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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versión On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.7 no.2 Rio de Janeiro jul./dic. 2015

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2015v2p.188 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Os filhos da causa: memórias de filhos de exilados do regime militar (1964-1985)

 

Children of the cause: memories from children of exiles of the military regime (1964-1985)

 

 

Marcelo Henrique da CostaI; Ricardo Vieiralves de CastroII

IProfessor Adjunto do Curso de Psicologia da UVA. Rua Ibituruna 108, Tijuca, Rio de Janeiro, RJ. E-mail: marcelohenriquedacosta@gmail.com
IIProfessor Adjunto do Instituto de Psicologia da UERJ. E-mail: ricardo.vieiralves@gmail.com

 

 


RESUMO

A perseguição política decorrente da ditadura militar entre 1964 e 1985 no Brasil obrigou muitos ativistas políticos a buscar exílio em terras estrangeiras. Em viagem decidida às pressas, levavam seus filhos ainda crianças para o exílio, mudando suas vidas. Este estudo pretende entender quem foram essas crianças, "filhas da causa", e que memórias possuem daquele período. Tendo como referência a Psicologia Social, estabelecendo diálogo com outros "saberes", buscou-se entender que memórias foram construídas e qual nível de compartilhamento intersubjetivo foi produzido. Foram investigadas lembranças da saída do país, chegada e adaptação ao exílio, volta ao Brasil, e a avaliação global sobre o exílio e escolha política dos pais. A partir da perspectiva da Memória Social realizou-se articulação de fragmentos de discursos dos sujeitos entrevistados em busca de sentidos comuns, construídos a partir das memórias infantis sobre o período do exílio.

Palavras-chave: EXÍLIO; MEMÓRIA SOCIAL; COMPARTILHAMENTO; INTERSUBJETIVO.


ABSTRACT

The political persecution consequent from the Brazilian military dictatorship (between 1964-1985) has forced many political militants to leave Brazil and look for exile in foreign countries. After setting up a trip in a hurry, they had to take their children still in such young age at that moment with them to overseas, changing their lives. This study intends to investigate who were those children, the "children of the cause", and which memories they have about that eventful period. Based on Social Psychology theories - and some other knowledge areas as well - we've tried to understand which memories were 'built' and which level of inter-subjective partaking were produced. It was investigated memories of their living, their arriving and their adaptation to exile. Their global evaluation of the exile and their evaluation of the political choice of the country were also investigated. Being supported by the rhetorical analysis theories, we've also tried to join speeches together to seek convergences. From the Social Memory perspective, we've tried to link the fragments of the speeches, seeking for a common sense built from the childhood memories in the period of the exile.

Keywords: EXILE; SOCIAL MEMORY; INTER-SUBJECTIVE PARTAKING.


 

 

Introdução

O presente artigo é um exercício sobre o tema da Memória Social desde a perspectiva da Psicologia Social, e utiliza para tal o material empírico produzido a partir de entrevistas feitas com dezoito filhos de exilados políticos do regime militar existente entre 1964 e 1984 no Brasil, reflexões acerca do estatuto conceitual e operacional da memória social, bem como uma necessária contextualização política e psicológica do exílio.

 

 

Dessa forma, na primeira parte, contextualizaremos a experiência do exílio e o fechamento político do regime militar. A ambivalência da situação do exilado político será enfatizada. Na segunda parte, procuraremos estabelecer alguns elementos de síntese que sejam úteis à análise da memória dos filhos dos exilados, os filhos da causa1. Na terceira parte, apresentaremos fragmentos do material empírico produzido a partir das entrevistas, tematizando especificamente a ida para o exílio e seus preparativos, bem como as condições específicas de comprometimento dos pesquisadores com o tema pesquisado. Ao final, fazendo uma avaliação contemporânea dos acontecimentos passados, os filhos da causa avaliam globalmente o exílio.

 

O contexto político e histórico do exílio

Cinquenta anos se passaram desde 31 de março de 1964, quando em uma ação de força, o Presidente João Goulart foi deposto pelas Forças Armadas e instaurou-se um governo militar que atravessou décadas, sobrevivendo até 1985. Foram vinte anos. Outros trinta anos já se passaram após o seu fim, transformando em história boa parte dos acontecimentos daquela época.

O país dava, em 1964, os primeiros passos para uma mudança de modelo econômico e político. Com o golpe no Brasil, abriam-se as portas para uma nova estratégia de dominação, não só no país, mas também servindo de inspiração a outras realidades no continente sul-americano. Logo após o evento de 1964, uma primeira geração de militantes políticos, opositores ao novo regime, foi diretamente atingida. Numa ditadura "envergonhada", em palavras de Gaspari (2002), havia um contingente ainda menor de pessoas perseguidas, a saber, prioritariamente as ligadas ao alto escalão do governo deposto, importantes lideranças comunistas e socialistas e, principalmente, num primeiro momento, soldados, cabos, sargentos que tinham articulado o movimento sindical nas Forças Armadas, estopim do golpe. Prisões e exílio para alguns foram a marca daquele momento.

Havia ainda, inicialmente, apesar do golpe, a ilusão da resistência social. Entre 1964 e 1968, muitas "trincheiras" em diversos "terrenos" foram construídas. De um lado, os estudantes intensificavam sua luta, apresentando um plano de desenvolvimento e educação que contrastava com os interesses do novo sistema; de outro lado, as artes eram espaços de disputa importante. Embalados pelos ares de mudança cultural no mundo, os jovens enfrentavam a ditadura com argumentos e muita criatividade2.

Para Zuenir Ventura, esse primeiro momento de arbítrio traduz-se pelo fim da ilusão na cultura de esquerda pré-64 e o ano de 1968 representa o fim de sua inocência (Ventura, 1988). De fato, esses dois momentos são etapas distintas naquele período também conhecido por anos de chumbo, cujo divisor de águas foi o Ato Institucional nº 5, promulgado no fim de 1968.

Uma 'segunda geração' de ativistas políticos perseguidos pode ser identificada a partir de 1969, quando o recrudescimento do regime coincidiu com o surgimento de novas organizações revolucionárias, alimentadas pelas novas gerações, que inventavam novas formas de combater o governo vigente. A esquerda, agora sem possibilidade de trabalho "de massas", havia assumido a clandestinidade e desenvolvia a luta através das organizações partidárias que surgiam de subdivisões intermináveis das antigas organizações. Do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em crise, várias organizações novas apareceram, como a Aliança Libertadora Nacional (ALN), o Partido Comunista Brasileiro (PCBR), o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) e o Movimento de Libertação do Proletariado (MOLIPO), já em 1971, como subdivisão de um "racha" anterior. Do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que se havia separado do PCB em 1962, viu-se nascer a Ala Vermelha, ainda em 1966, e posteriormente o Partido Comunista Revolucionário (PCR), o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), o MRM, OP-COR.

O movimento estudantil, cuja liderança política principal era a AP (Ação Popular), também se fragmentou. Uma fração irá constituir a Ação Popular Marxista-Leninista (APML), enquanto outro grupo ingressará no PCdoB e o restante se pulverizará por diversas outras siglas clandestinas.

Outras organizações surgidas nessa conjuntura ou que ganharam destaque pela ausência de outros canais de luta foram: PRT, Política Operária (POLOP), Comando de Libertação Nacional (COLINA), Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), PORT, FBT, OSI, Liga Operária, POC, MNR, MR-26, MR-21, MAR, FLN, RAN3.

A luta armada, a guerrilha urbana, as ousadas ações, como os sequestros de embaixadores para trocar por prisioneiros políticos, descortinaram o conflito, 'escancarou a ditadura' (Gaspari, 2002b).

O Estado armava-se para essa nova fase de combate. A crescente importância do SNI, com a consequente criação da Operação Bandeirantes - OBAN, fruto do amadurecimento das tecnologias de repressão, que contava com integrantes do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Política Estadual, Departamento de Polícia Federal, Polícia Civil, entre outros, obteve resultados tão significativos no combate à chamada subversão, que serviu de modelo para a implantação, em escala nacional, de organismo oficial - sob a sigla DOI-CODI -Destacamento de Operações e Informações - Centro de Operações de Defesa Interna. Esses Organismos, segundo já se apurou, visavam prender, torturar e matar opositores políticos (Tortura Nunca Mais, 1995).

Nesse período, milhares de opositores ao regime foram presos, mortos e torturados. Alguns foram banidos, trocados por embaixadores sequestrados - estratégia bastante utilizada - outros fugiram como puderam. O Brasil vivia a contradição do milagre econômico. No frenesi das bolsas de valores, no poder de compra impulsionando o consumo, com a classe média trocando de carro todo ano e enchendo o tanque com gasolina azul, a propaganda oficial pregava o otimismo enquanto massacrava eficazmente o que restava de resistência ao regime.

