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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.6 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2014

 

COMUNICAÇÃO DE PESQUISAS

 

Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS): formando e transformando no campo da saúde pública

 

Healthy Brasileirinhos and Brazileirinhas Strategy (EBBS): forming and transforming in the field of Public Health

 

 

Luciana B. PitomboI; Marisa S. MaiaII; Selma Eschenazi do RosarioIII

IPsicanalista. Mestre em Psicologia/UFF. Consultora da EBBS. lupitombo@yahoo.com.br
IIPsicanalista. Doutora em Saúde Coletiva pelo IMS/UFRJ. Consultora da EBBS. msmaia@centroin.com.br
IIPsicanalista. Mestre em Psicologia/UFF. Consultora da EBBS. selmarosario@hotmail.com

 

 


RESUMO

A Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS) é uma iniciativa estabelecida entre a Fundação Oswaldo Cruz - Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (Fiocruz/IFF) e o Ministério da Saúde - Coordenação Geral de Saúde da Criança e Aleitamento Materno (MS/CGSCAM), iniciada em 2007. Desenvolvido o projeto piloto em seis capitais brasileiras, inicia-se uma segunda fase com o objetivo de fortalecer o pacto interfederativo de implantação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC).

Palavras-chave: formação-intervenção; política pública; cartografia; grupalidade; cuidado.


ABSTRACT

The strategy denominated Healthy Brasileirinhas and Brasileirinhos (EBBS) is an initiative established between the Oswaldo Cruz Foundation (National Institute of Health of Women, Children and Teenager Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) and the Ministry of Health (General coordination of child health and breastfeeding (MS/CGSCAM)), was initiated in 2007. While the pilot project was developed in six Brazilian cities, a second phase begins with the objective of strengthening the inter-federative pact of the implementation of the National Policy of Integral Attention to Child Health (PNAISC).

Keywords: training-intervention; public policy; cartography; grouping; healthcare.


 

 

Introdução

No ano de 2007, a Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (1) (EBBS) foi instituída, considerando-se os marcos legais, contribuições institucionais e experiências nacionais e internacionais bem-sucedidas na área da atenção integral à saúde da criança. Com o objetivo de responder a importantes questões propostas pelo PAC/Saúde (2), a EBBS busca enfatizar a importância da produção de saúde de um modo mais abrangente, compreendendo-a em relação ao crescimento e ao desenvolvimento sustentável do país. Trata-se de uma concepção inovadora em termos de política pública no que diz respeito à interação existente entre os momentos iniciais da vida (destacando o cuidado e o vínculo entre a mãe ou cuidador e o bebê) e os padrões de crescimento e desenvolvimento que vão tomando forma na inter-relação, colocando em cena os recursos pessoais, genéticos, e as ofertas do ambiente físico, emocional e social.

Como desdobramento do trabalho inicial, a EBBS foi convidada, pela Coordenação da Saúde da Criança e Aleitamento Materno do Ministério da Saúde (CGSCAM/MS), a contribuir e participar da desafiadora experiência voltada para a construção de um pacto interfederativo que sustentasse a formulação e implantação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC) (Cf. PENELLO e LUGARINHO, 2013). A chamada fase 2 da EBBS começou a ser desenhada em julho de 2011, a partir de uma demanda do Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas em Saúde (DAPES) e da CGSCAM, e ganhou um desenho diferente do que havia sido desenvolvido até então. O fato de ter sido elaborada como uma 'estratégia' possibilita à EBBS o dinamismo necessário à formulação de novos arranjos e composições diferenciadas, em torno da temática do cuidado à primeira infância, respondendo às diferentes demandas surgidas do campo. Na nova proposta, trata-se de centrar esforços nas ações em torno da construção e implementação de uma política voltada para a atenção integral à saúde da criança, com a inclusão dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal neste processo, num verdadeiro pacto interfederativo. Para que isso pudesse se concretizar, foi selecionado, em cada um desses territórios, um profissional com experiência na área de saúde pública a fim de fazer o elo entre as três instâncias federativas (Ministério da Saúde e Secretarias, estadual e municipal). No presente trabalho, iremos abordar o eixo da formação/capacitação desses profissionais denominados consultores da CGSCAM/MS nos 26 estados e no Distrito Federal, assumido pela equipe da EBBS no desenho estratégico que se construiu com essa finalidade.

