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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versión On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.7 no.2 Rio de Janeiro jul./dic. 2015

 

RESENHAS

 

O frescor e a inventividade dos pioneiros da psicanálise: Sabina Spielrein

 

 

Paulo Endo

Psicanalista. Professor Doutor do Instituto de Psicologia da USP. Membro do Grupo Interdisciplinar independente de combate à tortura e à violência institucional da Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SEDH). E-mail: pauloendo@uol.com.br

 

 

 

Resenha, do livro de Renata Cromberg: Sabina Spielrein - uma pioneira da Psicanálise - Obras Completas, volume 1. São Paulo: Livros da Matriz, 2014, 400 pgs.

Uma vez Pontalis comentou o fastio em frequentar congressos de psicanálise. Dizia de um certo descabimento onde a clínica, propriamente, não aparecia. Aturdida por grande (e pequenas) ilações teóricas, aparentes invenções metapsicológicas, apreço por criação de conceitos e hipóteses mal ajambradas alguns congressos terminam por apagar o frescor da psicanálise, a honestidade e sinceridade necessária para narrá-la e, por vezes, obscureciam os verdadeiros autores (pacientes, analisandos, analisantes) dos processos que os psicanalistas descreviam e narravam. Pontalis dizia de uma espécie de decepção que só era restituída quando voltava ao consultório e reencontrava o frescor das falas dos pacientes e a psicanálise viva, que muitas vezes já não encontrava nos encontros entre psicanalistas de psicanálise.

Não é difícil encontrar essa sensação nos encontros e congressos de agora e quando isso acontece voltamos a nos perguntar porque nos reunimos e qual a importância disso.

Voltar a ler Freud e os pioneiros da psicanálise é uma fonte de água límpida que hidrata a clínica com o sabor dos começos. Trata-se de retomar a esse instante declarado no qual um conceito revela uma imprecisão clínica, um impasse, uma palavra incerta diante do que a experiência clínica declara e confessa. A clínica psicanalítica é uma experiência, e a experiência, como já disse Levinas, é o que extravasa o pensamento.

Talvez os congressos de hoje estejam repletos de pensamento e com poucas experiências, talvez o que as pesquisas acadêmicas trouxeram de fundamental e inventivo no Brasil, também retiraram dela um certo compromisso com a experiência psicanalítica e dela, muitas vezes, só ouvimos o pensamento.

O que nos impele a sucessivamente retornar aos pioneiros da psicanálise é talvez a necessidade de aprender como se inventa a psicanálise e restaurar em nós, analistas, o espírito da inventividade que não alça vôo sozinha, mas intrincada com outra experiência da qual não podemos abdicar: a experiência daquele que decidiu introduzir pensamento naquilo que é só experiência, na imobilidade própria sugerida pelo divã, onde fantasmas encontram morada na guarida de uma situação compartilhada de escuta.

Ao ler o livro de Sabina/Renata, Renata/Sabina encontrei esse empenho sincero e rigoroso em retomar princípios da clínica psicanalítica, por vezes dados como perdidos. O ultrapassamento de preconceitos nascidos da ignorância, ou do falso saber, constitui a continuidade das pesquisas em psicanálise.

Verdades, meias verdades e mentiras que atravessam mais de um século são tema desse livro. Para os psicanalistas e pesquisadores a retomada da história da psicanálise porta sempre a intenção de fazer jus a tudo o que não pudemos conhecer, ler, pesquisar e, nesse sentido, refazer o caminho é um modo também de repensar versões intactas de acontecimentos que jamais conheceremos. Pensar a história, para o psicanalista, é também sonhar.

O trabalho de Renata Cromberg perfaz um caminho histórico e introduz fatos, interpretações e hipóteses desconhecidas do público brasileiro. Ela retoma a importância de Bleuler, Jung e Sabina no movimento psicanalítico, suas respectivas contribuições, num contexto em que a clínica de Burgholzi era um centro europeu importante de humanistas interessados e difusores da psicanálise na Europa. Eles estavam com Freud. Caminharam ao lado dele e Freud o reconheceu.

No âmbito desse encontro entre os humanistas suíços e a psicanálise um evento de muita importância é gerado: a participação de Sabina Spielrein no movimento psicanalítico e seu legado, abandonado pelos psicanalistas que vieram depois. Trata-se de um estilo audacioso, de uma inteligência ímpar e de uma contribuição até então oculta ou inibida no movimento psicanalítico.

Renata deu a Sabina uma vida que já lhe pertencia, mas que ainda era amplamente ignorada no Brasil. Esse trabalho de descoberta e desvelamento de uma personagem, tão intensa quanto importante na história da psicanálise, foi realizado, contudo, com as lentes de uma psicanalista que reconheceu nesse obscuro lugar, ao qual fora relegada Sabina Spielrein, um abandono que Marilena Chauí, no comentário que fez durante a banca de doutoramento de Renata Cromberg, denominou de misógino. Medo, terror, hesitação ante o que a mulher e as mulheres da psicanálise suscitaram e suscitam. Nesse sentido Sabina teria sofrido, anos depois, o que Bertha Pappenheim (Anna O.) sofrera antes. Uma espécie de confinamento à alcova. Uma condenação em permanecer como paciente exemplar, objeto do saber científico e da argúcia masculina sobre o qual os doutos pausam sua observação e demonstram sua inteligência e argúcia.

