" (ELIAS, 1939a/1994, p. 38). Não é possível apreender o indivíduo como isolado, mas apenas através das relações que ele estabelece com os outros. Devemos, portanto, ter em mente a dimensão do entre os indivíduos, de modo que a estrutura psíquica não seja estranha à sociedade, mas nelas encontra o seu principal substrato.

Pensar a imbricação entre indivíduo e sociedade não implica a anulação da singularidade de cada um dos termos. O que inscreve o indivíduo na sociedade é a associação entre seus desejos com o desejo das outras pessoas, sua dependência dos outros e a que eles têm dele. Trata-se de uma rede de interdependência, na qual o centro não é nem o indivíduo, o "eu", nem o social, o "nós". Trata-se de uma estrutura que rompe com a lógica de conteúdo e continente: "O que é moldado pela sociedade também molda, por sua vez: é a auto-regulação do indivíduo em relação aos outros que estabelece limites a auto-regulação destes" (ELIAS, 1939a/1994, p. 52). Assim, Norbert Elias pretende provocar uma "revolução copernicana" na sociologia, indo contra a significação geocêntrica das relações e deslocando o ponto de partida do pensamento de quem olha de dentro para fora.

Veremos agora, como a transmissão cultural se sustenta em uma operação de perda. A inscrição no indivíduo de normas e regras sociais leva-o a ter que abandonar certos modos e padrões de comportamento, renunciando a uma forma de satisfação pulsional que o colocava em relação particular com certos objetos. Para que se possa inscrever um novo registro social, aquele que recebe os novos valores e exigências precisa renunciar a certos modos de satisfação. A transmissão de uma cultura implica a criação de uma nova estrutura social a partir de uma perda.

 

O corpo como articulador da relação sujeito e cultura.

O uso de certas palavras aparentemente pode ser insignificante, mas insere aquele que fala em um determinado modelo de pensamento. A linguagem revela nossa posição e dela decorrem consequências que precisam ser desenvolvidas. Quando nos referimos ao termo "indivíduo", pensamos que nele não se inscrevem os traços da cisão do inconsciente. Somos levados, então, a representar o "indivíduo", desde a psicanálise, como a instância que enuncia o saber de seu lugar em relação ao outro, e a fazer um deslocamento para "sujeito", enquanto lugar dos efeitos inconscientes deste discurso, da produção de um saber que não se sabe.

Por outro lado, a noção de "sociedade", tal como nos propõe o debate com Norbert Elias, também sofreu deslocamentos de significação. Com os primeiros trabalhos de Freud, mantivemos esse termo, acompanhando por vezes a tinta do psicanalista, mas também na medida em que pensamos que ele ainda não estava preocupado em desenvolver uma "teoria psicanalítica da cultura". Norbert Elias nos ajuda a pensar essa proposição ao trabalhar a diferença entre "civilização" e "cultura". De sua análise, a sociedade é apresentada como uma instituição social que se aproxima do conceito de civilização enquanto instituição que constitui a esfera da eticidade, junto com a família e o Estado. A cultura, por sua vez, auxilia responder à pergunta: "Qual é, realmente, nossa identidade?" (ELIAS, 1939a/1994, p. 25). Esse termo implica o estabelecimento da própria natureza humana, como veremos adiante.

Perguntar sobre as afecções da relação entre indivíduo e sociedade no âmbito da psicanálise nos deslocou para a questão entre sujeito e cultura. De que modo são as afecções desta relação? Certos operadores articulam esses termos em uma mesma estrutura, de modo que entre eles se estabelece uma continuidade diferenciada. A inscrição do sujeito na cultura se faz através de uma operação sobre os corpos. A transmissão da cultural inscreve a perda de um objeto pulsional, comum a ambos os termos da relação.

O corpo, através de seus orifícios e buracos, possibilita o ultrapassamento da oposição entre sujeito e cultura, instaurando uma forma de estar, ao mesmo tempo, "dentro" e "fora". Os limites do corpo esvanecem as fronteiras entre o eu e o outro. Tanto o pathos individual como as estruturas sociais são efeitos dos mesmos processos civilizatórios. Para que o sujeito possa estabelecer laços com o outro, deve recalcar aquilo que não pode fazer parte da esfera coletiva. O controle mais rigoroso sobre os impulsos, que num tempo anterior tinha origens externas, é internalizado no próprio indivíduo como autocontrole gerenciado pelo supereu, agora o responsável pela remarcação das fronteiras, reconhecendo os limites do eu e do outro pela identificação e pela proibição. É o supereu quem faz o reconhecimento entre o que é próprio e o que é alheio, entre o que é público e privado.

