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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.6 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2014

 

ARTIGOS

 

A música dos sonhos

 

The music of dreams

 

 

José Eduardo Costa e Silva

Doutor em música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professor do Curso de Música da Universidade Federal do Espírito Santo. Atua também como compositor e intérprete na da Cia de Teatro Inconsciente em Cena (RJ). E-mail: zed2004@gmail.com

 

 


RESUMO

O trabalho apresenta um estudo sobre a presença dos conceitos da estética no texto "A Interpretação dos Sonhos" de Sigmund Freud, bem como sobre as relações entre a representação onírica e a arte. O autor tece, ainda, algumas conjecturas sobre a ausência e a presença de uma reflexão sobre a música nas representações oníricas.

Palavras-chave: estética, interpretação dos sonhos, Freud, música.


ABSTRACT

The paper presents a study on the presence of the aesthetic concepts in the text "The Interpretation of Dreams" by Sigmund Freud , as well as on relations between the dreamrepresentation and art. The author also makes some assumptions about the absence and the presence of a reflection on the music in dreamlike representations.

Keywords: aesthetics, interpretation of dreams, Freud, music.


 

 

Introdução

A grande porta sobre a pedra cinza. Ela não separa o interior do exterior e nem mesmo está em uma parede. Ela é mera linha que circunscreve o espaço no céu azul e nas nuvens. Estou em um plano perpendicular e inferior à grande porta. Eu a vejo da lateral e de baixo, o que a torna maior e enigmática. Mas, de cima, vejo-me naquela posição, como se fosse natural estar em mais de um lugar ao mesmo tempo, vendo-me e ouvindo-me sem propriamente mirar um espelho. E tudo sempre acontece no tempo indeterminado, como se fosse uma primeira vez, embora saiba que não é a primeira vez, pois, sabendo-me dentro do sonho, recordo-me de que o tivera em outras ocasiões.

Diante da grande porta está um casal e atrás dele outras pessoas. São rostos sem olhos, nariz e boca; assustadores, não obstante, familiares. E quando minha voz sai, tomo consciência dos afetos. Distante para dentro, minha voz murmura palavras inaudíveis, que são imediatamente traduzidas por mim. Distante para dentro é também o som das palavras que penso sem falar, assim como o som de tudo que há no sonho. E por ouvir assim, pareço literalmente saber-me dentro do meu corpo que dorme, que é para mim uma perfeita câmara acústica. E nessa ambiência sonora, a música parece-me simples e fácil. Eu estou dentro da música e ela sai de mim; e leva consigo o medo e o espanto causado pelas imagens.

Inicialmente, apresento uma reflexão sobre a presença de conceitos da estética no texto "A Interpretação dos Sonhos" de Sigmund Freud. Desvela-se um pensamento em que a representação onírica, ali pensada como representação artística, une dois mundos aparentemente antagônicos, quais sejam, aquele da correção lógica, onde imperam as relações de causalidade, e o outro, associado à (des) razão, própria da livre ação dos sentidos.

Mas por que os sonhos descritos por Freud são tão pouco musicais? Afora as conjecturas que essa questão suscita, consideramo-la como um desafio que permite estender o diálogo entre arte e psicanálise. É plausível admitir que Freud muitas vezes tenha compreendido os sonhos como obras picturais, mas, hoje, ele teria talvez tomado as obras audiovisuais como modelo para o pensamento sobre as representações oníricas.

I- A presença dos conceitos da estética na Interpretação dos Sonhos.

 

 

A tese de que o sonho é a realização de um desejo perpassa o texto "A Interpretação dos Sonhos" de Freud. O pensamento que a sustenta é metódico e reveste-se do cuidado que antecede aos pronunciamentos polêmicos. Nesse caso, não é mera imposição de estilo, o autor sabe que deve falar aos poucos, levar a concluir, mais do que enunciar proposições, em suma, fazer com que o leitor reconheça sua responsabilidade na condução do pensamento que sabidamente incomoda. Freud descreve, primeiro, o pensamento corrente sobre os sonhos, insinuando, a partir da colocação estratégica da dúvida, que seus pressupostos são insuficientes. Depois, vêm a descrição e a interpretação dos sonhos, um processo de reconstituição de nexos simbólicos causais, que sugerem haver, ao final de cada cadeia, o desejo sexual, espécie de "causa primeira" do mundo onírico, das fantasias e das neuroses.

Assim, constitui-se um pensamento amparado no rigor da observação articulada ao método, que permite perscrutar os "equívocos" e os "escondidos" da linguagem. A preocupação de Freud com o rigor científico não inibe, entretanto, a emergência de u m pensador que, comportando-se como um artista, chama ao auxílio da razão noções provenientes da "estética"(1), quais sejam as noções de representação, forma, conteúdo e unidade. Desse modo, Freud parece contrariar a tradição filosófica idealista, até aquele momento de marcante presença no mundo germânico, que estipulara a clara distinção entre os universos intelectivo e sensível, este último, não ajustável às exigências da correção lógica. Eis o que primeiramente discutimos nesse artigo: a hipótese de que a analítica freudiana esteja em mútua solidariedade com noções que pertencem à estética. Em vista disso, propomos como guia para a presente discussão a sentença: o sonho é a realização "estética" de um desejo.

Atentamos inicialmente para a discussão introduzida no capítulo 2 de "A Interpretação dos Sonhos ". Freud menciona brevemente alguns trabalhos que tentam explicar a origem da "crença" nos sonhos, reconhecendo que esses, amiúde absurdos e aparentemente inverossímeis, necessitam apresentar-se ao sujeito como objetos dignos de credibilidade. A esse respeito, Freud oportunamente observa que, embora nos saibamos, algumas vezes, imersos no mundo onírico, creditamos a esse mundo um patamar de realidade. Apegando-se, porém, ao procedimento metodológico que se estende no decorrer do texto, Freud avisa que a compreensão sobre a "crença" nos sonhos será alcançada adiante (FREUD, 1900, Vol. IV, p. 57). Evidentemente, Freud aposta que seu leitor, no momento oportuno, fará a relação entre a tese de que os sonhos realizam o desejo e a crença nos sonhos; afinal, nada há que pareça mais real ao sujeito do que aquilo que responda à sua demanda volitiva primordial.