Com a convocação dos coordenadores da área técnica da saúde da criança, de estados e capitais, para a participação e a constituição de um Fórum de Coordenadores de Saúde da Criança, iniciou-se o processo de inclusão dos entes federativos. Como parte da metodologia definida para a construção e condução de todo o processo, foram realizados encontros periódicos com a participação desses coordenadores, inaugurando um importante espaço coletivo de reflexão e encaminhamento de temas e propostas em torno da saúde da criança para todo o território nacional. Posteriormente, foram contratados 27 consultores da saúde da criança para atuarem como apoiadores desse processo interativo junto aos territórios, auxiliando nas articulações intrainstitucionais, interinstitucionais e interfederativas. Além disso, foi necessária a criação de uma estratégia que possibilitasse um contínuo processo de interação entre os diferentes grupos participantes da iniciativa, estreitando os laços e dando agilidade à troca de informações. Decidiu-se que, além dos encontros presenciais (3), o trabalho colaborativo e de formação ocorreria também virtualmente, através do uso da Plataforma de Ensino à Distância do UNIVERSUS.

Nas pactuações iniciais, estabeleceu-se que a atividade de formação ficaria sob responsabilidade da EBBS e que seria realizada por uma equipe de cinco profissionais no exercício da função de tutoria. Somando-se a esse grupo, haveria outras duas equipes a compor um tripé para a condução e acompanhamento do trabalho dos consultores nos territórios: uma equipe ligada às ações voltadas para os aspectos da gestão inerentes ao trabalho nos territórios (consultores nacionais) e outra voltada para um trabalho de pesquisa avaliativa processual da implantação do projeto, principalmente no que concerne à construção da PNAISC.

Como escolha metodológica para o desenvolvimento da formação e acompanhamento dos consultores estaduais, os estados brasileiros foram divididos em cinco grupos (4). O acompanhamento do aspecto da formação dos consultores em cada um desses grupos ficou sob a responsabilidade de um tutor que desenvolveu seu trabalho em parceria com um consultor nacional, e com o acompanhamento de um membro do grupo de pesquisa avaliativa. De acordo com esse modelo, o trabalho/intervenção dos profissionais, principalmente do tutor e do consultor nacional, foi-se criando e desenvolvendo ao longo do período, formandose verdadeiras duplas colaborativas para a condução do processo, sempre em consonância com a equipe técnica da CGSCAM.

Paralelamente, a equipe da EBBS continuou a refletir continuamente sobre todo o processo em encontros semanais sob a coordenação geral da Estratégia, que incluíram temas pertinentes ao amplo debate sobre o cuidado na primeira infância. Nas mencionadas reuniões de trabalho, manifestou-se a compreensão de que os ajustes contínuos de percursos fazem parte da própria metodologia adotada.

 

Processo de formação EBBS: base conceituai e escolha metodológica

Na construção do processo formativo, tomamos como base conceitual a diretriz que entende a formação, neste campo, como a habilitação dos envolvidos para intervir nos territórios, assentando-se os processos de formação no princípio da inseparabilidade da gestão em saúde e da prática do cuidado.

Nossa forma de pensar a formação implica tomar os envolvidos na aprendizagem, não como coadjuvantes, mas como protagonistas do processo. Para tal, busca-se superar o modelo mecanicista de educação, segundo o qual se acredita numa separação asséptica entre sujeito e objeto, atribuindo-se uma pseudoneutralidade à transmissão de conhecimento - sinônimo aqui de conteúdo formal teórico, muitas vezes abstrato e distante das realidades subjetivas e locais. Valoriza-se, em vez disso, a experiência processual de conhecer e aprender, em que a transmissão de conhecimento possibilita uma construção do coletivo envolvido no aprendizado. Um princípio fundamental que embasa essa metodologia é a compreensão de que tanto aqueles que se encontram em formação quanto os que se ocupam da tutoria são sujeitos ativos na produção grupal de conhecimento, guardando aí os lugares simbólicos a cada um reservados. O método em pauta leva em consideração a profunda ligação que existe entre teoria e prática. Nesse sentido, interessam-nos os agenciamentos focalizados em práticas encarnadas nas realidades locais, que somente um espírito crítico e criativo é capaz de alterar.

O 'modo de fazer EBBS' é centrado na troca de experiências e no laboratório de práticas, banhadas por processos de reflexão tanto individual quanto grupal, sempre em um ambiente grupal solidário. Soma-se ao percurso feito a leitura de material teórico implicado e recomendado de acordo com o conteúdo programático previsto (5). Nosso objetivo, em tal contexto, foi ampliar as possibilidades de integração ao desenvolvimento de recursos no plano pessoal e profissional, para o enfrentamento de situações de difícil manejo e que geram impasses nos territórios.