Segundo Freud, a diferenciação entre eu e outro não está estabelecida desde o início. Aos poucos a criança vai construindo o que diz respeito a si própria, às dimensões de seu corpo, e àquilo que está fora dela e constitui o mundo externo. Vejamos, então, como opera, esse processo de estabelecimento das fronteiras entre o eu e o outro, entre o que está "dentro" e o que está "fora".

Para Freud, a bipartição entre subjetividade (mundo interno) e objetividade (mundo externo) não está dada desde o início da formação subjetiva. Tal como afirma no texto "A negativa", a distinção entre a existência real de um objeto dentro ou fora do indivíduo é um segundo tempo da função do pensamento. Na medida em que as representações psíquicas surgem através das percepções vindas da sensibilidade corporal, o primeiro tempo da subjetividade é de indiferenciação entre o eu e o outro, entre o "dentro" e o "fora". Nesse momento mítico, a representação era garantia suficiente da existência da realidade do objeto representado: "a mera existência de uma representação constituía uma garantia da realidade daquilo que era representado. A antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início" (FREUD, 1925/2003, p. 2885). Assim, a criança vai registrando em sua memória os traços dos objetos que lhe produziram prazer e desprazer, atribuindo a eles qualidades de bom e mal. Como, segundo Freud, o psiquismo é regido pela lógica do princípio do prazer, inicialmente tudo o que é bom deve ser apreendido, inscrito dentro de si, e tudo o que for mal deve ser afastado, jogado para fora. É como se o eu se expressasse pela linguagem pulsional: gostaria de comer isso ou gostaria de cuspi-lo para fora.

Assim, a primeira diferença se inscreve entre o que está "dentro" e o que está "fora". A confirmação da existência na realidade dos objetos que trouxeram satisfação à criança vai ocorrer apenas em um segundo tempo. Isso se dá à condição que esses objetos que outrora produziram satisfação não estejam mais presentes, sejam objetos perdidos. Neste momento de perda do objeto pulsional, o eu vai buscar confirmar a existência real desses objetos. Mas, continua Freud, "a reprodução de uma percepção como representação nem sempre é fiel; pode ser modificada por omissões ou alterada pela fusão de vários elementos" (1925/2003, p. 2885). O pensamento, portanto, não consegue encontrar a percepção deste primeiro objeto de satisfação, mas apenas reencontrá-lo como representação.

Uma vez que estes objetos de partida já estão ausentes e que a repetição de uma percepção não corresponde totalmente a sua representação, o pensamento não pode pretender encontrar esses objetos, mas apenas reencontrá-los. Como efeito da impossibilidade desse encontro, o pensamento traz à tona as representações dos objetos que foram percebidos pela sensibilidade e que não se encontram presentes na realidade. A condição para a divisão entre subjetivo e objetivo, portanto, "consiste em que objetos, que outrora trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos" (1925/2003, p. 2885). Esse processo nos permite compreender como se dá essa operação de extração do objeto, mostrando também como o sujeito tem inscrito em si esse objeto que, ao mesmo tempo, lhe é próprio e alheio.

Ora, não é possível representar esta relação entre eu e outro, "dentro" e "fora", senão como uma relação incompleta. Trata-se de uma operação de perda que não resulta apenas da percepção de uma falta, como quando uma criança que está com fome se depara com a ausência do seio materno. Ela ocorre através de um processo de alternância entre presença e ausência. Essa báscula entre os extremos do excesso e da falta dá suporte às relações entre os corpos e às relações subjetivas. Em psicanálise, dizer da condição simbólica de um objeto é tomá-lo como representação. Os objetos pulsionais, que satisfazem as demandas do corpo, são perdidos, na medida em que a coisa propriamente dita já não está mais lá. Não podemos falar de corpo e de pulsão, sem considerar, portanto, uma operação de perda. Os objetos pulsionais organizam e estabelecem contornos e orifícios ao corpo.

Assim como o corpo pulsional é a condição de enlace entre os sujeitos, as bordas corporais (a boca, o ânus, os olhos, o ouvido) possibilitam a coletivização desse corpo. Nesse sentido, só podemos dizer que há relação entre os sujeito, na medida em que o corpo está contornado por orifícios que estabelecem o contato com os outros. São esses buracos que possibilitam a circulação dos objetos pulsionais (a voz, o olhar, a comida, as fezes), objetos que não são propriedades apenas de cada um, nem propriedades apenas do outro, mas circulam entre eles. Os objetos pulsionais estão relacionados com os orifícios do corpo. Para que eles inscrevam um circuito social, é preciso que eles recebam valor de troca, criando um espaço comum de circulação. Eles funcionam como articuladores do sujeito com o coletivo, do privado com o público. Desse modo, a característica principal desses objetos é a de ser, ao mesmo tempo, "interno" e "externo", o que está "dentro" e o que vem de "fora".