Em 1970, enquanto Pelé encantava o mundo com seu futebol e a classe média vivia os dias felizes do milagre econômico, que lhe permitia uma prosperidade econômica ímpar, uma série de lideranças de esquerda sofria os horrores da época considerada a mais sinistra da ditadura.

Cada vez mais isolada, a esquerda se subdividia, "rachava" cada vez mais. As cisões que marcaram a história da esquerda armada funcionaram como um processo de separação de graus de radicalismo. A cada divisão correspondia o nascimento de uma nova sigla, quase sempre composta por um grupo extremado de vinte a trinta pessoas (Gaspari, 2002a).

Foi nesse período, principalmente após 1970, que o maior contingente de ativistas políticos deixou o país clandestinamente, fugindo das consequências da derrota, abandonando uma luta que começava a se desenhar para alguns como perdida. O desmantelamento das diversas organizações de esquerda, o aniquilamento das principais lideranças, o isolamento político da esquerda em um país eufórico com o milagre econômico levou centenas de pessoas a "abandonar (momentaneamente) a luta". Uma jovem geração, nascida nos anos 40, principalmente formada por ativistas oriundos do movimento estudantil partiu para o Chile, Argentina, Peru, Uruguai, França, Inglaterra, Suécia e Argélia. Na onda do slogan "Brasil, ame-o ou deixe-o", tiveram que deixá-lo e fugir para onde pudessem, sem planejamento, sem projeto de futuro.

O fluxo desdobrou-se nos anos seguintes, de diferentes maneiras, mas ainda recorrendo bastante à fronteira, uma via relativamente fácil para o clandestino, de posse de carteira de identidade falsa ou verdadeira. Obter passaporte, para a maioria, seria impossível ou arriscado. Os "esquemas" de saída, ou seja, a rede de militantes e simpatizantes ajudava, dando informações, "dicas", fornecendo documentos falsos, conseguindo algum dinheiro, casas ou "aparelhos" - em geral, no sul do país - disponíveis para abrigar o militante por uma ou duas noites.

A opção de sair para o exílio foi inicialmente malvista por diversos militantes, que insistiam na luta no país. Aos poucos, com suas organizações esfaceladas, sair poderia ser uma forma de continuar a luta, acreditavam. O exílio seria apenas o tempo necessário para reorganizar a volta, seria por um curtíssimo tempo. A grande maioria que saiu não conseguiu cumprir essa agenda e o exílio se tornou, para muitos, um longo tempo congelado, com sentimentos contraditórios de culpa e olhares longínquos. Uma diversidade de relatos aponta muitas e diferentes perspectivas sobre o que se considera exílio.

Definir quando começa o exílio, ou até mesmo quem de fato esteve exilado, não é tarefa das mais fáceis. Um regime totalitário, como foi o brasileiro naquele período, provocou a saída de um amplo e diversificado grupo de pessoas: políticos, artistas, líderes estudantis, amantes da democracia, perseguidos, não perseguidos, enfim, um contingente variado.

Exilado, banido, trocado, fugitivo, refugiado de guerra: muitas são as categorias utilizadas para designar esse sujeito que deixa forçadamente seu país de origem e permanece durante um período longe de casa. A iminência da morte, o não poder voltar, o estar fora contra a sua vontade - diferente do migrante, que deixou seu espaço principalmente por razões econômicas -, atravessam as diversas histórias de exílio. Sem planejamento, a identidade de fugitivo parecia estar presente em muitas histórias. A partida não escolhida, a dívida moral com os que tinham permanecido, o empenho em não parecer "desbundado"4 nem que havia abandonado a "causa", produziram consequências psicológicas em diversos exilados em suas jornadas (Rollemberg, 1999).

Se, em um primeiro momento, falando especificamente desta segunda geração, pós-AI-5, a saída parecia um breve estágio antes do retorno à luta, a ilusão sobre uma volta imediata se desfez para muitos por volta de 1973. A referência democrática latino-americana, o governo de Allende no Chile foi deposto violentamente e, junto com ele, caem os sonhos de resistência dos exilados. Um grande número de brasileiros lá exilados teve de partir às pressas para outro destino, uma nova e sombria fase do exílio duraria longos anos para a maioria, que só pôde retornar a partir de 1979, com a Lei da Anistia.

A Lei da Anistia, em 1979, mesmo com todas as limitações impostas, trazia de volta ao Brasil aqueles que esperavam há anos no exílio, produzindo um sentido profundamente simbólico de liberdade e reabertura, que marcou boa parte da década seguinte. A redemocratização do Brasil estava em curso. Famosos (Luís Carlos Prestes, Fernando Gabeira, Apolônio de Carvalho, Arraes, Brizola, Herbert de Souza) e anônimos voltavam ao Brasil, trazendo suas histórias e suas memórias5. Muitas crianças que haviam saído com seus pais retornavam, agora, adolescentes.

A situação do exilado é complexa. Vivendo entre dois (muitas vezes mais) países, duas culturas, duas fidelidades, dois pertencimentos. Isso se sentiu já no problema da língua, que retornará a partir de nossas entrevistas.

Dividido entre culturas diferentes, os exilados tornavam-se apátridas. Juridicamente, apátrida é aquele que não tem governo para protegê-lo. Em terras estranhas, sem emprego, nem sempre com algum apoio local, o exilado teve que tentar reconstruir a sua vida no exterior enquanto esperava.

Diversas narrativas sobre memória de exilados, autobiografias e romances referem-se a esse sentimento de incerteza, que aumentava ainda mais quando se tratava de levar consigo a família para essa jornada6.

No exílio misturaram-se assim, entre outras, as sensações de derrota e impotência. O exilado esteve sempre aguardando o momento da volta, acompanhando atentamente os desdobramentos políticos no seu país de origem. Sentimentos ambivalentes o atormentaram: amar e, até certo ponto, idealizar o país, mas ao mesmo tempo saber que esse país não o quer lá.

O exílio não era apenas uma decisão pessoal, fruto da avaliação de militantes individuais contra o Regime Militar, mas resultado de todo um contexto institucional que foi, progressivamente, tornando impossível a vida comum dos opositores.

 

Memória e memória social

Para melhor entender o contexto no qual se produzem os discursos dos filhos dos exilados durante o Regime Militar, torna-se necessário percorrer e dar conta de alguns obstáculos conceituais relativos à noção de "memória social". A amplitude da produção sobre essa categoria exige não só um esforço de síntese na apresentação, mas também escolhas.

Segundo a síntese proposta por Celso Sá (2005), cinco são os princípios unificadores da memória social: a) a memória tem um caráter construtivo, e não meramente reprodutivo; b) em última análise, são as pessoas que se lembram e se esquecem; c) a memória depende da interação e da comunicação sociais; d) memória e pensamento sociais estão intrinsecamente associados; e) motivação e sentimento desempenham um papel na construção da memória (Sá, 2005).

Especificando cada um desses princípios unificadores temos, segundo Sá, alguns! elementos centrais: !

a) Ao focalizar o passado, através da memória das pessoas ou da investigação de registros deixados por esse passado, não se está a retratá-lo fielmente, mas sim a descrever-lhe uma versão contemporânea.

b) São as pessoas que se lembram, embora a forma e o conteúdo de suas memórias sejam determinados por marcos sociais e por recursos culturalmente produzidos, dentre os quais a linguagem.

c) Para Connerton, muito do que Halbwachs chamava de memória coletiva pode ser explicado como fenômenos de comunicação. Nas releituras atuais de Halbwachs, por diversos autores, o princípio da construção social da memória tem pressuposto a interação e a comunicação como processos construtores. A interação e a comunicação contemporâneas fundamentam o argumento da reconstrução do passado em função das necessidades e interesses do presente.

d) O que é lembrado do passado está sempre mesclado com aquilo que se sabe sobre ele, tornando-se mesmo indistinguíveis. Saber que certos fatos aconteceram - ou aprendê-los ou concluir que eles têm de ter acontecido - basta para sua incorporação à memória das pessoas e grupos. As memórias aparecem nas representações sociais, como uma forma de pensamento social, através da ancoragem de experiências novas em conhecimentos preexistentes. A abordagem estrutural das representações sociais sustenta que a história do grupo e a memória coletiva desempenham um papel na constituição do sistema central de uma representação.

e) Motivos e sentimentos são responsáveis em boa parte pelo conteúdo da memória social. As determinações sócio-histórico-culturais da memória operam em grande parte pela modelação de motivos e sentimentos comuns em um conjunto social. O público leigo, a arte e a ficção científica associam fortemente a memória a experiências afetivas.