O texto transcorre sem que a questão da origem da crença nos sonhos seja claramente retomada. É nesse aparente lapso, que o caráter estético da descrição dos sonhos prevalece, sobretudo porque o sonho é definido por Freud como representação, um conceito central da estética tradicional, em torno do qual se articulam os outros. A comparação entre sonhos e obras pictóricas é mais de uma vez feita em "A interpretação dos Sonhos", sendo que de tal procedimento derivam consequências metodológicas. Ao analisar os sonhos, Freud age igualmente ao observador que monta e remonta os significados do que está representado de maneira não naturalista na tela. Nesse contexto, os conceitos e noções articuláveis à noção de representação são frequentemente evocados.

Primeiramente, o par conceitual conteúdo e forma, que estrutura a noção tradicional de representação. Seria, segundo Freud, da ordem do conteúdo da representação onírica, o pensamento do sonho, ou seja, o concentrado de significação que está diretamente articulado ao desejo sexual recalcado, e que está, nos modos da forma, escamoteado. O pensamento do sonho é, por conseguinte, a primeira e mais essencial expressão do pensamento inconsciente:

Em geral, não estamos em condições de interpretar um sonho de outra pessoa, a menos que ela se disponha a nos comunicar os pensamentos inconscientes que estão por trás do conteúdo do sonho. (Grifo nosso.) A aplicabilidade prática de nosso método de interpretar sonhos fica, por conseguinte, severamente restrita (FREUD, 1900, Vol. IV, p.207).

O pensamento do sonho é o conteúdo latente, distinto do pensamento manifesto, que é da ordem da forma. Ele carrega a carga afetiva do sonho, precisamente, aquela que primordialmente reveste o desejo sexual da criança, e que se desdobrará nos afetos em geral, os quais são menos inconfessos à censura consciente (distorção). Desse modo, na lógica proposta por Freud, os afetos se dispõem topograficamente e, por conseguinte, esteticamente no sujeito; eles vão do mais profundo ao mais visível, ou melhor, do latente ao manifesto:

Convém notar que o afeto vivenciado no sonho pertence a seu conteúdo latente, e não ao conteúdo manifesto, e que o conteúdo afetivo do sonho permaneceu intocado pela distorção que se apoderou de seu conteúdo de representações (FREUD, 1900, Vol. IV, p.207).

A noção de pensamento do sonho comporta a articulação entre sentido (intelectivo) e base afetiva, que é própria da topografia do sujeito. Destarte, o local onde se constrói o mais genuíno sentido, justamente, aquele portado pelo pensamento do sonho, é a proximidade ao universo das pulsões, em que, ante o desejo, os sentimentos são configurados como representação onírica e, quiçá, linguagem:

Somos os únicos a levar algo mais em conta. Introduzimos uma nova classe de material psíquico entre o conteúdo manifesto dos sonhos e as conclusões de nossa investigação: a saber, seu conteúdo latente, ou (como dizemos) os "pensamentos do sonho", obtidos por meio de nosso método. É desses pensamentos do sonho, e não do conteúdo manifesto de um sonho, que depreendemos seu sentido (FREUD, 1900, Vol. IV. p.236).

A representação onírica resulta da unidade entre conteúdo e forma, que dá estatura à sua aparência, em que a expressão do inconsciente é obnubilada na forma de conteúdo manifesto. Tal obnubilação ocorre em função das forças psíquicas que atuam na composição dos sonhos: o desejo que é identificado por Freud como causa dos sonhos, provendo-os de seu conteúdo latente, e a censura ao desejo, que causa as distorções modeladoras da forma do sonho, ou em outros termos, do conteúdo manifesto (FREUD, 1900, Vol. IV. p.131).

Ao alcançar esta compreensão dos sonhos, a interpretação freudiana ganha os contornos inequívocos de uma apreciação estética, posto que as noções dessa disciplina são as que, agora, fornecem os elementos de julgamento do valor da própria interpretação. Não se avalia mais com os elementos da lógica, pois a causa primeira já é conhecida, a saber: o desejo. O que se busca é o desvendamento do jogo entre os conteúdos latente e manifesto, precisamente pelo desvendamento da ação dos elementos condicionadores da forma, quais sejam: o deslocamento e a condensação, constituindo-se assim a própria interpretação do sonho:

O deslocamento do sonho e a condensação do sonho são os dois fatores dominantes a cuja atividade podemos, em essência, atribuir a forma assumida pelos sonhos. Não penso tampouco que teremos qualquer dificuldade em reconhecer a força psíquica que se manifesta nos fatos do deslocamento do sonho. A consequência do deslocamento é que o conteúdo do sonho não mais se assemelha ao núcleo dos pensamentos do sonho, e que este não apresenta mais do que uma distorção do desejo do sonho que existe no inconsciente (FREUD, 1900, Vol. IV, p.262).

O deslocamento é a expressão formal da distorção, isto é, daquele ato de censura dissimuladora que o sujeito dirige ao conteúdo de seu próprio desejo, em um processo que implica na hierarquização do que é mais ou menos significativo ou, melhor dizendo, mais censurável (FREUD, 1900, Vol. IV, p.144). Logo, o deslocamento é uma força configuradora e também um modo de organização topológica do sonho, trazendo mais à superfície da aparência o que é menos importante e deixando mais obscuro o que se quer esconder, constituindo-se, assim, como linguagem:

Portanto, parece plausível supor que, no trabalho do sonho, está em ação uma força psíquica que, por um lado, despoja os elementos com alto valor psíquico de sua intensidade, e, por outro, por meio da sobredeterminação, cria, a partir de elementos de baixo valor psíquico, novos valores, que depois penetram no conteúdo do sonho. Assim sendo, ocorrem uma transferência e deslocamento de intensidade psíquica no processo de formação do sonho, e é como resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do conteúdo do sono e o dos pensamentos do sonho. O processo que estamos aqui presumindo é nada menos do que a parcela essencial do trabalho do sonho, merecendo ser descrito como o "deslocamento do sonho" (FREUD, 1900, Vol. IV, p.262).