Assim como o seio faz parte do corpo da mãe, ele também é tomado pela criança como propriedade sua. Da mesma forma, às fezes da criança é endereçada a demanda materna no momento do recorte pulsional de seu orifício anal. Em relação ao olhar e à voz, estes são as primeiras marcas externas à criança que moldam e constituem seu corpo. A diferenciação entre o olhar da mãe e o olhar da criança, inicialmente não estabelecida, é uma fronteira que se mantém fluída. Apenas através do olhar do outro que a criança pode situar seu próprio olhar. Do mesmo modo, sua voz surge como um eco, como que se tivesse sido produzida de fora.

Quando falamos em termos de estruturação psíquica, a imagem é fundamental para dar sustentação ao corpo. O olhar do outro é o que delimita o nosso corpo e o nosso próprio olhar, de modo que não podemos saber com certeza nem o lugar em que somos olhados, nem o lugar desde onde olhamos. Neste circuito pulsional de trocas de objetos, o corpo se apresenta como sustentação das relações com o semelhante e com o social. Na medida em que uma operação de recalque incide sobre estes objetos, ela separa e une ao mesmo tempo, instalando através de uma perda um espaço comum entre os sujeito. O corpo, mais além do que uma propriedade privada, é a condição da coletividade.

Elias adota essa interpretação das proposições freudianas. As funções corporais assumem o valor de condição da circulação social, na medida em que o processo civilizador opera no modo como as pessoas se relacionam umas com as outras através de seus objetos corporais. Assim, escarro, fezes e urinas, a relação com a comida, o olhar sobre o corpo nu, o sexo e a agressividade - todos esses elementos escolhidos por Elias para representar o processo civilizador - são as condições de relação entre o próprio e o alheio, o singular e o coletivo, o interno e o externo. A imbricação do sujeito com a cultura é uma relação operada pelo corpo.

Norbert Elias, na sequência do projeto freudiano de articular os processos subjetivos e sociais através de um elemento comum, nos mostra, em obras como "O Processo Civilizador" e "A Sociedade dos Indivíduos", que o processo civilizador marca o corpo humano em seu rumo a produzir mudanças na conduta e nos sentimentos, através das quais as proibições sociais, as restrições externas, são transformadas em autocontrole, em auto-restrições. As pulsões e os afetos são convertidos em sentimentos de vergonha e medo, que regulam a vida psíquica, os órgãos do corpo e o comportamento em geral. Assim, a tendência do processo civilizador é, segundo Elias, a de "tornar mais íntima todas as funções corporais, a encerrá-las em enclaves particulares, a colocá-las atrás de portas fechadas" (ELIAS, 1939b/1990, p. 188). Eleva-se o padrão de vergonha e, a partir disso, certas funções e falas sobre o corpo ocorrendo na presença de outras pessoas tornam-se práticas repulsivas.

Os padrões históricos dos comportamentos e afetos controlados pelas estruturas sociais lentamente reencenam-se, através do processo civilizador, instanciados em cada ser humano. Não devemos, porém, pensar em uma transposição direta de um para o outro. Mas devemos ter em mente que não podemos falar em sujeito sem inscrição no social, assim como não podemos falar em coletividade sem singularidade. A vida pulsional de uma criança é moldada por gestos e palavras do meio em que se encontra. As pressões e coações que eram inicialmente "externas" a elas passam a ser algo "interno". Existe, portanto, uma lei de internalização própria do processo civilizador que é fundamental tanto à sociogênese, quanto à psicogênese.

Isto se torna cada vez mais um automatismo interior, a marca da sociedade no ser interno, o superego (...). O padrão social a que o indivíduo fora inicialmente obrigado a se conformar por restrição externa é finalmente reproduzido, mais suavemente ou menos, no seu íntimo através de um autocontrole que opera mesmo contra seus desejos conscientes (ELIAS, 1939b/1990, p.135).

A civilização é efeito do recalque dos homens sobre as pulsões, o corpo, a necessidade e o desejo. Por mais discretas que sejam, a inscrição das regras sociais nos sujeitos produz mudanças na personalidade, nas manifestações pulsionais e nos desejos de cada um. Afirma Elias: "A estrutura da personalidade do indivíduo como um todo, necessária e constantemente muda com o código social de comportamento e a estrutura da sociedade" (ELIAS, 1939b/1990, 189).