Por essa via, percebe-se que o conceito de memória social é uma espécie de guarda-chuva conceitual, que designa o conjunto enorme das instâncias sociais da memória. Para buscar esmiuçar as diferentes formas em que a chamada memória social se manifesta, encontramos interessante proposição de Celso Sá, o qual, mesmo sem esperar esgotar o assunto e tendo um inegável mérito analítico, apresenta a proposta de um conjunto de diferentes formas de memória. Todas elas compõem esse enorme continente chamado memória social. Pela dimensão, forma e abrangência, diferenciam-se, no entanto, umas das outras. Propõe-se, então, que se distingam entre sete diferentes instâncias da memória social: as memórias pessoais, as memórias comuns, as memórias coletivas, as memórias históricas (que, por sua vez, se distinguem em memórias históricas documentais e memórias históricas orais), as memórias práticas e as memórias públicas (Sá, 2005).

Pela proposição do autor, todas essas memórias, coexistem na construção das memórias das pessoas e das sociedades. Ao analisarmos memórias específicas podemos constatar, todavia, que ela se aproxima mais de um tipo de memória do que de outro. Há memórias que claramente podem ser avaliadas como sendo memórias públicas, enquanto outras podem ser interpretadas como memórias coletivas (Sá, 2005).

Enfocaremos apenas aquelas instâncias que nos parecem apropriadas a auxiliar no tratamento do discurso dos filhos de exilados que abordaremos em seguida. Estas são, em nossa opinião, as memórias pessoais, as memórias comuns e as memórias históricas orais.

As memórias pessoais apresentam-se a partir de discursos pretensamente singulares, particulares, a respeito de histórias de vida, e elementos privados das existências, porém são também socialmente construídas:

Memórias pessoais não são meramente individuais, mas sociais, porque socialmente construídas. (...) O termo "pessoais" implica uma dimensão social. A "pessoa" é produto de processos de socialização, desempenha papéis sociais e é dotada de uma identidade construída através da interação social. (...) As memórias pessoais são sociais, mas é ao passado da pessoa que elas são referidas, mesmo se envolvem fatos sociais, culturais ou históricos de que ela tenha participado ou ouvido falar. Em termos de pesquisa empírica, memórias pessoais tendem a ser estudadas sob o rótulo de memórias autobiográficas. Incluem-se neste domínio de pesquisa as histórias de vida, que supõem um esforço de reconstrução global e completo da memória pessoal (Sá, 2005, p. 74).

Para dar conta das semelhanças circunstanciais entre memórias pessoais de um conjunto de sujeitos, mas que não chegam a formar memórias coletivas (ou seja, mais amplamente compartilhadas), Celso Sá toma emprestado de Jodlowski7 o conceito de

memórias comuns:

As memórias comuns podem ser vistas, portanto, como uma coleção de numerosas memórias pessoais acerca de um mesmo objeto, que se desenvolveram independente [sic] umas das outras, por força de uma participação comum em um dado período histórico, em uma dada configuração cultural ou em um dado estrato social. Por terem sido expostas aos mesmos fatos, as mesmas informações, aos mesmos gostos, etc. as pessoas guardariam deles aproximadamente a mesma lembrança (Sá, 2005, p. 74-75).

Evidentemente, teremos que desenvolver alguma cautela para evitar soluções fáceis, que enquadrem o discurso dos filhos de exilados em modelagens teóricas preconcebidas, o que não seria obviamente aprovado pelo autor que apresenta o conceito. Há uma provável distinção entre a abrangência conceitual de memórias comuns - e a sua possibilidade inclusive de ser utilizada para percorrer uma análise geracional - e nosso limitado grupo estudado. Parece-nos apropriado, no entanto, que nos utilizemos dessa proposta de compartilhamento de discursos singulares, de memórias pessoais articuladas em memórias comuns, a qual, como vimos, possui uma rica dimensão social.

O esforço de compreensão do lugar que ocupam, na vida de cada um dos entrevistados, a memória do exílio e a do retorno, fez com que transitássemos pelas memórias de vida como um todo, fato que fica claro no deambular entre o ontem e o hoje, para além dos marcos temporais que procuramos estabelecer em nosso instrumento de aferição (as entrevistas).

As memórias históricas orais fazem fronteira com a história que não foi escrita, englobando os fenômenos de memória que constituem as fontes não documentais com que lida a história oral. O psicólogo social, à diferença do historiador, não está comprometido com a "verdade histórica", mas apenas com o estudo do processo e das circunstâncias pelos quais as memórias são construídas, reconstruídas e atualizadas por conjuntos sociais geográfico, cultural ou politicamente circunscritos. A memória oral é uma "memória da história" que, por contar com escassos documentos sobre os quais se apoiar ou por repudiar aqueles porventura existentes, vale-se apenas de recursos não exteriorizados, como a rememoração constante e a transmissão oral (Sá, 2005, p. 75).

Aqui, evidentemente, as memórias dos filhos de exilados transitam com desenvoltura. Se relembrarmos, em adendo, o papel que Pollak (1989) atribui às memórias orais como capazes de subverter e lançar outras versões sobre as memórias oficiais, veremos o potencial empírico que elas apresentam no sentido de lançar novas luzes sobre os subterrâneos do Regime Militar de 1964.

 

As memórias dos filhos da causa: Memória, compromisso e exílio

Todas as entrevistas foram carregadas de emoções muito fortes, dificuldades de articular a narrativa e ansiedade. Falamos, portanto, de um lugar situado e comprometido. Queremos também procurar encontrar aquele mesmo lugar proposto por Sarlo (2005) entre os que sofreram a repressão e os que se propuseram representá-la8.

 

 

Em nenhum momento procuramos retratar o passado "tal como ele aconteceu". É verdade que aos depoimentos poderia ter agregado um esforço de reconstituição histórica via jornais, textos e livros que foram escritos sobre o período. Mesmo que tal esforço enriquecesse o trabalho desde uma perspectiva histórica, não era esse nosso objetivo. Ao contrário, interessa não aquilo que foi "de fato vivido", mas como hoje se lembram do que foi vivido naquele período.

Estamos lidando com a gestão da memória sobre o Regime Militar no que ela traz como consequência sobre os filhos da causa, bem como o lugar que estes ocupam nesta história. Ela é uma memória ao mesmo tempo política e social, podendo-se falar em uma política da memória. Essa política da memória possui, a par de suas opções metodológicas (a opção pela história oral e pelo qualitativo, p. ex.), implicações políticas relacionadas à gestão da memória como recurso central dos poderes contemporâneos. Procura traçar histórias alternativas e revisionistas, plurais9.

Passados trinta anos do fim do Regime Militar, a memória sobre aquele período vê-se submetida a diferentes disputas e tensões. Em termos mais amplos, o Regime Militar é hoje identificado como ilegítimo e autoritário, tendo cometido excessos de diversos tipos, recorrido à tortura e ao abuso aos direitos humanos10. Parte pouco expressiva de grupos militares e conservadores de diversos matizes procuram manter viva a visão segundo a qual o Regime Militar foi uma reação natural e saudável ao regime comunista que se iria instalar a partir do aprofundamento das "reformas de base" propostas pelo presidente eleito João Goulart.

O lugar a partir do qual falam nossos entrevistados é muito peculiar. Para muitos deles, o exílio acontece, na prática, quando retornam ao Brasil. Afinal, vários foram muito novos para outros países e quase não têm lembranças do Brasil, antes da saída. Retornaremos a essa questão mais tarde. Interessa caracterizar a situação de exílio na qual viviam nossos entrevistados. Seus pais decidiram sair do país em virtude da falta de opções e alternativas políticas dignas e válidas. Exílio não é, portanto, um lugar físico, embora muitas vezes se confunda com ele.

Para alguns, o exílio já começa com o Golpe. É assim que Herbert de Souza (o Betinho) e Francisco Julião (líder e organizador das Ligas Camponesas) dizem que quem necessita se esconder é porque já perdeu a liberdade. O exílio é a perda de liberdade, dentro ou fora do país (Rollemberg, 1999):

O exílio esteve longe de ser uma experiência homogênea. As vivências foram as mais variadas, a começar pelo tipo de exilado. Houve os atingidos pelo banimento; houve quem decidiu partir, às vezes até com documentação legal, por rejeitar o clima em que se vivia no país; houve quem, pessoalmente, não era alvo da polícia política, mas se exilou ao acompanhar o cônjuge ou os pais; houve os diretamente perseguidos, envolvidos, uns mais, outros menos, no confronto com o regime militar; houve quem foi morar no exterior por outras razões que não políticas e, através do contato com exilados, integrou-se às campanhas de denúncia da ditadura e já não podiam voltar com tanta facilidade. Os casos são inúmeros. Neste universo tão diverso, são todos exilados. Cairíamos em um vazio inútil se pretendêssemos estabelecer quem era e quem não era, estrito senso, exilado (Rollemberg, 1999, p. 52).