Dentre as estratégias do deslocamento, destaca-se a ação por semelhança. É justamente esse tipo de ação que traz para a representação onírica um dos princípios fundamentais da mimese, tal como Platão a compreende, qual seja, o princípio de que as representações (das ideias) organizam-se por semelhança (identidade), dotando-se assim do caráter da verossimilhança (PLATÃO, 2001, 27-a). Eis justamente o que, segundo Freud, dá valor de verdade ao que foi "deslocado":

Assim, a identificação não constitui uma simples imitação, mas uma assimilação baseada numa alegação etiológica semelhante; ela expressa uma semelhança e decorre de um elemento comum que permanece no inconsciente. A identificação é empregada com mais frequência na histeria para expressar um elemento sexual comum. (...) O processo poderia expressar-se verbalmente da seguinte maneira: minha paciente colocou-se no lugar da amiga, no sonho, porque esta estava ocupando o lugar de minha paciente junto ao marido e porque ela (minha paciente) queria tomar o lugar da amiga no alto conceito em que o marido a tinha (FREUD, 1900, Vol. IV, p.136).

A ação por semelhança permite que o sonho configure-se como uma estrutura complexa, na qual os semelhantes podem conviver logicamente e um idêntico pode ser suprimido em função da apresentação de outro. Desse modo, a representação onírica poderá, inclusive, parecer absurda, embora, verossimilhante. O fato, porém, é que Freud, ao referir-se a esse mecanismo, admite que a inteligibilidade lógica de um sonho seja precedida por uma disposição estética, justamente, a disposição por semelhança:

Uma e apenas uma dessas relações lógicas é extremamente favorecida pelo mecanismo da formação do sonho; a saber, a relação de semelhança, consonância ou aproximação - a relação de "tal como". (...) A semelhança, a consonância, a posse de atributos comuns - tudo isso é representado nos sonhos pela unificação, que pode já estar presente no material dos pensamentos do sonho ou pode ser novamente construída. A primeira dessas possibilidades pode ser descrita como "identificação", e a segunda, como "composição". A identificação é empregada quando se trata de pessoas; a composição, quando as coisas são o material da unificação. Não obstante, a composição também pode aplicar-se às pessoas. As localidades são frequentemente tratadas como pessoas. (... ) Na identificação, apenas uma das pessoas ligadas por um elemento comum consegue ser representada no conteúdo manifesto do sonho, enquanto a segunda ou as demais pessoas parecem ser suprimidas dele. Mas essa figura encobridora única aparece no sonho em todas as relações e situações que se aplicam quer a ela, quer às figuras que ela encobre (FREUD, 1900, Vol. IV, p.272).

Articulada ao deslocamento, há a condensação, precisamente, o outro elemento condicionador da forma. A condensação atua por omissão (redução), possibilitando uma síntese hierárquica e aparentemente incompleta dos pensamentos do sonho: "Os sonhos são curtos, insuficientes e lacônicos em comparação com a gama e riqueza dos pensamentos oníricos. Se um sonho for escrito, talvez ocupe meia página" (FREUD, 1900, Vol. IV, p.236). Não obstante, a condensação é concentradora de significados, a ponto de causar-nos a impressão de termos sonhado mais do que efetivamente sonhamos. Nesse sentido, a condensação projeta a percepção da forma em uma dimensão qualitativa do tempo, em que passado, presente e futuro se resumem em um instante, ou, como diria Heidegger a propósito desse tipo de percepção do tempo, em uma ekstasis (HEIDEGGER, 1988, Vol. I, p 145).

Certamente, esse componente temporal, desvendado pelo trabalho da condensação, que possibilita a visão simultânea em uma representação de algo que efetivamente não é simultâneo, confere à representação onírica um mesmo tipo de poder que é dado às representações pictóricas, qual seja, o de dar valor de verdade aos absurdos do anacronismo e da topologia confusa.

Em primeiro lugar, os sonhos levam em conta, de maneira geral, a ligação que inegavelmente existe entre todas as partes dos pensamentos do sonho, combinando todo o material numa única situação ou acontecimento. Eles reproduzem a ligação lógica pela simultaneidade no tempo. Nesse aspecto, agem como o pintor que, num quadro da Escola de Atenas ou do Parnaso, representa num único grupo todos os filósofos ou todos os poetas. É verdade que, de fato, eles nunca se reuniram num único salão ou num único cume de montanha, mas certamente formam um grupo no sentido conceitual (FREUD, 1900, Vol. IV, p.267).

A ação formativa da condensação é conjunta à ação do deslocamento, algo que pode acentuar o referido caráter absurdo da representação onírica, em função dos vários tipos de metamorfoses espacial e temporal. A percepção de algo como absurdo esvai-se, porém, ante o fato de que a representação possui unidade, justamente o qualitativo fornecido pela condensação. Por possuir unidade, a representação chega à ordem do verossimilhante, e, por conseguinte, entendemos, chega à ordem do crível. Parece-nos claro que Freud talvez suspeitasse, desde o inicio do texto, de que a crença nos sonhos é a crença na representação, que se impõe, não obstante seus conteúdos fragmentários, como unidade, o mais tradicional dos princípios estéticos:

Se no decorrer de um único dia tivermos duas ou mais experiências adequadas à provocação de um sonho, este fará uma referência conjunta a elas como um todo único; ele é forçado a combiná-las numa unidade. (...) Muitas experiências como essas levamme a afirmar que o trabalho do sonho está sujeito a uma espécie de exigência de combinar todas as fontes que agiram como estímulos ao sonho numa única unidade no próprio sonho (FREUD, 1900, Vol. IV, p.157).