O uso que Norbert Elias faz da psicanálise em "O Processo Civilizador" deriva do fato de que também Freud buscou afastar-se da dicotomia entre indivíduo e sociedade, entre sujeito e cultura. Assim, por exemplo, vemos o supereu e o recalcamento como marcas da suspensão dessa oposição. Pelo processo civilizador, as produções corporais cada vez mais passam a ser modeladas pelas regras sociais, pela companhia de outras pessoas, na relação com o semelhante. O corpo é o elemento que possibilita a articulação entre as esferas da subjetividade e da coletividade. A coletivização do corpo se faz através de seus orifícios e buracos, marcando as fronteiras contínuas dos espaços subjetivo e objetivo.

 

O processo civilizador como operador de transmissão da cultura.

Estamos acostumados a nos referir a pessoas e povos como se eles fossem menos civilizados, quando nos sentimos mal ao constatarmos neles o uso de determinadas funções corporais em público que não nos são socialmente aceitas ou ao ouvirmos e vermos coisas que dizem respeito a suas vidas privadas. Partindo da proposta de ultrapassamento da antítese entre indivíduo e sociedade, tal como é apresentada no texto "A Sociedade dos Indivíduos", a questão em torno da qual gira os dois volumes da obra "O Processo Civilizador", de Norbert Elias, busca compreender como e porquê certas mudanças produziram transformações nos padrões de civilidade, tanto no âmbito das relações social quanto no dos processos psíquicos.

Na introdução que escreve em 1968, Elias apresenta os objetivos desta obra:

este estudo ajuda a solucionar o renitente problema da ligação entre estruturas psicológicas individuais (as assim chamadas estruturas de personalidade) e as formas criadas por grandes números de indivíduos interdependentes (as estruturas sociais). E o faz porque aborda ambos os tipos de estruturas não como fixos, como em geral acontece, mas como mutáveis, como aspectos interdependentes do mesmo desenvolvimento de longo prazo (ELIAS, 1939b/1990, p. 217).

A partir da ideia de processo civilizador, desaparece a concepção da sociedade como entidade estática e composta por membros isolados e se começa a compreendê-la através de constantes transformações e mudanças. O estudo de Elias sobre o processo civilizador tem o objetivo de demonstrar a formação de "possíveis ligações entre a mudança a longo prazo nas estruturas da personalidade no rumo da consolidação e diferenciação dos controles emocionais, e a mudança a longo prazo na estrutura social com vistas a um nível mais alto de diferenciação e integração" (ELIAS, 1939b/1990, p. 216). Trata-se, portanto, de uma mesma operação que produz efeitos tanto nas estruturas psíquicas quanto nas estruturas sociais.

Norbert Elias começa "O Processo Civilizador" buscando diferenciar os significados de cultura e civilização de acordo com o país e a época em que esses termos surgiram. Assim, apresenta as distinções entre os termos Kultur, em alemão, e culture, em francês, e Zivilisation, em alemão, e civilisation, em francês. De acordo com o sociólogo, o que normalmente se pode dizer a respeito do conceito de Zivilisation é que ele faz referência a diferentes elementos, tais como:

ao nível da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às idéias religiosas e aos costumes. Pode se referir ao tipo de habitações ou à maneira como os homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada pelo sistema judiciário ou ao modo como são preparados os alimentos. Rigorosamente falando, não há nada que não possa ser feito de forma "civilizada" ou "incivilizada" (ELIAS, 1939b/1990, p. 23).

O conceito alemão de Zivilisation pode fazer referência a fatos políticos, econômicos, religiosos, técnicos, morais, intelectuais, artísticos, comportamentais ou afetivos. Mas há divergências, segundo Elias, na forma como os povos ingleses, franceses e alemães referem-se a si mesmos. "A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é Kultur" (ELIAS, 1939b/1990, p. 24). Kultur, para os alemães, não implica estabelecimento de limites e espaços, mas definições de sua própria natureza, da essência deste povo.

Enquanto o conceito de civilização inclui a função de dar expressão a uma tendência continuamente expansionista de grupos colonizadores, o conceito de Kultur reflete a consciência de si mesma de uma nação que teve de buscar e constituir incessante e novamente suas fronteiras, tanto no sentido político como espiritual, e repetidas vezes perguntar a si mesma: "Qual é realmente nossa identidade?" (ELIAS, 1939b/1994, p. 25).