Duas são, no entanto, as principais características do exílio, que o distinguem de situações análogas (por exemplo, a do migrante): o caráter provisório e descontínuo da experiência e o fato de ele derivar da derrota de um projeto sociopolítico que envolve diretamente a ação daquele indivíduo (Rollemberg, 1999).

 

A repressão, a saída do Brasil e os preparativos para o exílio

Dos dezoito entrevistados, catorze foram para o exílio após 1968, quando o regime se tornou ainda mais fechado a partir do AI-5. Três deles tiveram os pais diretamente envolvidos na luta armada. Os outros quinze tiveram diferentes níveis de envolvimento com a resistência ao Regime Militar.

A saída do país era feita sempre com a expectativa de um retorno breve. Essas expectativas, como sabemos, foram-se frustrando. Para alguns de nossos filhos da causa, o retorno acontecerá somente após o fim do regime militar.

Aqueles que tiveram os pais diretamente envolvidos na luta armada sofreram consequências maiores por conta dos traumas derivados da brutal violência do Estado. Dois entrevistados, irmãos, presenciaram - o menino com oito anos, a menina com dois - o pai ser assassinado na sua frente, e têm lembranças nítidas do que aconteceu:

E aí é onde a gente cai, a polícia cerca a casa, eles inventaram um pretexto dizendo que tavam [sic] procurando o meu irmão e aí é onde ocorre o tiroteio com a polícia, meu pai tomba porque pra ele seria muito complicado né, com toda aquela situação cair na mão da polícia, ele sempre dizia que nunca ia ser torturado né, nunca ia deixar ser, que ia ser uma situação muito ruim pra ele, ele acabou tombando nessa hora e a gente acabou vendo todo esse desenlace horroroso, então pra criança é muito marcante isso, então eu acho que essas vivências, talvez esse último lance é o mais marcante pra mim Você estava com que idade? Eu estava com 8 anos mais ou menos, e aí nesse dia foi muito violento o negócio, pois alguns militares achavam que deviam matar a gente ali mesmo. Era uma pequena tropa... acho que uns dez policiais com armas longas, então uns achavam que deviam matar a gente ali mesmo, outros achavam que não, que devia tirar informação, torturar a gente, inclusive uma coisa que lembro naquele dia como a gente não conseguia frequentar mais as escolas, quem estava nos alfabetizando era minha mãe, naquele dia a gente tava [sic] sentado aprendendo a ler, ela tava... [sic] e é quando ocorre o cerco, muito dramático pra gente tudo isso, você não consegue mais frequentar a escola e no dia que você está tentando se alfabetizar tem um fato desse [sic], e aí, bom aí ficou uma praça de guerra, eles cercaram toda a região, o exército cercou toda a região, é um lugar que chama Atibaia, Jardim das Cerejeiras, era um lugar muito pobre, eram casas um pouco esparsas, alguns dos vizinhos que chegaram a travar relações com a gente massacrados, torturados, não tinham nada a ver com o peixe, nós ficamos sabendo, porque anos depois a gente começou a pesquisar onde que meu pai tá enterrado, a gente não sabe até hoje onde que ele foi enterrado, e são vivências marcantes, o exército cercou a casa, depois várias vezes me levaram lá na casa; nós tínhamos um buraco onde jogava-se lixo [sic], e eles achavam que a gente escondia armas ali, além das que já tinham lá, porque quando eles cercaram eles levaram os caminhões pra poder tirar todo o material bélico dali né, muitos, fuzil FAL, metralhadoras, munição (R1, 25/06/2008).

Dentre os dezoito entrevistados, dez se lembram de algum tipo de preparativo para a saída. Do total, doze se lembram do dia da saída, apesar de apenas seis deles terem mais do que seis anos de idade nesse dia. Esse último dado evidencia quanto o dia da saída foi importante, e carregado de significados afetivos e mnemônicos. Os outros não se recordam da saída do país:

Os homens, que montaram e fizeram funcionar essa máquina, souberam, como poucos, produzir e jogar com a culpabilização maciça da sociedade. Em nome do ideal de ordem e progresso, disseminaram a culpa por toda a parte: culpa pelo terror que se instalou no país, por sujar a imagem do Brasil no exterior, por caluniar as forças armadas, por não colaborar com o governo para acabar com a repressão; culpa por fazer sofrer os familiares, por não ter sabido criar os filhos; culpa por não ter suportado as torturas, denunciando os companheiros e até os cônjuges, por ter conseguido sobreviver quando outros foram mortos; culpa por ter cedido a desejos pequeno-burgueses de abandonar a clandestinidade e viver uma vida normal (...). A intelligentsia do aparelho repressivo a serviço do capitalismo selvagem que aqui se instalou soube não só espalhar o terror, como também aliciar parcelas significativas da sociedade, produzindo um tipo de subjetividade culpada e culpabilizadora, equiparada tanto para assumir uma cumplicidade em crimes dos quais não participara quanto para responder aos imperativos do modo de produção capitalístico (Kolker, 2002, p. 181).

A instabilidade do momento, a insegurança entre os adultos, a "estranheza" do ambiente era algo percebido pelas crianças desde cedo. As entrevistas permitiram que se recuperassem as situações traumáticas, revisitando as experiências e situações vividas:

(...) o que eu notava? O que eu sabia? Uma grande preocupação dos meus pais em todo e qualquer momento com conversas telefônicas, eu notava uma certa preocupação com as visitas que chegavam em casa eventualmente, tem gente que chegava e você sentia um certo clima de nervosismo, anos depois eu vim a saber que muitas pessoas que eu conheci por determinado nome na verdade tinham outro nome, então o cara que eu chamei durante toda a minha infância Pedro, na verdade eu descubro que o nome dele era Afonso, já adulto (R16, 11/09/2008).

A violência do Estado recaía sobre os adultos, ativistas convictos e seus filhos, crianças eram obrigadas a "entender para sobreviver", como disse uma entrevistada. Precocemente eram submetidos a situações extremas como afastamento dos pais, partida forçada, desterritorialização e muitas vezes violência direta. O exílio marcou essas crianças profundamente.

Uma relação quase simbiótica entre o destino dos pais e o destino dos filhos tem também raízes sociais mais amplas: o destino dos pais e dos filhos confundiu-se fortemente, a escolha que os pais fizeram determinou, num sentido mais rigoroso do que o ordinário, o leque de possibilidades dos filhos. Essa relação apareceu de modo sintomático. R3, nossa entrevistada, estava na barriga da mãe, em 1970, quando esta foi presa. Como a mãe era militante da Juventude Operária Católica (JOC), uma organização internacional, iniciou-se uma campanha pela libertação da mulher grávida. R3 então contou:

Minha mãe foi presa, em 1970, grávida, foi solta porque houve uma ampla movimentação internacional, se fizeram manifestações, a JOC né, que é um movimento internacional e tem sede na Bélgica, fez movimento na Bélgica e não sei se em outros lugares, com abaixo-assinado, enviaram caixas de roupa que não chegaram, claro, mas as pessoas contam que tiveram campanha, que enviaram roupas pro neném, que não sei o que, porque tinha uma jovem grávida presa pela ditadura militar e que era da coordenação nacional da JOC aqui no Brasil, então a gente acredita que isso tenha dado uma certa proteção no sentido da integridade física dela, e minha também, porque de certa forma os militares sabiam que estavam sendo vigiados a nível internacional [sic], se deram conta de que não era uma pessoa solta de um movimento local, tinha uma rede internacional que tava [sic] fazendo pressão, então eu estava presa e ela também (R3, 14/08/2008).

Evidencia-se que os filhos da causa carregam um passado que marca fortemente o seu presente. A história de fuga dos pais, a decisão de sair do país, os preparativos para a saída, não eram preparados ou planejados, respondendo antes aos imponderáveis do regime e suas sucessivas guinadas:

Tava [sic] morando em Brasília. Eu lembro até que eu entendi que não ia ter meu aniversário, eu sou de dois de abril, o golpe foi dia primeiro de Abril. Dia 31 pro dia primeiro. Não, foi dia primeiro, dia 31 depois que eles se deram conta que eles fizeram 31, mas o golpe mesmo foi dia primeiro. Então meu pai já tinha mandado a gente para São Paulo, e eu lembro de todo mundo [sic] muito nervoso (R14, 04/08/2008).