A unidade permite a crença nos sonhos a ponto de permitir também a crença na realização aparentemente mais absurda dos mesmos, a saber: a composição. Trata-se de um livre jogo associativo, pelo qual a junção de imagens diversas configura outras de caráter não realístico. A propósito, esta techné onírica encontrou sua realização histórica no surrealismo, um movimento estético sabidamente relacionado à psicanálise. Conquanto seja assim, nada mais justificável de que tal aproximação tenha ocorrido devido à compreensão comum dos processos de composição, os quais trazem às vistas a relação entre imaginação e fantasia. Essa relação, segundo Freud, é ao mesmo tempo própria dos sonhos e da vigília:

A possibilidade de criar estruturas compostas destaca-se como a mais importante entre as características que tantas vezes emprestam aos sonhos uma aparência fantástica, pois introduz no conteúdo dos sonhos elementos que nunca poderiam ter sido objetos de percepção real. O processo psíquico de construir imagens compostas nos sonhos é, evidentemente, o mesmo de quando imaginamos ou retratamos um centauro ou um dragão na vida de vigília. A única diferença é que a que determina a produção da figura imaginária na vida de vigília é a impressão que a própria nova estrutura pretende causar, ao passo que a formação da estrutura composta num sonho é determinada por um fator estranho à sua forma real - a saber, o elemento comum nos pensamentos do sonho. As estruturas compostas nos sonhos podem ser formadas de uma grande variedade de maneiras. O mais ingênuo desses procedimentos representa meramente os atributos de uma coisa, acompanhados pelo conhecimento de que também pertencem a uma outra coisa. Uma técnica mais elaborada combina os traços de ambos os objetos numa nova imagem e, ao proceder assim, utiliza com habilidade quaisquer semelhanças que os dois objetos acaso possuam na realidade. A nova estrutura pode aparecer inteiramente absurda ou causar-nos a impressão de um sucesso imaginativo, conforme o material e a habilidade com que seja aglutinada (FREUD, 1900, Vol. IV, p.275).

A impressão de que a representação onírica é absurda esvai-se face à descoberta de sua poeticidade. Nesse caso, Freud atenta-nos para o caráter associativo da representação, que, como num jogo de rébus, permite o desdobramento imaginativo e aparentemente inesgotável das associações entre imagens e palavras:

Um barco não tem nada que estar no telhado de uma casa e um homem sem cabeça não pode correr. Ademais, o homem é maior do que a casa e, se o quadro inteiro pretende representar uma paisagem, as letras do alfabeto estão deslocadas nele, pois esses objetos não ocorrem na natureza. Obviamente, porém, só podemos fazer um juízo adequado do quebra-cabeças se pusermos de lado essa crítica da composição inteira e de suas partes, e se, em vez disso, tentarmos substituir cada elemento isolado por uma sílaba ou palavra que possa ser representada por aquele elemento de um modo ou de outro. As palavras assim compostas já não deixarão de fazer sentido, podendo formar uma frase poética de extrema beleza e significado. O sonho é um quebra cabeça pictográfico desse tipo, e nossos antecessores no campo da interpretação dos sonhos cometeram o erro de tratar o rébus como uma composição pictórica, e como tal, ela lhes pareceu absurda e sem valor (FREUD, 1900, Vol. IV, p.236).

Em sua "estética" (sic), Freud privilegia a observação dos elementos visuais da representação em detrimento dos elementos sonoros, algo comum ao espírito científico que bebeu nas fontes do Idealismo, o qual amiúde associou o conhecimento à visão (2). Destarte, mesmo reconhecendo a dimensão sonora das palavras, Freud ressalta o caráter imagético/reificado destas (3). Na inventividade poética dos sonhos, as palavras, tal como as imagens, são associadas livremente, participando, desse modo, da composição poética do absurdo, ou da linguagem do inconsciente:

"Meissen" (uma figura de porcelana de Meissen [Dresden] representando um pássaro); "Miss" (a governanta inglesa de seus parentes acabara de partir para Olmütz); e "mies" (termo judaico de gíria empregado em tom de brincadeira para significar "repulsivo"). Uma longa cadeia de ideias e associações partia de cada sílaba dessa confusão verbal. (...) As malformações verbais nos sonhos se assemelham muito às que são conhecidas na paranoia, mas que também estão presentes na histeria e nas obsessões. Os truques linguísticos feitos pelas crianças, que, às vezes, tratam realmente as palavras como se fossem objetos, e, além disso, inventam novas línguas e formas sintáticas artificiais, constituem a fonte comum dessas coisas tanto nos sonhos como nas psiconeuroses (FREUD, 1900, Vol. IV, p.253/259).

Afora a discussão sobre o valor da sonoridade na representação onírica, Freud reconheceu a importância estratégica do mecanismo da associação livre (freier Einfall) para a construção da representação e dos sentidos, e, principalmente, para a constituição da própria práxis psicanalítica, desenvolvida através da fala:

Mandamos o doente dizer o que quiser, cônscios de que nada lhe ocorrerá à mente senão aquilo que indiretamente dependa do complexo procurado. Talvez lhes pareça muito fastidioso este processo de descobrir os elementos reprimidos, mas, assegurolhes, é o único praticável (FREUD, 1976, Terceira Lição, p.31).

Segundo Freud, o mecanismo da associação livre gera cadeias de ideias em que há, ao lado das relações de múltiplas determinações, a presença de elementos antitéticos, por conseguinte, tensos. Desse modo, revela-se a simbiose entre o intelectivo e o sensível, justamente, na capacidade judicativa de perceber e, concomitantemente, avaliar racionalmente os elementos como contrários:

Estamos interessados, aqui, apenas nos pensamentos oníricos essenciais. Estes geralmente emergem como um complexo de ideias e lembranças da mais intricada estrutura possível, com todos os atributos das cadeias de ideias que nos são familiares na vida de vigília. Não raro, são cadeias de ideias que partem de mais de um centro, embora tendo pontos de contato. Cada cadeia de ideias é quase invariavelmente acompanhada por sua contrapartida contraditória, vinculada a ela por associação antitética (FREUD, 1900, Vol. IV, p.264).

É comum, sobretudo nas estéticas dos séc. XVIII e XIX, que a percepção dos contrários, justamente a que estrutura os pensamentos dialógicos, seja tomada como uma chave para a abertura do diálogo com as obras. Disso sabiam e ainda sabem músicos, pintores e escultores que transformaram a oposição e, por conseguinte, a tensão, em uma ferramenta de construção poética. Basta observar os pares que amiúde frequentam os gêneros e os estilos: consonância/dissonância; tonal/atonal; forte/fraco; escuro/claro; rarefeito/denso etc. (4).