As mulheres e sua inteligência volátil permaneceram secundarizadas por uma inteligência mais elevada, patrimonializadora, dos que hoje são reconhecidos como os verdadeiros líderes e pioneiros da psicanálise; homens em sua imensa maioria.

O continente negro se figurou e formou em vários âmbitos dessa grande arena que hoje é a psicanálise, e um deles recaiu como sintoma nos movimentos de psicanálise no entendimento, reconhecimento e compreensão de suas mulheres.

Sabina expôs-se e foi exposta ao mosaico que a fez paciente, discípula, psicanalista e teórica. Sobre cada uma dessas posições Sabina poderia dar seu testemunho.

Observa Renata Cromberg:

(...)podemos dizer que o caso Spielrein estimula uma discussão rica do que é a loucura feminina aos olhos masculinos, o que é o sofrimento histérico e o que é o sofrimento esquizofrênico" (p.26).

Do mesmo modo, os olhos masculinos, e Cromberg o demonstra, ao mesmo tempo teimaram em encobrir a mulher, a psicanalista, a pensadora para além de seu sofrimento e de sua doença.

Do mesmo modo Bertha Pappenheim(Anna O.) passou a vida negando ser a primeira paciente da psicanálise, título que velava tudo o que ela faria depois como mulher e militante judia e feminista reconhecida. Ao que parece tudo foi relegado à lógica do sintoma inibindo a inscrição na história. Isso adveio justamente dos que poderiam não fazê-lo: os psicanalistas.

Mas mesmo tal lógica não fora levada às últimas consequências. Prova disso é que sequer o que Bertha se tornou depois foi considerado como efeito sublimatório do próprio tratamento conduzido por Breuer e Freud e ao qual ela se submeteu.

A militância feminista de Bertha, sua importância como mulher, judia e escritora foi amplamente reconhecido em sua época e mereceu destaque numa das séries de selos germânicos intitulados Benfeitores da Humanidade, em 1954, que estampa o perfil de Bertha Pappenheim, entre outros. Para a psicanálise e sua história isso se tornou desimportante. Secretamente, atribuiu-se a esse aspecto da vida da ex- Anna O. um caráter sintomático de sua própria doença, em função do fracasso do tratamento quando ainda a psicanálise, propriamente, não existia.

O livro de Renata Cromberg coloca isso em questão e evidencia um quase apagamento de uma personagem muito importante não apenas no seio do movimento psicanalítico. Ele introduz uma dupla questão sobre o feminino e a mulher.

Aí também o texto é pródigo. Distingue as questões do feminino e as questões da mulher. Permite que se superponha numa outra chave a Sabina mulher que serviu-se como exemplo clínico para homens pioneiros, e que permaneceu silenciada por esses mesmos homens sobre sua produção clínica e teórica e seu pioneirismo, e retira dessa trama elementos metapsicológicos para pensar a clínica da constituição do feminino.

Sintomaticamente Sabina foi perseguida por dois homens na cena política que endereçaram seu desaparecimento: Hitler e Stalin. Que justaposição é essa, efeito de fraturas históricas e transferências que se intrincam de modo tão sentenciador e inexorável? Dois homens da psicanálise também definiram sua presença e ausência na história e nos destinos da psicanálise.

Quais interpretação seriam possíveis sobre aquilo que, nesse caso, a psicanálise e os psicanalistas dizem, proclamam, transmitem e o que deixam de dizer, emudecem, calam? Elementos que encontram, numa vida particular, o mais flagrante exemplo de uma determinação histó(é)rica.

É possível, todavia, contar e transmitir uma história ao modo histérico. O que é vistoso e abundante em oposição e omissão ao que é conflituoso e determinante?

Creio que só essa retomada importantíssima já justificaria o livro e a tese, porém Renata vai mais adiante, ou mais atrás. Ao publicar os textos de Sabina e seus comentários produz um efeito de diálogo entre mulheres psicanalistas impressionante. Revela com a publicação do texto A destruição como origem do devir, um estilo original e próprio entre os escritores da psicanálise e um texto que representa os estertores de uma tentativa de avançar para além da divergência pessoal de Freud e Jung. O texto, atravessado por um esforço conciliatório e amoroso, apresenta uma maneira de considerar as repetições e padrões mitológicos como efeito de algo que perdura e encena a sexualidade. Diferentemente de Jung e Freud, Sabina sugere uma livre interpretação dos padrões mitológicos daquilo que fora transformado em método na teoria analítica de Jung, e amplamente rejeitado por Freud. Ela propõe abrigar certos padrões da cultura como efeitos de repetições que informam e se inscrevem na constituição da sexualidade.