R14 tem lembranças do Golpe de 1964, quando tinha sete anos de idade. A proximidade entre sua data de aniversário e o dia do Golpe tornou inseparáveis estes acontecimentos em sua memória. Ele também se lembra (isso foi muito recorrente) que "todo mundo estava nervoso" e da saída de Brasília e ida para São Paulo (de onde é sua família) que iniciou os preparativos para a saída do país um ano depois:

Estudávamos aqui no Souza Leão, no Jardim Botânico, eu e minha irmã, e do dia para a noite falaram vamos pra Recife, porque a família de meus avôs [sic] era originariamente de Recife (...) então fomos pra Recife, tínhamos família lá e tal, não tava [sic] muito claro porque a gente ia pra Recife, não era [sic] férias não era nada, mas vamos pra Recife (R10, 22/07/2008).

Mais uma vez, quebra da rotina e insegurança marcam a memória e as recordações. As mudanças acontecem "do dia para a noite". No caso do testemunho acima, trata-se do ano de 1969, pós-fechamento do Regime Militar. O dia da saída é, junto com o dia do retorno ao Brasil, o de maiores lembranças, apesar da tenra idade dos que foram. As lembranças do dia da saída e da chegada ao país de exílio estão juntas numa mesma frase em quase todos os nossos interlocutores, com exceção de dois.

Não é demais retomar a dificuldade da decisão de ir para o exílio. Para muitos equivalia ao abandono da causa, ao esmorecimento da "luta". Para outros, no entanto, foi mesmo a possibilidade de continuar vivos. Esse é o caso daqueles comprometidos com a luta armada contra o Regime Militar e que foram torturados e/ou tiveram parentes torturados e assassinados:

Quando nós chegamos no avião [sic] tinha um companheiro sentado, que era o Mário Japa, (...) e torturaram muito o cara, tanto é que ele entrou escondido pela parte de trás do avião para a imprensa não ver porque tinha sido muito torturado e quando nós entramos ele tava [sic] sentadinho ali, nunca me esqueço, algemado, no banco né, as marcas horrorosas, e aí chegaram os outros companheiros, chegou a madre, também que me marcou muito né, uma pessoa muito doce, uma religiosa que foi muito torturada também, aliás, foi um divisor de águas né, porque imagina uma religiosa sendo torturada, você lembra que a igreja inicialmente apoiou o golpe, aquele negócio da marcha da família com Deus, e depois com o tempo eles foram vendo que não era bem isso que eles estavam esperando, os próprios religiosos foram torturados e a irmã Maurina foi um caso emblemático, ajudou muito minha mãe a passar por aquela circunstância, e aí nós saímos do Brasil, era um Caravelle né, e nós fomos parar no México, me lembro muito da tensão do comissário de bordo, uma pessoa muito atenciosa, que viu na circunstância que a gente tava [sic] passando, pegou um saco de frutas e deu pra minha mãe, 'Desejo que você se recupere' e tal, e nós chegamos no México [sic]" (R2, 25/06/2008).

A maioria dos entrevistados, no entanto, pôde fugir pelos próprios meios, e o fizeram sozinhos, com apoio de familiares ou, mais frequentemente, com o apoio de redes de militantes e/ou de solidariedade política:

O início do chamado exílio dos meus pais, na verdade meu pai é convidado a trabalhar na rádio Havana Cuba, então é viagem clandestina, uma viagem secreta, porque não poderia ser público que gente ia pra Cuba, e a gente sai daqui, e vai pra Europa, passa uns três quatro meses em Paris, e vai pra Praga, porque de Praga é que se ia. Eu lembro que a viagem de Praga a Havana foi num Electra ou num avião muito parecido com um Electra, turbo hélice, interminável algo como 48, 58, 68 horas num avião, algo como uma vida inteira num avião, (...) então eu lembro que essa viagem, a gente foi pra Cuba (R8, 06/07/2008).

E eu lembro de passar [sic] pelos Andes direitinho, era verão, então, pouca neve, parecia, onde tinha neve parecia que tava pintado [sic], achei tão gozado aquilo, então eu lembro direitinho, descer, aí nós fomos. Isso aí foi 64? Não, nós fomos em 65 porque minha mãe tava grávida [sic], então nós ficamos um ano. Aí, nós fomos comer, se não me engano, na casa do Fernando Henrique, e eu me lembro de entrar num carrão gigantesco, nunca tinha visto um carro daquele tamanho, que era um carro que tava na ONU [sic] (R6, 04/10/2007).

À época dos acontecimentos alguns dos entrevistados eram muito novos, como já apontamos. Não podiam perceber claramente o que ocorria, apesar da desconfiança:

Vamos pra Europa, esse fim de semana a gente vai pra Europa, vamos pra França encontrar o tio Sílvio, também sem muita explicação, eu tava [sic] achando um barato a ideia de atravessar o Atlântico, de cruzar o Atlântico, nada notava e só fui notando ao longo dos dias uma certa tristeza geral nas pessoas, minha mãe com muitos irmãos, os próximos de meu pai também, enfim, chegado o dia então fomos para o aeroporto Internacional de Guararapes em Recife, era de noite, o voo que sairia era um voo Recife/Paris com escala em Dakar, na África, que na época se fazia esta escala no Senegal, embarca todo mundo no avião, quando tá [sic] todo mundo embarcado pronto pra ir, eu sinto um certo alívio depois de todo o chororô da saída [sic], as pessoas se abraçando e chorando. Todos já embarcados no avião, tem que descer todo mundo, aí eu noto uma apreensão, não sei quê, e depois ficamos sabendo (que) na verdade foi só um problema técnico mas (passamos) este período de fato que deve ter durado uma hora e pouco, fora do avião, voltando a brincar no saguão com os primos (R10, 22/07/2008. Seis anos à época dessa viagem).

Então nós fizemos uma viagem de navio de quinze dias e que eu também me lembro que [sic] eu me diverti à beça, fiquei amiga do navio inteiro, me lembro o que [sic] minha avó conta porque eu não tenho lembrança, minha mãe conta que João tinha três meses, era um bebê, a Sílvia minha irmã de três anos ficou enjoada a viagem inteira então deu trabalho e eu e minha irmã mais velha a gente ficou... fizemos amizades no navio, o navio é cheio de atividades, tem jogos, não sei quê, foi uma viagem legal, e aí nós chegamos na França [sic] (R5, 16/10/2008).

(...) e aí a gente entrou no avião e aí o avião não saiu, primeiro teve isso, o avião teve um defeito técnico, então a minha mãe ficou em pane: 'Não, me pegaram. Pararam o avião para a gente, né... daqui eu vou sair presa...', então ela ficou... a gente desceu do avião, defeito técnico só que aí era defeito técnico de fato, e aí eu encontrei a minha tia, tava [sic] chorando... porque tava [sic] todo mundo meio se contendo um pouco antes da gente sair até um pouco por causa dessa coisa das crianças (...) na hora que a gente saiu, tava [sic] todo mundo ainda ali, a gente viu uma situação mais tensa ainda, então era assim, era legal, não era legal, era estranho, eu tinha, nessa época que meu pai saiu pela primeira vez, eu tive, e o irmão dele também tinha saído e não voltou pro Brasil, ficou na França, então tinha todo esse negócio, e aí tá, a gente foi, eu fiz cocô na calça em algum momento dessa viagem, me lembro disso (...) pô imagina, chegou no aeroporto de Paris toda cagada, situação meio esquisita, e aí teve um choque muito grande da chegada (R15, 11/09/2008. À época desse episódio, R15 tinha sete anos).

Por mais que os entrevistados procurem, hoje, ressignificar as experiências vividas àquela época em função das possibilidades globais que o exílio, o retorno ao Brasil e o fim do Regime Militar lhes permitiram, não há como deixar de registrar as diversas situações traumáticas a que foram submetidos. Seus pais eram perseguidos políticos, fugidos do país: a confusão da saída, nem sempre explicada ou claramente entendida em função da precocidade de idade, a quebra da rotina, principalmente a escolar, a ida para outro país, o choque da chegada.

 

Os filhos da causa avaliam o exílio

Fazer um juízo geral sobre a experiência do exílio é, para os filhos da causa, colocar em ação memórias de diferentes momentos: o acontecido e a avaliação a posteriori.

Afastados de seu país ainda muito pequenos, os filhos da causa começaram a ter, em termos gerais, lembranças mais nítidas a partir da vivência no exterior. Apresenta-se aí uma dificuldade relacionada ao tema da memória social de uma maneira mais ampla: o da construção da identidade pessoal e social. Para ambas, a memória é um elemento-chave, na medida em que permite o sentido de coerência, de permanência, seja de valores, seja de escolhas afetivas, odores e referências geográficas. A tensão entre o ser brasileiro, mas ter uma forte vivência em outros países, em ter apego às coisas de um lugar estrangeiro, levou a que praticamente todos os filhos da causa entrevistados retornassem, muitos anos depois, aos locais onde estiveram no período de exílio.