Segundo Freud, a realização dos contrários na representação onírica pode alcançar a completa inversão dos sentidos. Assim, os sonhos, como entes da ordem da alétheia, mostram o desejo escondendo-o, deixando a entender o que Heidegger observou posteriormente no ensaio "A Origem da Obra de Arte", a verdade (alétheia) é primariamente da ordem da sensibilidade:

Aliás, a inversão, ou transformação de uma coisa em seu oposto, é um dos meios de representação mais favorecidos pelo trabalho do sonho, e é passível de utilização nos sentidos mais diversos. Ela serve, em primeiro lugar, para dar expressão à realização de um desejo em referência a algum elemento específico dos pensamentos do sonho. "Ah, se ao menos tivesse sido ao contrário!" Esta é muitas vezes a melhor maneira de expressar a reação do ego a um fragmento desagradável da memória (FREUD, 1900, Vol. IV, p.278).

Por outro lado, ainda na ordem da inversão onírica, vê-se o mesmo recurso das narrativas que tecem o sentido ao sabor das variações cronológicas. Na literatura, como um todo, existem exemplos em demasia de como a inversão do tempo, por exemplo, começar uma história pelo fim, converte-se em um poderoso instrumento de construção e elucidação de um sentido que se quer destacar, contrariando, desse modo, uma pretensa necessidade de obedecer à lógica da exposição do tempo em sequencia "normal":

E, independentemente da inversão do assunto, a inversão cronológica não deve ser negligenciada. Uma técnica bastante comum da distorção do sonho consiste em representar o resultado de um acontecimento ou a conclusão de uma cadeia de ideias no início de um sonho, e em colocar em seu final as premissas em que se basearam a conclusão ou as causas que levaram ao acontecimento. Quem quer que deixe de ter em mente esse método técnico adotado pela distorção onírica ficará inteiramente perdido quando se deparar com a tarefa de interpretar um sonho (FREUD, 1900, Vol. IV, p.278).

Freud completa sua "estética", ao tematizar sobre as texturas e colorações (timbres) da representação onírica. Tais parâmetros, que são constituintes de qualquer obra de arte, surgem nos sonhos como diferenças de intensidade e nitidez, alcançadas, evidentemente, pela disposição das imagens em planos e pela própria coloração destas:

Se desejarmos levar mais avante nosso estudo das relações entre o conteúdo do sonho e os pensamentos do sonho, o melhor plano será tomar os próprios sonhos como nosso ponto de partida e considerar o que certas características formais do método de representação nos sonhos significam em relação aos pensamentos subjacentes a elas. As mais destacadas dentre essas características formais, que não podem deixar de nos impressionar nos sonhos, são as diferenças de intensidade sensorial entre imagens oníricas específicas e as diferenças na nitidez de certas partes dos sonhos ou de sonhos inteiros quando comparados entre si (FREUD, 1900, Vol. IV, p.279).

Atentamos para a radicalidade da experiência propiciada por esses parâmetros; é plausível supor que qualquer pessoa seja capaz de identificar imediatamente um plano, isto é, se algo está disposto em composição com outros elementos, e se este algo se localiza à frente, atrás ou em qualquer outro lugar do tecido que constituiu a própria obra; assim como é plausível supor que uma pessoa seja capaz de identificar uma cor ou um som, por exemplo, se o som ouvido é da voz de alguma pessoa querida ou de um instrumento conhecido. Em uma palavra: textura e timbre são parâmetros que expressam uma proximidade radical entre o sujeito e o universo físico que o constitui e também que o circunscreve. Desse modo, eles propiciam a constituição inequívoca do caráter corporal e categórico das relações entre os sujeitos e suas representações (5).

A discussão sobre os desdobramentos desta experiência que entendemos ser categórica e corporal revela, em um primeiro momento, algo sobre os mecanismos de hierarquização dos elementos dentro de uma representação onírica. Para que um elemento se destaque dos outros, mais do que um suposto valor de realidade, este elemento há de impor-se como dominância, ou seja, como algo capaz de sustentar-se e destacar-se como sensação, tal como a sensação de dominância e atratividade de um som sobre outro em muitas obras musicais:

Não se constata que os elementos de um sonho derivados de impressões reais no decorrer do sono (ou seja, de estímulos nervosos) se distingam, por sua nitidez, de outros elementos que surjam de lembranças. O fator da realidade não tem importância alguma na determinação da intensidade das imagens oníricas. (...) A intensidade dos elementos de um não tem nenhuma relação com a intensidade dos elementos do outro: o fato é que ocorre uma completa "transposição de todos os valores psíquicos" [na expressão de Nietzsche] entre o material dos pensamentos oníricos e o sonho. Muitas vezes, um derivado direto daquilo que ocupa uma posição dominante nos pensamentos do sonho só pode ser descoberto, precisamente, em algum elemento transitório do sonho, que é muito ofuscado por imagens mais poderosas (FREUD, 1900, Vol. IV, p.280).

O sonho produz a sensação, isto é, a contrapartida do desejo que o alimenta. A sensação revela-se, portanto, como nexo imediato entre o sonho e o desejo. É através da sensação que o sujeito se reconhece e se posiciona entre o desejo e sua criação. Por isso, concluímos, a sensação assegura a crença no sonho. E tal conclusão coaduna-se perfeitamente com a tese de que o sonho é realização do desejo, tanto em sua forma positiva, quanto em sua forma negativa, quer dizer, o sonho pode expressar uma contra volição:

Em outros sonhos, nos quais a "não execução" de um movimento ocorre como uma sensação, e não simplesmente como uma situação, a sensação da inibição de um movimento dá uma expressão mais enérgica à mesma contradição - expressa uma volição que é contraposta por uma contra volição. Assim, a sensação de inibição de um movimento representa um conflito da vontade (FREUD, 1900, Vol. IV, p.286).

Em vista do exposto, entendemos que a observação dos elementos estéticos do texto "A Intepretação dos Sonhos" constitui-se em uma via de compreensão do mesmo. Evidentemente, a "estética" proposta por Freud, assim como qualquer outra, assume os contornos do pensamento do qual é tributária, apresentando-se ora de maneira satisfatória face às questões que ela mesma coloca, ora apresentando lacunas, sobretudo, as derivadas dos limites previstos em seus princípios. Ao enveredar-se pela estética, Freud consegue articular duas instâncias de pensamento que muitas vezes pareceram contraditórias, quais sejam, a instância da sensibilidade, ligada ao universo volitivo das pulsões, e a instância do pensamento fundamentado na correção lógica. Tal articulação, porém, está presa às concepções de princípio, principalmente, daquele que, próprio das estéticas dos séc. XVIII e XIX, estipula que a representação tem função exclusivamente expressiva. Certamente, pensar que a representação não é meramente um instrumento de expressão não se ajusta completamente à tese que Freud defende no texto. Não obstante, parece-nos nítido que dialogar com o texto freudiano à luz de outras estéticas ou outros princípios pode ser um modo de desdobrar o pensamento que nele está contido.