Falar em civilização, qualificando uma sociedade por sua civilidade ou incivilidade, serve para estabelecer limites. Um país ocidental do século XXI se considera mais "civilizado" do que uma tribo indígena do mesmo século ou que o Estado grego antigo, justificando que ele teria, por exemplo, armamentos mais tecnológicos ou maior capacidade de acumulação de energia. Quando Elias afirma que o termo civilisation descreve "o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo" (ELIAS, 1939b/1990, p. 23) ele dá destaque aos pronomes que indicam a posse de algo. Um povo civilizado possui. E isso leva sempre a uma posição de diferenciação em relação a outro povo incivilizado ou bárbaro, que não possui. Trata-se de um conceito que valoriza a identidade e, como efeito dessa comparação, produz a tendência de superação e dominação.

Até o século XIX, o processo de civilização era considerado como completo e por isso já poderia ser esquecido. Como um padrão de autoafirmação, ele buscava a identidade dos homens com os demais. Aquele que era civilizado pretendia transformar o outro segundo seu próprio modelo. "Enquanto o conceito de civilização inclui a função de dar expressão a uma tendência continuamente expansionista de grupos colonizadores, o conceito de Kultur reflete a consciência de si mesma de uma nação" (ELIAS, 1939b/1990, p. 25). Assim, o conceito alemão Kultur auxilia a esclarecer a identidade de um povo e, na resposta à pergunta "o que é realmente alemão?" - que, segundo Elias, há muito tempo deixou de ser assunto para os franceses e ingleses - encontra-se o elemento peculiar de sua essência e dos traços que lhe constitui.

Segundo Elias, no período entre os séculos XVII-XVIII, as barreiras sociais da sociedade de corte da França estabeleceram que o homme civilisé representava o ideal da sociedade, o homme honnête, culto, polido. Nesse sentido, o conceito alemão de Zivilisation se assemelhava muito ao termo francês civilisation. Palavras como politesse e civilité, por exemplo, expressavam "a auto-imagem da classe alta européia em comparação com outros, que seus membros consideravam mais simples ou mais primitivos" e, através dele, "essa classe se sentia diferente de todos aqueles que julgavam mais simples e mais primitivos" (ELIAS, 1939b/1990, p. 54). A ideia de "homem civilizado" deriva das barreiras e distanciamentos impostos pela estrutura social. Sua oposição com a de "homem simples" - cuja expressão máxima figura no selvagem - indicaria que uma sociedade conseguiu alcançar o estado de civilização.

Quando analisa as estruturas sociais de países como a França e a Alemanha, na passagem do poder descentralizado (representado na figura do guerreiro medieval) para a centralização do poder na formação dos Estados nacionais, Norbert Elias diverge com o pensamento que denomina de "semimetafísico", que compreende as estruturas sociais como estáticas, sem estar submetido a constantes transformações. E, para Elias, não apenas a sociologia, mas também outras disciplinas tendem a reduzir os processos dos indivíduos e das sociedades a um estado de equilíbrio imutável, homeostaticamente preservado.

Entretanto, a civilização não é um estado, mas um processo. Ocorre não em curto prazo, através de pequenas revoluções ou atos de violência, mas a longo prazo, no falar e agir do dia a dia. Apenas se as estruturas sociais forem concebidas como um processo é que se pode pensar suas condições de imbricação com as estruturas psíquicas e afirmar que determinadas mudanças são capazes de provocar transformações em ambas as estruturas. Se a ênfase se afasta da estaticidade do termo civilização e recai sobre a ideia de processo civilizador, é porque neste último se sustenta a imbricação das mudanças nas estruturas do homem com as mudanças nas estruturas da sociedade.

As mudanças sociais do processo civilizador não ocorrem através de atos violentos ou crises políticas. Não se fazem por revoluções intercaladas entre tempos estáveis de calmaria, nem tampouco por indivíduos isolados ou movimentos coletivos. E não é por acaso que Elias, em "O Processo Civilizador", se debruça não apenas sobre teorias sociológicas e filosóficas, mas principalmente sobre manuais de comportamentos, livros de literatura e poesia. A partir dessas referências, o sociólogo investiga os costumes e os modos de falar, os hábitos de higiene, de vestir-se e de portar-se à mesa, as normas pelas quais uma criança deveria ser educada em determinada época e, até mesmo, a rotina de um cavaleiro medieval.

Pensar que os movimentos sociais interferem na estrutura da personalidade leva Elias a estudar os pequenos acontecimentos. O que o rege não é o que se mostra de forma evidente aos olhos de qualquer pesquisador, mas assuntos que a princípio não seriam dignos de interesse científico. São situações banais do dia a dia, tal como o comportamento à mesa, a maneira de usar utensílios domésticos como garfo, colher, guardanapos e prato. Encontram-se em seus interesses de pesquisa os hábitos de fungar, cuspir e assoar-se, assim como os procedimentos para dormir e a exposição do corpo nu a outra pessoa. A introdução da faca como instrumento para a alimentação, por exemplo, implicou em pensamentos inconscientes que levaram à criação de diversos tabus, ou melhor, condicionaram novas regras sociais, como aquela que proíbe, socialmente falando, levar a faca à boca, apontá-la em direção à outra pessoa ou segurá-la com a mão direita por mais tempo do que o necessário.