Na condução do processo formativo, houve a preocupação de conjugar a reflexão sobre a experiência vivida com as reflexões teóricas e conceituais. Essa 'reflexão qualificada' expressa a preocupação constante com a manutenção de um olhar diferenciado sobre o trabalho desenvolvido na formação do consultor estadual, incluindo as dimensões mais duras, estratificadas, ligadas à gestão, como também os aspectos relacionais e afetivos inerentes a qualquer relação humana.

Ao longo do processo de formação, interessou-nos despertar e desenvolver nos consultores habilidades que os tornassem, dentre outras coisas, mais sensíveis para essa dimensão processual constante, da qual somos fruto e na qual nos encontramos inseridos. "Desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente" foi uma aposta constante, mas nem sempre fácil de ser realizada, por implicar algo que "não pode ser aprendido em livros" (BARROS e KASTRUP, 2010, p. 58), sendo preciso, num certo nível, deixar-se levar pelas intensidades do presente.

É sempre bom lembrar que quando pensamos e executamos ações voltadas para um município, um estado ou uma nação, estamos sempre lidando com pessoas. Em outras palavras, procuramos inovar ao incluirmos a dimensão afetiva/relacional em todos os momentos do processo de formação, instrumentalizando os consultores para lidarem tanto com seus afetos, quanto com aqueles surgidos nas diversas situações com as quais eles viessem a lidar. Afetar e ser afetado é algo inerente às relações estabelecidas, tendo em vista que sempre estamos inseridos em um plano processual, composto por um coletivo de forças (Cf. PASSOS, KASTRUP, ESCÓSSIA, 2010). Por esse motivo, nossa intenção foi desenvolver junto aos mencionados profissionais uma sensibilidade mais apurada para aquilo que se passa entre: entre as pessoas, entre as experiências, entre os ditos, que muitas vezes nos escapam pelo simples fato de não receberem a devida importância, mantendo-se virtuais aos nossos sentidos. Para isso, algumas habilidades foram trabalhadas e fomentadas ao longo do período da formação, tais como: escuta, empatia, vínculo, reconhecimento, atenção, ludicidade, cooperação, manejo e mediação de conflito.

O trabalho em torno dessas habilidades foi estratégico para caminharmos na construção e na transversalização de três eixos teórico-práticos que orientam, como veremos, a condução e a mentalidade EBBS: a cartografia, a grupalidade e o cuidado. Outro aspecto importante do trabalho da tutoria foi a mediação dos diversos grupos, tanto nos encontros presenciais quanto na plataforma. A habilidade para o trabalho com grupos foi um requisito básico para o desempenho dessa função, pois a maior parte das atividades era e é desenvolvida em grupos, de forma dialógico-reflexiva. Nos momentos presenciais, realizados na forma de Oficinas de Formação, enfatizou-se o modo de fazer característico da EBBS que contempla o contexto, ou seja, o campo de intervenção para a criação de um ambiente facilitador que leve em conta os arranjos territoriais possíveis. Esses arranjos são fomentados coletivamente, por meio das rodas de conversa, buscando a promoção de parcerias, diálogos e compartilhamento de conhecimento/informações, para que as ações dos consultores estaduais em território sejam eficazes. A meta fundamental foi trabalhar a grupalidade no exercício de uma construção contínua e coletiva, capaz de produzir mudanças por meio do que é expresso e experimentado no aqui e agora dos encontros, e sempre no sentido da construção de grupalidades cooperativas e solidárias. Privilegiou-se a experiência como ferramenta de transmissão de cuidado, observando, como um importante resultado desta atividade, o estímulo ao cuidado gerado no campo relacional, implicando todos os envolvidos.

Com relação aos momentos de formação à distância, perante o desafio de formar consultores residentes nos 27 estados brasileiros e com realidades tão distintas, e buscando a operacionalização desse processo de formação, a adoção da plataforma de ensino à distância foi fundamental. Mostrou-se eficaz e um instrumento valioso, não apenas para a formação, como para a gestão e para a pesquisa avaliativa. Sublinha-se, no entanto, que sua eficácia se deve ao intenso investimento dos tutores e consultores nacionais que, juntamente com a equipe responsável por sua administração, fomentaram e qualificaram esse meio tecnológico. Além do efeito pedagógico, a Plataforma tem contribuído para o desenvolvimento de um intenso debate em torno da construção das políticas de atenção à saúde da criança nos estados, embasando e auxiliando a CGSCAM/MS no acompanhamento dos trabalhos em cada área e difundindo informações estratégicas para todos.