II- Sobre a dimensão sonora dos sonhos.

No item anterior, mencionamos o fato de Freud privilegiar os elementos imagéticos em sua estética, em detrimento dos elementos sonoros; como vimos, mesmo as palavras reificarse-iam em imagens. Acrescenta-se que, a rigor, Freud refere-se à música apenas uma vez no texto que acabamos de comentar, uma vaga referência:

O mesmo autor [ibid., 306] (também citado por Vaschide, ibid., 233-4) conta como o músico seu conhecido ouviu num sonho, certa vez, uma melodia que lhe pareceu inteiramente nova. Só muitos anos depois foi que ele encontrou a mesma melodia numa velha coleção de peças musicais, embora ainda assim não pudesse recordar-se de tê-la examinado algum dia (FREUD, 1900, Vol. IV, p.24).

Contudo, a negligência em relação à dimensão sonora dos sonhos, por parte de Freud, não invalida a proposição de que de sua obra possa se desdobrar tal reflexão. A propósito, a compreensão da música em sua proximidade com o universo volitivo, tal como Freud compreendeu a arte e a representação onírica, fora anteriormente experimentada pelas filosofias de Platão, Aristóteles, Descartes, Rousseau, Schopenhauer e, sobretudo, Nietzsche, um pensador a quem, segundo Freud, a psicanálise deve tributos:

Ela (a psicanálise) também recebeu contribuições da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É incrível o quanto a intuição dele antecipou as nossas descobertas. Ninguém identificou com mais clareza as razões para o comportamento humano e a luta do princípio do prazer pelo eterno domínio. O seu Zaratustra diz: A dor grita: vai! / Mas o prazer quer eternidade / Pura, profundamente eternidade (ALTMAN, 2004, p. 110).

Em nosso entendimento, refletir sobre a experiência musical em sua proximidade com a vontade, a partir dos conceitos propostos por Freud, permite-nos redimensionar o conjunto de proposições sobre as relações entre música e homem, correntemente denominado Teoria dos Afetos. Tendo sido uma primeira vez experimentada nas filosofias de Platão e Aristóteles, tal teoria foi retomada ao longo da história da filosofia. De acordo com ela, a música expressa e molda afetos na medida em que está em contato com a vontade humana (6). Na prática, a Teoria dos Afetos tornou-se um corpo heterogêneo de convenções arbitrárias pelas quais músicos e tratadistas associaram modos e tonalidades aos afetos em geral. No afã de fundamentar tais convenções, a discussão sobre a relação entre afetos e música extrapolou os domínios da estética, encontrando muitas vezes refúgio nas ciências biológicas.

Descartes, por exemplo, filósofo e músico que se tornou referência para os tratadistas barrocos, esforçou-se para desvendar presumíveis mecanismos de produção de afetos sob a ação da música nos órgãos corporais. Para Descartes, as paixões - entendam-se os sentimentos produzidos pela conjugação entre a experiências volitiva e estética - são condicionadas e traduzidas por um órgão corporal, no sentido estrito da biologia, analogamente ao que é atualmente proposto por estudos orientados pelas neurociências:

E como ocorre coisa parecida com todas as outras paixões, isto é, que são fundamentalmente causadas pelos espíritos situados nas cavidades do cérebro, enquanto se dirigem para os nervos que servem para alargar ou estreitar os orifícios do coração, ou para impelir na sua direção o sangue que se encontra nas outras partes, ou de qualquer outra maneira que seja, para sustentar a mesma paixão, (...) (DESCARTES, 1999, Art.37, p.128).

 

 

Não obstante o reconhecido significado do pensamento cartesiano para o estabelecimento da subjetividade moderna, no campo da reflexão sobre a vontade, esse pensamento coaduna-se com o empirismo (7) vigorante em sua época e, como denotam as próprias palavras de Descartes, mostra-se condicionado pelo biologismo que, em certo modo, impôs-se sobre as ciências humanas e a filosofia. Tal insistência, porém, em buscar razões biológicas para o comportamento volitivo acabou desviando o filósofo de La Haye da reflexão sobre a vontade em si, em sua relação com a música. Efetivamente, o sujeito cartesiano condensa um feixe de sensações que se produzem, pela ação de um fator externo, nos órgãos corporais.

Por outro lado, em a Interpretação dos Sonhos, o desejo é compreendido sob a perspectiva de sua própria atividade. O desejo é causa em si (sic), mais que eventualmente consequência. Estabelece-se assim o fundamento para a constituição de um pensamento que concebe o desejo como condição de possibilidade para o sujeito, um pensamento que encontra sua expressão mais acabada na obra de Lacan. A questão que se coloca ao confrontarmos as posições de Descartes e Freud acerca da gênese afetiva soa pragmática; afinal, antes de se descobrir os meios para a gênese e supressão dos afetos, seria mister refletir sobre como nos relacionamos com eles na esfera do desejo.

Sendo o desejo causa de si mesmo e também dos signos oníricos, é de se esperar que ele molde as imagens e as palavras que, em qualquer instância ou dimensão, possuem um caráter referencial, o qual pode ser simbólico, icônico ou mesmo indicial, apropriando-nos aqui do vocabulário semântico de Peirce. Mas, afinal, como se relacionam desejo e sons, sejam estes entendidos como musicais ou não? Em outros termos, como o desejo se relaciona com aquele som que fora identificado por Schopenhauer e Nietzsche como significante puro (8).