Na mesma perspectiva, a introdução do uso do garfo à mesa, por volta do século XVII, também não teve muito a ver com o medo de doenças ou problemas de higiene. Para Elias, mais do que uma questão higiênica de saúde, foi o sentimento de repugnância que levou as pessoas a abandonarem o hábito de comer com as mãos pelo comportamento "civilizado" de utilizar o garfo. Esse utensílio, assim, não passa de uma resolução prática do sentimento de nojo e das associações produzidas quando se pega com as mãos alimentos engordurados e molhos. Hábitos que aparentemente são considerados naturais foram forjados pouco a pouco por pressão e coação das pessoas que estão ao redor. Era regra diária, por exemplo, na Alemanha do século XVI, a visão da nudez total de pessoas pelas ruas das cidades, que se despiam em suas casa e caminhavam nessas condições em direção às casas de banhos. A visão do corpo nu era incomparavelmente mais comum do que em nosso século. O uso da camisola, por exemplo, foi um implemento no processo de civilização sobre a despreocupação em mostrar o corpo após o banho.

Porque Elias se volta para esse tipo específico de questão? O que elas desvelam de uma cultura? Através da noção de processo civilizador, Elias está pensando uma forma de transmissão de normas e regras que operam em um determinado tempo e espaço. A tradição que é transmitida entre gerações ou entre diferentes culturas se faz na incidência de um recalcamento sobre o corpo e sobre os objetos pulsionais (o olhar, a comida, os excrementos, a voz). Como efeito, criam-se formas de autorregulação que mostram, através dos sentimentos de nojo, vergonha e medo, a efetivação dessa operação, que dá as condições à imbricação das mudanças dos processos histórico-sociais com os processos psíquicos.

O processo civilizador marca no indivíduo regras de comportamento que buscam restringir à vida privada certas práticas corporais que eram feitas coletivamente. O que vemos, nesse sentido, é o triunfo da intimidade sobre a vida pública. Mas devemos ter em perspectiva que esse processo de tornar íntimo e privado o que outrora era dos registros público e coletivo, produz necessariamente restos a serem elaborados.

Conforme afirma Paulo Endo, em seu artigo "Um futuro sem origem: transmissão, autoridade e violência", a tradição ocorre como efeito da perda de uma condição de gozo e o que se transmite dela é a impossibilidade desse encontro com o outro. A transmissão da cultura carrega consigo, desde sua origem nesta renúncia de um gozo, um impossível que, na instauração das organizações sociais humanas, não pode ser realizado, pensado ou dito.

Através de Freud, reconhecemos que a civilização é um sintoma da cultura. A psicanálise mostra que as instituições sociais, que participam do processo civilizador elevando o grau de civilidade, carregam consigo o avesso daquilo que transmitem. Seguimos Paulo Endo na sequência de seu artigo: "o sucesso das instituições se deve, em boa parte, a sua capacidade de manter em segredo os seus escuros inconfessáveis" (ENDO, 2011, p. 74). A transmissão da cultura deve inscrever o esquecimento de seus conflitos, impossibilitando a recordação do seu ponto de fundação, ou seja, o recalcamento de um desejo incestuoso. Citamos novamente Endo:

Toda instituição é, portanto, e por definição, uma transmissora-herdeira de padrões e condutas sem que se saiba, se conheça ou se esclareça sua gênese, sua origem ou sua função. O que as instituições transmitem reflete também sua vocação recalcante e sintomática e não apenas os valores mais altos da cultura. Elas surgem e passam a ser necessárias lá onde o ego - instância de ligação - fracassou; e o que elas transmitem e passam adiante são também os restos de pulsão desligada que permanecem fazendo sintomas, como vimos, na própria definição de cultura e civilização (ENDO, 2011, p. 75).

O desvelamento do inconsciente por Freud apontou que tanto nos processos psíquicos quanto nos processos sociais restam conteúdos dos quais não se pode falar, conteúdos de silêncios e segredos. Mas, na medida em que as normas sociais incidem no modo como se relacionar com o corpo, este corpo individual, que em determinado momento se colocava no circuito social, vai pouco a pouco ganhando uma dimensão individual, como corpo coletivo. Há uma transformação do corpo privado ao corpo público, efeito do processo civilizador, que ao mesmo tempo possibilita sua inscrição nos laços sociais.