A metodologia de trabalho por meio da Plataforma, para efeito de formação, utilizou de recursos tais como: indicação de textos a serem trabalhados pelos consultores estaduais nos pequenos grupos com comandos que disparassem a reflexão e o diálogo; devolução avaliativa e comentada pelos tutores sobre as respostas produzidas, fomentando o debate sobre a temática proposta; produção de compilados reflexivos para subsidiar o processo de aprendizagem nas oficinas presenciais. Além disso, o espaço virtual tornou-se um importante ambiente de troca de experiências e de acolhimento e cuidado pelo grupo e no grupo (6).

Entendendo a formação como um processo contínuo e que se realiza na imersão no campo da experiência, e através dela, nossa proposta foi valorizar o caráter exploratório de cada realidade e assim reconhecer (e levar o consultor a conhecer) aquilo que cada território apresenta como potencial de crescimento. Atravessavam todo o processo as noções de integralidade, interdisciplinaridade, ações compartilhadas, formação de vínculos de confiança e construção de um compromisso de corresponsabilidade.

 

Cartografia, grupalidade e cuidado: norteadores inventivos

A metodologia adotada privilegiou três eixos teórico-práticos: cartografia, grupalidade e cuidado, os quais permearam todos os encontros formativos, presenciais e virtuais, tendo em vista o alcance de nossos propósitos. Dada a importância desses temas, deternos-emos um pouco mais em cada um deles, explicitando suas articulações com o tema da formação em saúde.

 

Sobre a cartografia

O termo cartografia foi tomado emprestado da geografia, por Deleuze e Guattari, para descrever o que eles consideram como um novo modo de pensar as experiências que envolvem transformações permanentes dos planos coletivos e dos territórios existenciais e que sempre são, para eles, experiências marcadas pela multiplicidade. Seguindo esses autores, Suely Rolnik (2006) oferece uma definição do que é fazer cartografia, distinguindo as noções de mapa e de cartografia:

Para os geógrafos, a cartografia - diferentemente do mapa: representação de um todo estático - é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos - sua perda de sentido - e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos (p.23).

Cartografar não significa ir ao campo em busca de algo previamente sabido - tal como na consulta a um mapa. É bem mais do que isso. Trata-se de 'examinar' o campo por outra perspectiva, sendo fundamental que o 'olhar' seja o de alguém que garimpa aquilo que o território apresenta como potencial de crescimento, mas que, por algum motivo, não realiza. É no (re)conhecimento desse território -isto é, conhecer novamente - que é possível (re)inventá-lo.

Observa-se que a renovação das práticas, mesmo respaldadas em embasamentos científicos, nem sempre surtem os efeitos esperados se esses forem delineados apenas previamente. Aqui vale a máxima de que não basta saber para fazer. Ao contrário, é considerando o fazer referenciado a determinado contexto, que os postulados científicos podem ou não ser validados, enriquecidos e revitalizados. É a valorização do fazer, mas não meramente pelo fazer, e sim para produzir conhecimento através de práticas postas em ação.

Quando se diz que não é prévio, é porque esse modo de (re)conhecer dada realidade tem caráter exploratório, ou seja, implica o acompanhamento do processo de constituição do próprio percurso que se vai traçar. Trata-se de um processo de educação permanente que se realiza na inserção no campo da experiência, e por meio dela. Assim, esperamos poder oferecer nas oficinas um espaço qualificado de formação/reflexão sobre esse fazer. Decorre daí a importância dos encontros presenciais e à distância para não perdermos a riqueza da experiência singular vivida no percurso, podendo-se, desse modo, refletir sobre a dimensão do nosso fazer e exercer um cuidado recíproco que também nos apoie em nossa tarefa.

Sobre a grupalidade:

A orientação para o trabalho em equipe, no âmbito da saúde pública brasileira, alcança os diferentes níveis da assistência e da gestão e sua qualificação continua sendo um desafio atual. Sabemos que o tema dos grupos e sua materialização como processo de equipe, são fundamentais e verdadeiros nós críticos do trabalho nos serviços (CECCIM et al., 2007). O trabalho na área da saúde é complexo e implica a elaboração de uma série de estratégias em sua abordagem para que possamos caminhar na construção de práticas de cuidado efetivas e eficientes para a população. Além disso, a prática em saúde tem como lócus de sua expressão a relação entre os sujeitos. Então, como formar profissionais de gestão para o trabalho em grupo e com grupos? Que compreensão de grupalidade seria mais interessante para nos ajudar nesta tarefa? Por que julgamos isso importante?