Esse esforço pode ser entendido como uma tentativa de juntar, idealmente, estes dois tempos, o anterior e o atual, e de permitir que o passado tome um lugar mais fixo na trajetória atual.

Trata-se de uma espécie de peregrinação da memória, não só geográfica, mas também sentimental. Diversos autores enfatizaram o papel dos lugares como âncoras da memória. Muitos dos filhos da causa referem-se a esse retorno ao local do exílio com uma sensação de plenitude, de restauração de ao menos parte daquilo que tinha sido perdido:

Quando eu fiz quinze anos de idade eles me deram de presente, e aí sim eu soube uma parte da história, me deram de presente uma viagem que refiz o percurso que nós fizemos no exílio, então quando eu fiz quinze anos nós fomos os quatro até Curitiba de carro com meu pai, ficamos na casa da fulana e do, como é que é o nome do marido dela?, esqueci agora, bom, da fulana que tinha acolhido a gente há quase... quer dizer, quinze anos atrás, e dali eu e minha mãe fomos para o Paraguai, ficar na casa da mesma família que tinha nos acolhido também na época do exílio, eu passei lá um tempo, então nessa época, com quinze anos de idade, foi o momento em que eles contaram um pouco pra mim essa história que já tinha de alguma maneira sido desvendada mas não tinha montado o quebra-cabeça, mas sem dor nenhuma não tinha nisso nada de dramático de... sabe? Pelo contrário, era quase uma celebração, era uma celebração, da vida, do... então a gente foi até o Paraguai que não tinha dinheiro pra ir pra Bélgica, então nós fomos de ônibus até o Paraguai, e dali voltamos, mas, assim, foi muito bom, foi o único momento que eu me lembro que a gente realmente viveu isso, decidiu retomar esse processo. (R3, 14/08/2008).

Quando indagados acerca de pontos concretos de avaliação, tensões afloram novamente. Entre os entrevistados, apenas um faz uma avaliação mais negativa em relação ao exílio como um todo - também a opção de seus pais. Essa avaliação geral sobre o exílio está direta e indissociavelmente ligada ao juízo que os filhos da causa fazem da luta de seus pais. Essa opinião dissonante permite entrever pontos de diferença nos posicionamentos frente à gestão da memória dos filhos da causa. Afinal, as memórias compartilhadas também possuem pontos de desacordo acerca de experiências próximas:

Eu não tenho nenhuma dúvida, pra mim eu acho que o exílio me fez muito bem, eu acho muito difícil que eu tivesse a vida que eu tenho, seria outra vida, me fez muito bem (R15, 04/11/2007).

Se você me perguntasse se positivo ou negativo, eu diria positivo, quer dizer, eu acho que a experiência e tudo que eu ganhei com essa peculiaridade da nossa vida é um negócio que é incomparável. Eu me considero uma pessoa... sei lá, agraciada por ter.... podido viver o que eu vivi, não diria que refaria de novo, talvez se perguntasse se eu gostaria de refazer eu diria "não" muito mais pelos meus pais, pelo que eles devem ter passado do que por mim, uma criança de seis, sete anos, por eles, provavelmente, eu tenho certeza que eles diriam "não, de jeito nenhum", você sabe muito bem o quanto que isso representa... quando você vira pai.... a questão da proteção... que você quer proteger seu filho, aí você imagina... você aqui qualquer disturbiozinho qualquer anormalidade da vida, do dia a dia você já fica aflito pelos seus filhos né, se ele vai dormir tarde no dia seguinte ele não vai conseguir acordar cedo pra ir à escola, você fica aflito, imagina um grau de distúrbio que era... então eu imagino que pra eles... eles provavelmente falariam que não, talvez no final das contas, pra mim, eu sou o quarto né, eu já vou falar, mas no meu caso eu acho que eu tive uma oportunidade de aprendizado etc. e tal que sem dúvida nenhuma, tá [sic] ligada ao que eu sou hoje, eu me considero uma pessoa que tive algum sucesso... não é sucesso eu digo... sucesso pessoal na minha carreira, eu dou aula na USP, eu consegui o que eu queria, enfim, muito disso se deve certamente ao fato de eu tive essa vida, essa formação, então eu acho que, nesse aspecto eu me considero uma pessoa privilegiada, agora, tem que ver que acho que teve algumas peculiaridades, a gente teve muita sorte (R17, 09/11/2008).

(...) acho que no fundo, no fundo, o que eu quero dizer é que, com todo o sofrimento e com toda a coisa principalmente dos meus pais e tal, acabou sendo uma experiência benéfica para mim na minha vida, porque tenho certeza de que se a gente não tivesse sido exilado, uma família de classe média como eram meus pais assim e tal, a perspectiva de você ir morar fora, aprender uma língua, conhecer países, viajar para a Grécia, brincar de trenó na neve, passar um Réveillon e Natal com neve de fato e tal, não teria acontecido tão cedo na minha vida, talvez nunca viesse a acontecer, e a volta me deu algumas ferramentas que me servem até hoje, se eu sou jornalista hoje e tal, o francês que eu uso hoje é o mesmo francês que eu aprendi na infância e isso sem dúvida me ajudou também (R10, 12/09/2008).

Em apenas um caso, o de R8, encontramos uma postura crítica em relação à opção que os pais fizeram:

E a gente não tinha nada a ver com essa história, ninguém me perguntou jamais, e aí... um dos grandes equívocos porque ao mesmo tempo eles não se permitiam largar os filhos com os avós, porque assim, meu avô sempre quis, ele tinha uma estrutura afetiva enorme, deixava os filhos com os avós, fazia a revolução sozinho, não enche o saco, e eu hoje eu debito isso a uma mistura da causa, respeito um pouco o que eles fizeram e tal, mas eu acho que em grande parte isto se chama irresponsabilidade e imaturidade e loucura, você pegar uma criança de seis anos e ensinar ela a mentir sobre papel queimado, você não envolve uma criança nessa a não ser em última e extrema necessidade, ou seja, se tem com quem deixar, deixe, são as escolhas (R8, 06/07/2008).

Mais do que isso, R8 é enfático ao afirmar que foi submetido a uma espécie de "treinamento para paranoico". Com essa expressão, nosso entrevistado quer se referir aos diversos momentos em que foi instruído a mentir para evitar problemas com o aparelho repressivo:

E nos ensinava o que dizer caso a polícia chegasse, o que eu chamo de treinamento para paranoico, ensinar uma criança a dizer uma história que ela não sabe bem do que se trata, mas ele tem que contar uma outra coisa que não é aquilo que ele não entende né, aí ele decidiu que a gente tinha que morar em Cuba, mas não podia contar pra ninguém, então, o adolescente que ia morar em Cuba, sozinho, com o irmão, e que não podia falar isso pra ninguém, aí o curso de paranoia fase dois (R8, 06/07/2008).

Já vimos que vários outros filhos da causa também foram instruídos a mentir ou não falar. De fato, tratava-se de um imperativo de segurança num momento político em que as forças de repressão apelavam a todos os estratagemas. Ainda assim, essa opção não o impediu de considerar os aspectos positivos do que viveu:

... Só posso tirar o melhor que eu vivi disso; é a minha visão política de mundo, se eu sou um cara que faz um trabalho sobre fotografia, sempre ligado às questões de transformações em busca de um mundo melhor, mas ao mesmo tempo sou um cara sempre 100% flexível, sou um cara do tempo todo pensar 'e se eu estiver errado'? (R8, 06/07/2008).

Como toda memória é reconstituição, é relembrar aquilo que foi vivido e sentido, é, de alguma forma, realizar um processo de ressignificação em função do presente. Essa característica da memória é fundamental, uma vez que ela permite que, paradoxalmente, possamos agir sobre o passado (ao menos sobre o passado contado por nós) para transformar o presente. Ao revisitar o nosso próprio passado, somos a todo momento instados a reconsiderá-lo em função daquilo que aprendemos, ou acreditamos aprender, no presente. Isso não quer dizer que podemos inventar o passado (uma impossibilidade lógica), mas que socialmente reescrevemos a nossa história.

Uma reflexão mais cuidadosa sobre a memória leva então a repensar o lugar desses testemunhos. Não entendamos tais falas de maneira apressada: elas nos dizem que apesar de todo o sofrimento, vários dos filhos da causa puderam ainda assim extrair coisas positivas de suas vivências e a partir delas. As relações interpessoais, a possibilidade de conviver com outros países e culturas, a formação escolar a que tiveram acesso - todos esses elementos foram essenciais para que nossos entrevistados pudessem, por alguma via, ter construído a própria história.