Pensamos que, primariamente, sem a mediação da cultura, é difícil que os signos musicais cumpram função referencial, salvo acordos de linguagem de grupos especializados que não se sustentam no passar do tempo. Na música de Bach, por exemplo, há inúmeras convenções de referência simbólica que hoje são desconhecidas do público, e mesmo dos músicos, e que não são necessárias para a escuta e interpretação das obras. Por conseguinte, enfraquece-se a hipótese de que os signos musicais seriam expressões referenciais e/ou imagéticas de um desejo. Em uma linha de pensamento oposta, a suposição de que os signos musicais são significantes puros leva à formulação de que eles seriam reflexo direto da vontade, como propõe o Nietzsche schopenhaueriano:

Pois a música, como dissemos, difere de todas as outras artes pelo fato de não ser reflexo do fenômeno ou, mais corretamente, da adequada objetividade (Objektität) da vontade, porém reflexo imediato da própria vontade e, portanto, representa o metafísico para tudo o que é físico no mundo, a coisa em si mesma para todo fenômeno (NIETZSCHE, 2006, p.99).

Desdobrando a filosofia de Nietzsche, Heidegger retoma os gregos pré-socráticos e desenvolve a noção de que a música (dimensão sonora dos fenômenos) é o logos (mousiké) alimentador da linguagem, a partir do qual se instaura a (pré) compreensão afetiva necessária à atividade significadora. Segundo Heidegger, seria na música, justamente onde a imagem/palavra ainda não comparecera, que o ser residiria, constituindo-se como manancial afetivo da palavra.

A renúncia do poeta não diz respeito à palavra, mas à relação entre palavra e coisa ou, mais precisamente, ao mistério dessa relação, que justamente se oferece como mistério quando o poeta quer nomear a joia que tem em sua mão. (...) O poeta não oculta nomes. Ele não sabe os nomes. Isso ele confessa num verso que soa como o baixo contínuo de todas as canções: Onde te aténs - isso não sabes (HEIDEGGER, 2003, p.142).

Parece-nos que essas formulações acerca do signo musical, sobretudo, as que transitam entre as posições semânticas e não semânticas, estão por demais condicionadas pela noção de que eles, os signos entendidos como sons/silêncio, são entidades compostas exclusivamente por seus parâmetros: altura, timbre, tempo, intensidade (9). É como se esses tivessem uma existência em si mesma, que fosse definidora de suas propriedades de ação e representação.

A nosso ver, um caminho para se pensar o signo musical, ou seja, o próprio som (10), no universo conceitual freudiano, é pensá-lo em sua relação efetiva com o outro, o que significa pensá-lo em um espaço de incidência concreto. Essa é a mais radical e mais primária experiência propiciada por ele:

Na memória auditiva de qualquer pessoa, está presente a experiência de uma associação imediata e lógica entre o distanciamento e a aproximação das fontes sonoras e a intensidade do som que delas emanam. Também é comum lembrar a relação existente entre os movimentos laterais das fontes sonoras e a sensação de direção do som, ou a associação entre o volume do lugar onde se encontra a fonte sonora e a sensação de reverberação ou eco do som (RODRIGUEZ, 2006, p.281).

Imersos nessa perspectiva, alcançamos a noção de que os sons, como os sons que ressoam nas cavernas e revelam a dureza das rochas e a forma arredondada do espaço, dão-nos a experiência de nossa corporeidade interior. Em uma palavra: os sons que ouvimos como sons internos fornecem-nos a sensação e a certeza de que possuímos um espaço e uma vida íntima. Tal ocorre na presença da música, dos sussurros e das palavras que habitam a memória, assim como também na presença das palavras do pensamento e dos ruídos (intra) corpóreos. Tal ocorre também na presença das vozes que nos contaram histórias, ou dos sons dos instrumentos que tocamos. Desse modo, não há somente o que correntemente denominamos escuta interna ou subjetiva, mas, efetivamente, há sons que são internos (11).

Pensamos os sons internos como os componentes da música dos sonhos, uma música ampla, que não é composta apenas pelos parâmetros tradicionais, mas que se instaura como a dimensão sonora da interioridade. Retomando a perspectiva freudiana, indagamos em que medida essa música se articula com o desejo. Seria esta a mesma questão de um músico que indaga de onde provém a força antecipadora de seus gestos musicais? O fato é que a sonoridade reside no sujeito como um objeto paradigmático, a partir do qual ele encontra a medida para determinar o que lhe é próprio e o que é próprio do outro, pois tal sonoridade pertence à música mais próxima ao sujeito.

A propósito, Angel Rodriguez chama-nos a atenção para a dificuldade técnica de se conseguir, a partir de aparelhos, externar o que conhecemos intimamente como música interior. Essa dificuldade é vivida no cinema, quando o sound designer tenta reproduzir o monólogo de uma personagem solitária. O recurso é reproduzir justamente a situação de proximidade entre som e corpo:

(...) Esse é o som do monólogo interior que devemos conseguir para nosso personagem solitário: o som de escutarmos nossa voz de dentro de nosso próprio corpo. Para obter esse efeito de proximidade extrema, pediremos ao dublador que se aproxime muito do microfone, porque somente assim é possível captar os matizes acústicos mais fracos das frequências que compõem sua voz (RODRIGUEZ, 2006, p. 291).

Encerrando provisoriamente a presente reflexão, sugerimos que um caminho para estendermos o debate com a "estética" freudiana seria justamente pensar a representação onírica comparada às obras de audiovisual, algo, evidentemente, impensável no tempo em que o cinema e outras artes derivadas davam seus primeiros passos. Provavelmente, Freud, se tivesse tido oportunidade, perceberia o quanto um procedimento de sonorização resolve os problemas de unidade, derivados dos processos de deslocamento e condensação. Algo notável no cinema. Pensemos na cena que poderia ser de um sonho ou de um filme: "um homem montado em um cavalo." Um homem não, uma imagem, tomada da cintura para cima, que se move ao andamento de fotogramas sucessivos. Que melhor som poderia sustentar esta imagem? Dos passos dos cavalos? Do barulho dos ventos? Do estalar dos galhos e das folhas? Ou de uma música que silencia e unifica tudo isso sob sua voz poética?

Em outro contexto conceitual, referindo-se ao caráter mítico das primeiras imagens cinematográficas, Adorno e Eisler sustentam a proposição de que a música silencia os fantasmas que ninguém quer ouvir, propriamente, os ruídos assombrosos das imagens que se movem nas telas, ou simplesmente os ruídos provenientes do projetor (ADORNO & EISLER, 1981, p.25). Certamente, fantasmas tão assustadores e inconvenientes quanto os referidos por Adorno e Eisler habitam os sonhos. Fantasmas que não podem ser enfrentados com a lógica, posto que esta falha ante ao que se pôs em obra como mero fenômeno da sensibilidade.