Tendo sempre em mente o conceito de saúde coletiva, sabemos que não basta dizer que trabalhamos em grupo para de fato acionarmos processos grupais. Temos que dizer mais se pretendemos encarar os desafios do campo da saúde hoje de forma diferenciada. Para isso, é necessário operar uma desnaturalização de um modo de compreender o grupo e o indivíduo que ainda é hegemônico em nossos dias, afirmando uma perspectiva mais coerente com o trabalho desenvolvido.

Quando falamos de grupo/grupalidade não se trata de um conjunto, um somatório de pessoas; nem de pensarmos o grupo apenas como uma oposição à noção de indivíduo (total e universal). Trabalhamos a ideia de grupalidade entendida como um processo que se vai constituindo gradativamente, a partir do seu exercício.

Com essa finalidade, nós nos aproximamos da compreensão do grupo como um dispositivo. Em tal perspectiva, o trabalho em grupo visa acionar processos capazes de produzir mudanças por meio do que é expresso e experimentado no decorrer dos próprios encontros dos grupos (NOGUEIRA, PITOMBO e ROSARIO, 2010).

Segundo Barros (1997), quando o grupo é entendido como um dispositivo, deixa-se de lado a concepção de grupo como um somatório de indivíduos ou uma unidade em si. Sob o ponto de vista adotado, o grupo é composto por um emaranhado de linhas das muitas histórias que nele [grupo] se cruzam. Visto assim, o grupo pode ser considerado como um processo porque experimentamos sensações oriundas da composição das forças expressivas e intensivas produzidas pela diversidade das experiências, vindas de muitos lugares e que seguem múltiplas direções. Pensar o grupo desse modo significa privilegiar o que foi experimentado no decorrer dos encontros, mantendo uma abertura para a inclusão dos efeitos produzidos pela composição de palavras e afetos expressos e que ganham novos sentidos.

Ampliar esse campo sensitivo/perceptivo, no sentido apontado acima, não significa abrir mão das estratificações necessárias ao viver, nem da realização de tarefas e cumprimento dos diversos 'combinados' que organizam o cotidiano da vida em sociedade. O fato de termos uma tarefa para o grupo não entra em contradição com as reflexões propostas. O que irá variar é o 'modo de fazer', o modo de conduzir a realização da tarefa, pois, do ponto de vista até aqui percorrido, há de haver abertura para a inclusão permanente das contradições, singularidades e discrepâncias surgidas em todo e qualquer processo de trabalho coletivo. Na verdade, essa operação de inclusão é fundamental para a qualificação dos diferentes espaços de gestão coletiva que caracterizam as práticas na saúde hoje.

 

Sobre o cuidado

As diversas propostas de educação permanente do profissional de saúde tomam como eixo o cuidado em suas diversas linhas de ação. No entanto, quando, em nosso contexto de formação, nós o propomos como um dos três eixos centrais da EBBS, buscamos uma compreensão sobre o cuidado que inclui seu entendimento habitual - como uma atitude de zelo, de preocupação, de atenção ao outro - mas vai além. Nosso desafio é transmitir cuidado através da experimentação. Cuidado implica uma ética, conforme o sentido originário do termo, que advém de ethos, cujo significado se traduz por criar um ambiente, uma morada, em que o homem se reconheça e possa existir em relação com outros. Cuidado configura-se como um modo de ser, um modo de ser com o outro, com o mundo. Aqui, constitui-se como uma ética: a ética do cuidado.

A estratégia micropolítica de transmissão de cuidado, ou seja, o processo de enraizamento do cuidado que favorece a disseminação de modos diferentes de fazer e produzir saúde, conta com uma delicada rede afetiva e linguística que envolve os implicados na experiência de cuidar. Cabe lembrar que o referencial de saúde e de produção de saúde aqui utilizado não se restringe à sua dimensão biológica. Em tal contexto, os aspectos biológicos entrelaçam-se com os psíquicos e ambos dependem do ambiente para seu pleno desenvolvimento. Pensemos no cuidado especializado: sabemos que o acolhimento clínico respeitoso e afetivo coloca aquele que está em situação de necessidade de cuidados em uma prontidão corporal e emocional favorável à abordagem clínica e medicamentosa. Há uma frase comum dita entre os médicos antigos que é exemplar: "O bom acolhimento é o primeiro remédio que damos ao paciente quando o recebemos".