As relações inscrevem um determinado padrão social que pressiona o sujeito a se regular com ele. A tese de Elias, influenciada pela psicanálise freudiana, é que essa restrição externa constróis um automatismo interno direcionado ao autocontrole dos desejos e das emoções. Desse modo, tudo que é falado e feito socialmente - e cujas respostas são os sentimentos de nojo, vergonha e culpa -, vai ser gradativamente transferido e reencenado na vida privada de cada ser humano. Novos padrões de comportamento e novos controles sobre desejos e emoções vêm aos poucos ser estabelecidos, restringindo a liberdade que cada pessoa tinha para se comportar diante das outras conforme suas pulsões e condicionando o corpo a funcionar de forma autorregulada.

E, assim, uma parede invisível é criada entre os corpos. Os espaços de "intimidade coletiva" vão sendo pouco a pouco restritos quando em presença do outro. Tudo o que tem a ver com as pulsões e com as funções corporais, que em determinada época sofriam pouco controle social, vai lentamente sendo deslocado para o âmbito privado, escondido do alcance dos olhos, do nariz e da boca das outras pessoas.

Com o avanço da civilização a vida dos seres humanos fica cada vez mais dividida entre uma esfera íntima e uma pública, entre comportamento secreto e público. E esta divisão é aceita como tão natural, torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é percebida pela consciência (ELIAS, 1939b/1990, p. 188).

Os objetos corporais que circulavam no laço com o outro, nesta rede de interdependência social, são recalcados pelo processo civilizador à esfera privada de cada indivíduo. Tem-se, então, a desvalorização desses objetos e a produção de uma perda. Nos seus lugares, o que surgem são formações sintomáticas. O efeito da criação de objetos substitutivos, derivado da perda dos objetos pulsionais, tenta reestabelecer o modelo de relação social passada. A substituição dos objetos se faz através da formação de sintomas, através da manutenção de um modelo de relação passada em um tempo presente.

Ora, o processo civilizador diz daquelas mudanças que tendem em "direção à consolidação e diferenciação dos controles emocionais", assim como "a um nível mais alto de diferenciação e integração" na sociedade. As mudanças a longo prazo que acontecem na estrutura da sociedade estão ligadas às mudanças a longo prazo nas estruturas da personalidade, ambas no rumo de um mais alto nível de diferenciação e integração, através do controle das emoções e dos controles estatais. Mas, com esse processo, eleva-se o padrão de vergonha, o domínio das emoções as torna mais delicadas, e falar ou lembrar de funções corporais na presença de outras pessoas torna-se cada vez mais embaraçoso. A proximidade social entre as pessoas, que as deixa mais dependentes uma das outras, também constrói uma armadura socialmente aceita de controle do corpo.

Parece-nos fundamental destacarmos que Norbert Elias identifica no corpo as ações do processo civilizador. E o resto que se produz dessa operação mostra a memória dos traços das relações sociais que foram modificadas ao longo de sua história.

Uma tendência instintiva que aparece hoje, no máximo, no inconsciente, nos sonhos, na esfera privada, ou mais conscientemente apenas em locais fechados, ou seja, o interesse pelas secreções corporais, mostra-se aqui em um estágio mais antigo do processo histórico, com mais clareza e franqueza, numa forma que hoje é "normalmente' visível apenas em crianças (ELIAS, 1939b/1990, p. 153).

A formação do medo, do sentimento de repugnância e vergonha, desempenham papel fundamental nos efeitos da ligação entre as mudanças na estrutura social e na estrutura e constituição psíquica. São formas que num primeiro plano, indicam o medo de degradação social, de inferioridade sobre outra pessoa, mostrando que se instaurou um conflito interno no indivíduo. Diminui o medo de origem externa e aumenta as angústias internas, geradas pela própria pessoa. Aquilo que antigamente era temido, hoje em dia ou desapareceu ou foi internalizado para a própria pessoa.

Historicamente, Norbert Elias (1939c/1990) situa, na passagem dos fins da Idade Média aos princípios da Renascença, a operação do processo civilizador que estabelece a diferença entre "dentro" e "fora" público e privado, indivíduo e sociedade. Marcando no corpo as regras sociais, esse processo a longo prazo conduziu a um aumento do controle emocional, de contenção das sensações espontâneas, estabelecendo um distanciamento entre os processos naturais do corpo do próprio sujeito. A transformação do controle externo para um controle interno levou à situação na qual "muitos impulsos afetivos não podem ser mais vivenciados tão espontaneamente como antes", de modo que os autocontroles emocionais se colocam "entre os impulsos espontâneos e emocionais, por um lado, e os músculos do esqueleto, por outro, impedindo mais eficazmente os primeiros de comandar os segundos (isto é, de pô-los em ação) sem a permissão desses mecanismos de controle" (ELIAS, 1939b/1990, p. 246).