 

Notas:

(1) Submetendo os conceitos tradicionais da estética à sua hermenêutica, o filósofo Luigi Pareyson elabora um oportuno compêndio dos mesmos, não obstante, a obra deste pensador em muito ultrapasse tal finalidade classificatória. No texto "Os problemas da estética", o autor dispõe os conceitos da estética tradicional, sobretudo a hegeliana, em pares contrapostos, tentando, porém, comprovar a falibilidade dessa lógica de contraposição. Em nosso entendimento, Freud é um esteta tradicional no sentido proposto por Pareyson. Ele pensa os conceitos e noções da estética por pares de opostos, por exemplo: conteúdo-forma, unidade-fragmento, junção-disjunção. Por conseguinte, a estética que tentamos compreender articulada ao todo da argumentação freudiana só pode ser esta, e não outra, que já derive de sua posterior crítica.

(2) Vale a lembrança: o substantivo theoría significa, entre os gregos, a ação de contemplar, olhar, examinar, especular.

(3) Coube a Lacan lançar outra compreensão valorativa sobre o papel da sonoridade nas composições associativas que articulam a representação onírica e, mais essencialmente, a própria linguagem. Em artigo publicado na revista Música e Linguagem, o psicanalista e dramaturgo Antonio Quinet realiza um oportuno estudo sobre a dimensão musical (sonora) nas composições do inconsciente, partindo, sobretudo, da noção lacaniana de "lalação". Em suma, o inconsciente estrutura-se como linguagem, diz a sentença lacaniana, inclua-se aí, completa-se, principalmente, como linguagem musical. (QUINET, 2013, p.10).

(4) A presença concomitante do princípio dos contrários na arte e filosofia é tematizada pela filósofa Gisele Brelet. Em artigo publicado pela Revista Kriterion, Gisele Brelet argumenta que tal princípio é o mesmo que serve como elemento estruturante das Sinfonias de Beethoven e da dialética de Hegel. Entenda-se: um mesmo princípio estrutura tanto uma representação poética como um pensamento filosófico (BRELET, 1986, p.211-220).

(5) Em suas célebres descrições fenomenológicas de obras de artes, Heidegger tematiza sobre a proximidade a qual nos referimos, deixando-nos concluir que as representações artísticas oferecem uma oportunidade privilegiada de uma experiência com as categorias. Por exemplo: o templo grego revela a dureza da pedra e o quadro de Van Gogh deixa a cor ser mais cor. (HEIDEGGER, 1988, p.206/210) É importante observar que Heidegger interpreta a categoria como o ente em sua primeira acepção, por exemplo: o tamanho, a quantidade, a dureza, a substância, a causa. Repercute aqui um dos mais tradicionais problemas da filosofia: diante das categorias, aparentemente, não há como decidir se elas pertencem ao sujeito ou ao mundo que lhe é exterior. Parece que Heidegger decide pela segunda possibilidade: as categorias estão nas coisas em geral (HEIDEGGER, 2007, p.23).

(6) A chamada Teoria dos Afetos traz um campo de definições bastante amplo e vago sobre as relações entre música e afetos. Um exemplo clássico de exposição e aplicação dessa teoria encontra-se no Livro III da República de Platão, onde o filósofo associa "as escalas dos modos musicais gregos" à construção dos caráteres humanos específicos, os quais eram, segundo Platão, almejados para a realização do Estado Ideal. O modo dórico, por exemplo, seria associado à moldagem de um caráter sóbrio; o modo lídio seria associado à moldagem de um caráter guerreiro (PLATÃO, 2007, Livro III, X, p.102).

(7) Descartes, ele mesmo um músico, compartilhava das opiniões dos músicos de sua época, precisamente, daquela segundo a qual a música agiria nos órgãos corporais movendo as paixões correspondentes a esses órgãos. Em torno dessa opinião, articulam-se e complementam-se dois de seus textos: "As Paixões da Alma" e "Compendium Musicae ".

(8) Peirce classifica o signo quanto à sua natureza do seguinte modo: 1) Ícone - semelhança entre o signo e seu referente (por exemplo, a fotografia); 2) Índice - relação analógica de indício (por exemplo, o chão molhado é sinal de que choveu); 3) Simbólico - relação de convenção arbitrária (por exemplo, a palavra cadeira se refere a um determinado objeto).(PEIRCE, 1993, Cap. I). Por outro lado, a definição do signo musical como significante puro transpõe-se diretamente da filosofia de Schopenhauer para a de Nietzsche, que, em seus primeiros escritos, tem reconhecida inspiração schopenhaueriana (SCHOPENHAUER, 1969, p.309 e NIETSZCHE, 2006, § 98/99).

(9) Grosso modo, um som é composto pelos seguintes parâmetros: altura (por exemplo, espaço medido em frequência: um dó, por exemplo), timbre (por exemplo, o som de um violino ou de outra fonte qualquer), tempo (por exemplo, duração de uma nota), intensidade (por exemplo, forte/fraco).

(10) Por muito tempo, pensou-se o silêncio como o oposto do som, ou seja, como o não signo. Essa concepção foi superada pela própria música. Dentre as proposições sobre o silêncio, vigora a que o coloca no patamar das experiências sonoras, como o próprio som. De fato, o silêncio absoluto nunca foi experimentado empiricamente. O que motiva Angel Rodriguez a defini-lo como a consciência mais próxima da extinção de um som, isto é, a consciência mais próxima de que deixamos de ouvir um som. Diz esse autor: "O silêncio não é ausência e som, e sim a sensação que surge justamente em que algo que está soando deixa de soar" (RODRIGUEZ, 2006, p.185).

(11) É corrente nos estudos de psicopedagogia musical o conceito de escuta interna ou escuta subjetiva. Grosso modo, trata-se de como o sujeito dispõe interiormente o objeto de sua escuta, muitas vezes, confrontando-o com sua posição externa (GAINZA, 1982, p.79).

 

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Recebido em: 30/04/14
Aprovado em: 28/09/14