Do modo como compreendemos o cuidado, este se estende ao campo da gestão, ou melhor, a todas as atividades relacionais do humano. Há, sempre, um 'campo de afetação' (Cf. MAIA, 2009) entre as pessoas que compartilham determinada experiência. Quando estamos imersos em uma experimentação de cuidado, as mudanças subjetivas vão-se operando por 'afetação' e 'contágio', isto é, como algo que se propaga em meio àquilo que é vivenciado por muitos e que funciona como disparador da 'formação de um tecido coletivo'. Transmitir cuidado implica, portanto, experimentação e afetação, já que inclui não somente a dimensão de significados linguísticos, mas toca o campo da transmissão sensível, provocando a ativação de mecanismos psíquicos e biológicos vitalizantes.

Como consequência dessas considerações, entende-se que para fazer mover as engrenagens da cartografia, da grupalidade e do cuidado no processo de formação, algumas estratégias precisam ser criadas. É fundamental criar um campo de experimentação no qual a escuta, o acolhimento e o reconhecimento sejam a 'matéria' do aprendizado, que se dá em ato. Esse registro da experimentação do mundo e no mundo dá-se entre duas ou mais pessoas, dá-se no entre, em uma comunidade de humanos.

 

Notas:

(1) A fase I desse projeto foi objeto de uma primeira comunicação de pesquisa publicada na Revista Trivium, n. 3, v. 2, 2011. A EBBS foi formalizada por meio da Portaria GM n. 2.395, de 7 de outubro de 2007. Cf. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção À Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas em Saúde, 2010.

(2) A EBBS "surgiu em sintonia com o Programa de Aceleração do Crescimento do Governo Federal que, na Área da Saúde (PAC/SAÚDE, 2007), constituiu-se de maneira a articular as reformas Sanitária e Psiquiátrica em nosso país, buscando um padrão de desenvolvimento comprometido com crescimento, bem-estar e equidade no acesso à saúde do povo brasileiro" (PENELLO et al., 2011, p. 106).

(3) No escopo do projeto, estava prevista a realização de três encontros de Coordenadores de Estados e Capitais da Saúde da Criança e seis Oficinas de Formação dos Consultores/Apoiadores da Saúde da Criança nos Estados anuais. Esse desenho foi realizado nos anos de 2012 e 2013, e ainda está em andamento o período de 2014.

(4) A composição dos grupos dos estados seguiu a orientação dada pela CGSCAM/MS: Grupo 1: Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Grupo 2: Sergipe, São Paulo, Distrito Federal, Tocantins, Bahia e Goiás. Grupo 3: Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espirito Santo, Acre e Rondônia. Grupo 4: Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte. Grupo 5: Pará, Amapá, Roraima, Maranhão e Amazonas.

(5) Conteúdo programático - Temas principais: cartografia, grupalidade e cuidado. Temas complementares: Desenvolvimento emocional infantil; o lúdico infantil; ambiente emocional facilitador; o apoiador e a função apoio; tecnologias relacionais; cooperação, empatia e simpatia; capacidade de escutar e acolher o outro em sua diferença e singularidade; Determinantes Sociais de Saúde.

(6) Referimo-nos aqui aos grupos dos estados descritos acima (grupo 1 ao 5), acompanhados na plataforma por uma tutora e um consultor nacional.

 

Referências bibliográficas:

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BARROS, R. B. Dispositivos em ação: o grupo. In: Saúde e Loucura n. 6.         [ Links ]

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CECCIM, R. et al. (2007) Autogestão no trabalho com/em equipes de saúde: estudantes agindo o sistema único de saúde. In: PINHEIRO, R., BARROS, E. e MATTOS, R. (org.). Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: IMS/UERJ.         [ Links ]

MAIA, M. S. (2009) Crianças do porão: descuido, violência psíquica e cuidado. In: Por uma ética do cuidado. Rio de Janeiro: Garamond.         [ Links ]

NOGUEIRA, J. G.; PITOMBO, L. B. e ROSARIO, S. E. (2010) Transformações afetivas em um grupo de profissionais de cuidados paliativos. In: Comunicação de notícias difíceis: compartilhando desafios na atenção à saúde / Instituto Nacional do Câncer. Coordenação Geral de Gestão Assistencial. Coordenação de Educação. Rio de Janeiro: INCA.         [ Links ]

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ROLNIK, S. (2006) Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 14/05/14
Aprovado em: 22/10/14

 

 

(Projeto de pesquisa do Instituto Fernandes Figueira / Fiocruz / Ministério da Saúde)