Trata-se, provavelmente, de um grupo que possui, ao mesmo tempo, memórias pessoais e memórias sociais comuns.

Por último, é importante destacar que todos os filhos da causa desenvolveram algum tipo de consciência social. Com esse termo queremos apenas nos referir a uma vontade comum de se manter como um ator de transformações sociais rumo a uma sociedade melhor, com mais liberdade e menos desigualdade.

Na definição de profissões a seguir, tais escolhas ficaram muito claras. Sete são professores (quatro universitários), um é fotógrafo especializado em paisagens urbanas da periferia, um é advogado criminal, dois são educadores populares, um é economista, um jornalista, dois são médicos, um é pintor e dois são técnicos em informática.

Vejamos a fala de três entrevistados:

A minha vida toda é isso mesmo. Sou advogado criminal, advogado criminal na verdade é o que defende os maiores presos políticos, nesse nosso sistema, no fundo é o chamado bandido, os maiores presos políticos nesse nosso sistema aí. Quer dizer, toda a minha formação, minha vida é o resultado dessa, a minha família, toda a minha vida, PT, Botafogo, sempre com um viés político (R4, 27/09/2008).

Eu acho que a minha profissão (é médica sanitarista e trabalha no SUS de São Paulo -Autores) e o que eu faço na vida, o jeito que eu faço, mas eu diria que é com a história do meu pai e do jeito que ele transmitiu pra gente, eu não sei se ele teria transmitido a mesma coisa se tivéssemos ficado aqui, provavelmente teria mas não da mesma forma, além do que ele transmitiu tem o que a gente viveu, que é uma experiência, o fato de eu querer fazer um trabalho social militante, além da personalidade, dos valores que meu pai e minha mãe transmitiram pra nós tem esta experiência de vida, de exílio, de não poder voltar, tem a minha opinião sobre o que é a ditadura, sobre o que é um golpe, a minha experiência, eu acho que tem tudo a ver (R5, 16/10/2008).

Olha, de forma consciente eu acho que, de forma racional, se é que tem alguma influência não sei, acho que tá [sic] muito mais no campo da intuição, da questão de princípios de valores do que em qualquer outro campo, porque com oito anos de idade, sei lá, devia estar querendo ser bailarina, não acho que minha vida profissional tenha sido defini... quer dizer, de alguma forma foi, mas foi porque o que eu trago daí, são valores, princípios, e quais são estes princípios? Comprometimento, engajamento. Eu acho que principalmente do compromisso, sabe, você tem alguma coisa a ver com isso que está acontecendo, não tem como você fugir e achar que não tem nada a ver com o mundo que te cerca [sic] com o que está acontecendo em volta (R13, 07/10/2008).

Homens e mulheres maduros, com quase cinquenta anos de idade, podem hoje avaliar melhor que as escolhas feitas pelos pais foram opções realizadas em condições muito difíceis e limitadas.

A opção pelo exílio foi política e, ao mesmo, tempo ética. Sua radicalidade deixou para os filhos da causa um exemplo prático, e não apenas afirmações retóricas. Eles sentiram na pele, junto com seus pais, as consequências dessa opção. Não cabe, no âmbito do trabalho, avaliar as opções que se apresentavam àqueles que faziam oposição ao Regime Militar. Nossa questão foi outra: dadas as escolhas que foram feitas pelos pais, como vivem hoje os filhos da causa com a memória daquilo que viveram? Como - uma vez feita a opção pelo exílio - o universo político e social dos pais influenciou as opções que os filhos fizeram? Dito de outra forma: que vida construíram os filhos da causa a partir da vida que lhes foi legada?

 

Conclusão

Debruçamo-nos sobre as memórias de dezoito filhos de exilados do Regime Militar (1964-1985), procurando retraçar os temas e momentos importantes na construção de uma memória compartilhada intersubjetivamente. Tentamos alcançar dois objetivos centrais: 1) fazer um mapeamento inicial das lembranças e memórias comuns dos filhos dos exilados, através da análise de conteúdo do texto das entrevistas e do contexto no qual o discurso foi produzido; 2) manter viva a memória sobre um dos períodos mais negativos da vida política brasileira, trazendo à tona mais uma vez, mas sob outro ângulo, a lembrança do arbítrio, abuso, perseguição política, tortura, morte e suas consequências sobre as pessoas e a sociedade.

O trabalho procurou desvendar alguns mecanismos de construção comuns da memória dos filhos da causa. Nos tempos de hoje, em que desconfiamos com razão dos grandes sistemas explicativos, optamos por uma estratégia de pesquisa que, sobretudo, quisemos ouvir, escutar atenta e respeitosamente. Também não se pretendeu impor marcos disciplinares, embora o lugar de onde se fala seja, claramente, o da Psicologia Social.

Agora podemos justificar o estudo das memórias dos filhos dos exilados do Regime Militar como um estudo de memória social. Não queremos com isso encapsular a riqueza e diversidade dos testemunhos que foram dados, apenas construir estratégias analíticas eficazes no plano da ciência e da teoria. Com toda a sua diversidade e idiossincrasia, os diversos testemunhos podem e devem ser aglutinados em termos de uma memória social comum, que diz respeito a um grupo que viveu experiências semelhantes.

Cada um dos cinco princípios unificadores, apresentados no começo deste artigo, pode ser encontrado com maior ou menor intensidade entre eles.

A memória tem um caráter construtivo, e não meramente reprodutivo. Ficou muito claro, ao entrar em contato com as memórias individuais, que cada um de nossos atores seleciona aspectos de suas vivências passadas, conectando-as de forma distinta ao contexto mais amplo da vida social. É impossível cair na armadilha de "reconstituir o passado tal como ele foi" comum às estratégias positivistas. Reconstituir o passado implicaria reconstituir no plano da escrita e codificação não só todas as todas as ações humanas, mas também todas as interpretações sobre o que significam essas ações humanas.

É na interação entre o indivíduo e a sociedade que se produz a memória. Não há como isolar um desses elementos. Os indivíduos têm a primazia lógica como loci do que se lembra, é neles que se processa a recordação e o esquecimento, mas eles só podem se lembrar interagindo com os outros.

Memória e pensamento sociais estão intrinsecamente associados. Não há como recordar sem inserir o que se recorda em um esquema de conhecimentos preexistentes, criando uma representação social. Isso é muito nítido na memória dos filhos da causa, que a todo o momento se lembram de fatos acontecidos na sua mais tenra infância, "fatos" que lhes foram transmitidos por seus pais, parentes ou relações mais próximas com quem compartilharam o exílio e a opção pela resistência ao Regime Militar.

Foi muito comum ouvir coisas como: "isso é memória minha, aquilo é de meus pais" ou, "não sei mais se isto é memória minha ou de meus pais".

Eu era o caçula e nos EUA [sic] eu cheguei com seis anos e o comecinho foi difícil porque eu não sabia uma palavra de inglês, então minha mãe conta, isso já não é memória minha, é memória do que me contaram, depois de alguns dias eu ia pra escola, não entendia nada, ela disse que eu liguei, fui na diretoria pedi pra ligar, liguei e disse que tava [sic] com dor de garganta, ela foi me buscar, coisa que nunca acontecia porque tinha ônibus escolar pra levar, trazer, meio assustada e ... "Aí, como é que tá [sic] sua garganta?", "Melhorou, e tal", era nó na garganta de estar sozinho sem saber falar a língua tendo que encarar, mas isso foi muito rápido porque moleque aprende muito rápido (R9, 06/09/2008).

Como bem lembra Celso Sá, "saber que certos fatos aconteceram - ou aprendê-los ou concluir que eles têm de ter acontecido - basta para sua incorporação à memória das pessoas e grupos" (Sá, 2005, p.17).

Com que tipo de memória social estamos lidando? Afinal, o termo serve para uma enorme variedade de práticas de memória, constituindo-se num guarda-chuva conceitual que designa o conjunto inteiro das instâncias sociais da memória. Como já nos referimos, ele necessita, para uma melhor utilização nos marcos das sociedades contemporâneas, de algumas distinções, desde que fique claro que elas são ideais, operacionais e analíticas, portanto não pretendem esgotar o assunto.

Das sete diferentes instâncias da memória social com que Sá trabalha (as memórias pessoais, as memórias comuns, as memórias coletivas, as memórias históricas - que, por sua vez, se distinguem em memórias históricas documentais e memórias históricas orais - as memórias práticas e as memórias públicas), acreditamos que aquelas instâncias mais apropriadas a auxiliar no tratamento da memória comum dos filhos de exilados são as memórias pessoais, e as memórias históricas orais.