O processo civilizador atua diretamente sobre tudo que está relacionado ao corpo, seus limites, bordas e buracos, seus restos e produtos. Mas como um corpo sempre está em relação a outro corpo, a ideia de civilização designa um processo alcançou um nível de diferenciação e integração entre indivíduo e sociedade, sujeito e cultura. Assim, ao mesmo tempo que o processo civilizador é a possibilidade desse laço, potencializando o grau de interdependência entre os sujeitos, é também a condição de seu afastamento, na criação de uma "parede invisível entre os corpos", no momento em que os corpos se aproximam dos olhos, narizes e ouvidos. Através do processo civilizador estabelecem-se novas relações entre os homens, divididos entre esfera pública privada e esfera privada. As pessoas passam a se "moldar às outras" mais livremente, em função da tendência cada vez maior de se observarem e se coagirem.

Forçadas a viver de uma nova maneira em sociedade, as pessoas tornam-se mais sensíveis às pressões das outras. Não bruscamente, mas bem devagar, o código de comportamento torna-se mais rigoroso e aumenta o grau de consideração esperado dos demais (ELIAS, 1939b/1990, p. 91).

Para Elias, as mudanças sociais que produzem transformações tanto nas estruturas das sociedades, quanto nas estruturas dos indivíduos, dizem respeito a esse controle sobre o que se pode fazer ou não em relação aos outros. O aumento da pressão que as pessoas exercem umas às outras, o controle social que instaura hábitos sobre os comportamentos e emoções faz com que ocorra "devagar, uma mudança: aumenta a compulsão de policiar o próprio comportamento" (ELIAS, 1939b/1990, p. 93). Uma nova dinâmica social produz uma nova condição psíquica. Trata-se de uma nova forma de relações de poder, na qual o imperativo social torna-se lentamente um imperativo individual.

Mas essa mudança social não pode ser qualquer uma. Deve recair especificamente sobre algum aspecto que envolva tanto indivíduo, quanto sociedade. O controle das emoções e dos comportamentos, a regulação das pulsões, o uso de instrumentos e utensílios domésticos, o ajuste sobre como se portar diante dos outros, as ordens de "faça isto ou não faça aquilo", todas essas censuras sociais são, para Elias, exemplos de mudanças na estrutura social. E, assim, processo civilizador inscreve os medos e ansiedades na dimensão privada, íntima de cada um, que, em um momento histórico passado e na vida infantil, se manifestava através de fatores externos.

A autorregulação instaurada pelo processo civilizador, na forma de supereu como uma instância que atua como um autocontrole modela o comportamento para ser socialmente desejável, faz com que "o mesmo pareça à mente do indivíduo resultar de seu livre arbítrio e ser de interesse de sua própria saúde ou dignidade humana" (ELIAS, 1939b/1990, p. 153). O que aparentemente é interno, na verdade tem origem externa. Norbert Elias, com essa hipótese, julga ter conseguido suspender a parede invisível entre o indivíduo e a sociedade. Mas, não apenas isso, Elias também pressupõe resolver a tensão gerada entre os impulsos corporais, "socialmente inadmissíveis" e "o padrão de exigências sociais".

O que resta dessa suposta harmonização é uma estrutura psíquica conflituosa. "É bem possível que sempre tenha havido neuroses", afirma ele. "Mas as neuroses que vemos hoje por toda a parte são uma forma histórica específica de conflito que precisa de uma elucidação psicogenética e sociogenética" (ELIAS, 1939b/1990, p. 153). O processo civilizador vem colocar para trás da consciência, tornando-se cada vez mais integrada ao indivíduo na forma de uma instância psíquica reguladora. Ele separa a vida pública da vida privada, o que é feito na intimidade com o que pode ser feito entre os homens, com o que é ou não publicamente desejável. "A pressão para restringir seus impulsos e a vergonha sociogenética que os cerca estes são transformados tão completamente em hábitos que não podemos resistir a eles nem mesmo quando estamos sozinhos na esfera privada" (ELIAS, 1939b/1990, p. 189). A tendência desse processo, portanto, transforma o que é "externo" em "interno", fechando-os atrás das portas da consciência.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Recebido em: 26/7/14
Aprovado em: 13/10/14