Sabina sugere evitar a guerra onde muito de importante e essencial é desperdiçado em nome da honra masculina, não raro disfarçada de hombridade.

Mais além do princípio do prazer e A destruição como origem do devir são dois textos que juntos radicalizam, ampliam e consagram as proposições da pulsão de morte. Em Freud, como gênio e mestre zelador da psicanálise, vemos o trabalho apurado em retocar o sentido da morte na gênese do sintoma, preparar a segunda tópica e a segunda teoria da angústia e instaurar de forma irreversível os pontos de tangenciamento entre a psicanálise a teoria da cultura e as teorias e a interpretação social e política que serão retomadas em 1921, 1930 e 1938. Em Sabina já aparece, antes de Freud, uma radicalização, condensada mais tarde em O mal-estar na cultura, que positiva a destruição para revelar elementos, mais tarde presentes em Espanca-se uma criança de 1919 e Elementos econômicos do masoquismo de 1924.

O devir, o futuro, o negativo restituem uma temporalidade própria ao caráter mesmo da escuta psicanalítica, que supõe poder reverberar experiências que radicam no paradoxo e no inconcluso. A destruição ocorre no psiquismo como possibilidade de invenção, comprimida entre o não mais e o não ainda. Na experiência analítica pode ainda revelar um impasse na experiência temporal e mesmo seu colapso. Em belo comentário desse texto Cromberg destaca a importante contribuição de Sabina sobre o estatuto materno na experiência infantil e no édipo da menina. Cito:

O exemplo que Sabina dá, da garota que tem prazer em ler histórias de bruxas, não é inocente. Não se trata apenas da identificação com a mãe, mas da identificação com a vida da mãe. A metáfora bruxa=mãe, não decorre do desejo de viver sua vida de maneira semelhante à da mãe, ou da forma como a mãe viveu sua própria vida, mas sim do desejo de viver a vida da mãe. O que deixa implícito o desejo de destruir a própria vida para viver a vida da mãe. É por isso que a mãe se torna uma figura aterrorizadora."(p.297)

Cromberg destaca um mecanismo psíquico maciço no qual a mãe é ao mesmo tempo o que engendra o radicalmente outro e o radicalmente mesmo, impasse e sintoma que lança o devir para sua própria destruição e, assim, sucessivamente. Desse modo a menina se condena a ser a mãe, privando-se de ser mulher, privando-se do próprio devir a partir de uma fantasia, um pictograma, que instala uma destruição capturada na onipotência da filha herdeira e possuidora da vida da mãe. Distingue-se aqui a identificação de um complexo de mesmidade que conduz ao seu oposto e aprisiona o corpo e o psiquismo da menina entre dois impossíveis: a impossibilidade de ter a vida da mãe sem ser a mãe e a impossibilidade de ter uma vida própria.

Talvez, exatamente nesse sentido, o sadomasoquismo revele uma saída sintomática que aprofunda uma impossibilidade entre o gozo e a castração, mas cria uma economia própria de gozo, na qual as identificações retroagem e persistem no jogo da sempiterna reversibilidade que, por sua vez, induz à atemporalidade que marca o não tempo da perversão. Luta contra o tempo, contra a duração, contra a finitude e, no limite, contra a destruição e, portanto, impõe o cativeiro de um impossível devir, como quer Sabina.

A perversão pode, pelas lentes de Sabina, instaurar um eu sem um nós, que recusa a própria destruição, escorrendo seu gozo por ambientes frios e escuros, alimentado, entretanto, pela nostalgia de um prazer ao mesmo tempo impossível e imperecível que se auto induz e se retroalimenta. Mas mesmo aí, ou talvez, justamente aí, a presença maciça da mãe como Coisa, a impossibilidade de ultrapassamento, representação e identificação com a Coisa insinua que o prazer do sujeito na dor é um prazer sem devir, porque impõe uma impossibilidade psíquica de um nós, cujo psiquismo se blinda entre cruelizar e ser cruelizado e goza com isso, enquanto se recusa a destruir.

Temas centrais para a clínica psicanalítica, mas também tão presente nas formações culturais e institucionais que Sabina chama de 'espécie' e que Freud soube tão bem indicar aliando repetição com morte; crueldade com solução traumática. Indicações e caminhos que Sabina e Freud deixaram demarcados no que persiste entre o trauma e a perversão.

A mãe como imensa e traumatogênica se constituiria como a Coisa aquém do nome e da nomeação. A mãe tirana de Totem e Tabu de Freud travestida de pai da horda primeva. Abalos que o pensamento de Sabina repõe no jogo de modo tão suave quanto incisivo e perturbador.

Livros raros, necessários como esse de Renata Cromberg, nos pegam pela mão para, mais uma vez, ensinar que o lugar dos pioneiros não é em celebrações passadistas, mas no ineditismo que eles ainda plantam para o devir. Não voltamos a eles, vamos a eles.

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