Efetivamente, lidamos em primeira instância com memórias pessoais que não são absolutamente "individuais", mas sociais porque produzidas na interação com os outros. Mesmo um limitado investimento em termos da história de vida dos entrevistados apontou a impossibilidade de se separar, na construção da memória social, o que é "meu" e o que é do "outro". Os contornos em termos da memória social de um grupo não se definem em termos dessa fronteira, mas de outra, a saber, da fronteira entre quem se identifica com os elementos comuns do grupo e quem não o faz.

A memória dos filhos de exilados do Regime Militar poderia ser considerada também uma memória histórica oral, por contar com escassos documentos e valer-se largamente de recursos não exteriorizados, como a rememoração constante e a própria transmissão oral.

Já vimos também qual era o horror de Primo Levi (1989), horror de quem tudo viu num campo de concentração e a ele sobreviveu: que ninguém se dispusesse a escutá-lo. Escutamos os filhos da causa, não como terapeutas, e sim como pesquisadores orientados por uma perspectiva psicossocial sobre os processos de constituição das memórias sociais. Escutamos com respeito e compreensão, sem com isso perder os propósitos da investigação científica que pretendemos ter conduzido.

O poder da memória está na sua capacidade de, ao evitar erros passados e transmitir ensinamentos válidos, transformar ativamente o presente. Referindo-se a um colóquio ocorrido em Paris, intitulado Após Auschwitz, Gagnebin afirma:

Não se tratava de uma celebração piedosa das vítimas do Holocausto, mas sim de uma rememoração, no sentido benjaminiano da palavra, isto é, uma memória ativa que transforma o presente (Gagnebin 2006, p.59).

As reminiscências dos filhos da causa guardam semelhanças e diferenças em relação às impressões que seus pais tiveram sobre esse período. Há diversos estudos acadêmicos no Brasil sobre o exilado adulto, aquele diretamente envolvido no confronto contra a ditadura e suas impressões sobre este período. Em relação às crianças, nosso estudo é inédito.

Ambos - adultos e crianças - sofreram com a perseguição. Os adultos puderam ter o reconhecimento social deste fato, com a proclamação do estatuto de perseguido político. As crianças, que viveram essa história em outra fase de sua existência, sequer tiveram o reconhecimento da dor e a legitimação social de exilados, apenas meros acompanhantes, filhos de exilados. Não por acaso, todos os entrevistados, no primeiro contato, estranharam o fato de nos interessarmos pela memória deles e não a de seus pais. Dar voz a quem nunca falou sobre o tema publicamente permitiu que os entrevistados pudessem gerenciar essa memória tão dolorosa e trazer olhares inéditos sobre o tema.

De maneira metafórica, apresentamos a forte imagem que um dos entrevistados transmitiu ao lembrar-se de uma história anterior à saída para o exílio - "muito mais porque ela foi contada depois", o que nos joga na indeterminação característica das memórias sociais, construídas individual e socialmente - que remete a questão de suas memórias e lembranças como um todo. Nessa recordação, lembra-se de ter acordado no meio da noite e de ter visto pela janela de seu quarto uma movimentação dos adultos enterrando um enorme mimeógrafo no quintal da casa de campo da família. O mimeógrafo era elemento que caracterizaria o flagrante de produção de panfletos subversivos, de denúncia contra o regime. Ser pego com um mimeógrafo em casa seria estar condenado à prisão e à tortura, por isso ele estava sendo descartado no meio da madrugada.

...e eu lembro de uma história [sic], muito mais porque ela me foi contada, depois em algum momento, uma história muito bonita do ponto de vista plástico, como imagem, que eles enterraram um mimeógrafo, nessa casa do aeroporto no quintal, algum dia eu queria inclusive ir lá, conseguir convencer o dono a quebrar o jardim (...) desenterrar o mimeógrafo... (...) Exumar o mimeógrafo, porque é um peso muito grande pra ter enterrado na memória, o mimeógrafo é uma coisa muito pesada, um simbolismo muito pesado, e este mimeografo enterrado eu lembro disso [sic]. (R8)

Trazer à tona esse passado esquecido, ocultado e muitas vezes nem mesmo assumido como uma história própria, é lidar com um mimeógrafo metafórico. Ele existiu, esteve presente real e simbolicamente, mas o seu peso não deve oprimir as lembranças dos vivos, impedi-los de reconciliar-se com o seu passado para poder viver o presente. Desenterrar o que está morto, e só permitir viver aquilo que ainda deve permanecer.

Entre falas e tempos verbais situados no presente e no passado, buscando exumar fantasmas, encontrar sentido para tudo que foi vivido e abrindo uma parte importante da história brasileira, nossos entrevistados foram marcados profundamente pelo exílio. Hoje, ao poder falar e se emocionar livremente sobre o tema, podem ressignificar o acontecido e assumir - este foi um dos inesperados resultados da pesquisa - a identidade de vítimas diretas da ditadura e exilados, tanto quanto foram os seus pais. Em tempos de revisitar o passado e de buscar a verdade - ao invés da frágil versão oficial - realizar este trabalho permitiu estimular rememorações, memórias ativas que transformem o presente (Gagnebin, 2006).

 

Notas:

1 O conceito "causa" era largamente utilizado pelos ativistas políticos da esquerda revolucionária na época, e servia para denominar o motivo maior da luta, a ideia radical de transformação política, econômica e cultural. A "causa" era a realização da utopia revolucionária. Os entrevistados, "filhos da causa", são apresentados neste artigo a partir de códigos R1, R2, R3 etc.

2 O Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), por sua vez, é um exemplo prático do tipo de inspiração de atividade de massas, antes do golpe, no qual a do Partido Comunista Brasileiro (PCB) tinha ainda papel preponderante. Surge, assim também, a aplicação do método Paulo Freire de alfabetização.

3 A apresentação desta constelação de siglas não tem como objetivo produzir uma análise pormenorizada da organização partidária clandestina no país, apenas ilustrar a argumentação a respeito do isolamento e pulverização da esquerda naquela ocasião.

4 Termo comumente utilizado pela esquerda para traduzir condutas dissonantes com os objetivos da luta, levando em alguns casos ao abandono das atividades de militância.

5 "Quem sonha com a volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu, num rabo de foguete...". Composta por Aldir Blanc e João Bosco e lançada no LP "Linha de Passe", em 1979 e gravada por Elis Regina, O bêbado e o equilibrista tornou-se um dos mais importantes hinos da anistia brasileira.

6 "Memórias do Exílio", coordenada por Pedro Celso Uchoa Cavalcanti e Jovelino Ramos, de 1978, Editora Livramento, São Paulo; "Memórias das mulheres do exílio', dirigida por Albertina de Oliveira Costa, Maria Teresa Porciúncula Moraes, Norma Marzola e Valentina da Rocha Lima, lançada no Rio de Janeiro pela Paz e Terra em 1980 e "Rabo de Foguete - Os anos de exílio", de Ferreira Gullar, lançado tardiamente, em 1998, pela editora Revan, Rio de Janeiro, são exemplos.

7 Ver publicação de Celso Sá: "Sobre o campo de estudo da Memória Social: uma perspectiva psicossocial" de 2007 e disponível em www.scielo.br.

8 Calando a primeira pessoa para trabalhar sobre testemunhos alheios, a partir de uma distância descritiva e interpretativa, Sarlo situa-se num lugar excepcional entre os que sofreram a repressão e se propuseram representá-la. A verdade do texto desvincula-se da experiência direta de quem o escreve, indaga na experiência alheia àquilo que poderia imaginar que sua própria experiência lhe ensinou. Por isso, o texto não exerce uma pressão moral particular sobre o leitor, que sabe que Sarlo foi uma presa desaparecida. Mas sobre aquele de quem não se exige uma crença baseada em sua própria história, e sim nas histórias de outros, que ela retoma como fonte, e, portanto, submete a operações interpretativas.

9 "A política da memória tem como um de seus vértices de origem a queda do Muro de Berlim, o fim das ditaduras latino-americanas e do apartheid na África do Sul. Isso evoca transformações de cenários urbanos, espaços virtuais e os novos sentidos da memória. O imaginário e o espaço urbano, e suas relações com a memória, têm papel-chave nas transformações da experiência do espaço e do tempo" (Perrone, 2002, p. 101).

10 Arquidiocese de São Paulo. (1985). Brasil Nunca Mais. Rio de Janeiro: Vozes.

 

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Recebido em: 30/11/2014
Aprovado em: 13/03/2015

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