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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.8 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2016

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2016v1p.39 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Uma revisão teórico-conceitual sobre a ética da psicanálise e laço social

 

A theoretical and conceptual review about the ethics of psychoanalysis and social bond

 

 

José Henrique Parra Palumbo

Programa de pós-graduação em Psicologia Experimental –Problemas Teóricos e Metodológicos em Psicologia – Instituto de Psicologia da USP. Titulação: Doutorando em Psicologia; Master recherche em Psicologia; Psicólogo. Endereço para correspondência: Av. Bolonha, n.62, cj. 35, CEP 05334-000, São Paulo-SP. jhparrap@gmail.com

 

 


RESUMO

Por meio da leitura do Seminário livro VII, a ética da psicanálise de Jacques Lacan e partindo de certas concepções psicanalíticas de cunho antropológico, este trabalho examina a psicanálise em sua relação ao campo social desenvolvendo, primeiramente, a ideia de laço social em psicanálise. Em seguida, contextualiza-se o aparecimento da ética do desejo para promover um entendimento mais claro da relação entre a conduta analítica e o laço social e, consequentemente, apreender de que maneira uma psicanálise atua necessariamente tendo como pano de fundo o campo social.

Palavras-chave: TEORIA LACANIANA; ÉTICA; LAÇO SOCIAL; ANTROPOLOGIA.


ABSTRACT

Based on the reading of the text Seminar VII, The Ethics of Psychoanalysis by Jacques Lacan, and on certain psychoanalytic concepts related to anthropology, this paper examines Psychoanalysis in its relation with the social field, developing firstly the idea of social bond in Psychoanalysis. After that, it contextualizes the appearance of the ethics of desire to promote a clearer understanding of the relation between the analytical conduct and the social bond and therefore realize how Psychoanalysis necessarily operates, having as background the social field.

Keywords: LACANIAN THEORY; ETHICS; SOCIAL BOND; ANTHROPOLOGY.


 

 

Queremos com o presente estudo(1) interrogar a psicanálise - esta terapêutica da subjetividade - em relação ao campo social. Pois se "desde o começo, [esta] psicologia individual [...] é, ao mesmo tempo, também psicologia social" (Freud, 1921/1996, p.81), a qual ordem se refere o processo analítico e como ele o faz?

 

 

O alvo de nossas interrogações será assim, por meio de uma a leitura teórico-crítica, o famoso Seminário, livro VII, de Jacques Lacan, proferido entre os anos de 1959 e 60, e intitulado A Ética da Psicanálise. De pronto, porque a ética estaria no centro da ação ou conduta em psicanálise se nos restringirmos, para o nosso propósito, ao que Lacan (1959-60/1988 p.30) diz sobre sua "tentativa de penetrar o problema de [sua] própria ação, [...] essência [...] de toda reflexão ética"; e também porque, ao invés de interrogar, por exemplo, a teoria da técnica psicanalítica, queremos ir de encontro ao ponto de inserção e atuação do analista no laço social e sobre o campo social.

Portanto, percorreremos ao longo deste trabalho um caminho que parte do envolvimento teórico da psicanálise com o campo social, uma espécie de antropologia psicanalítica, e vai em direção às concepções de Lacan que dizem respeito à posição do analista no laço social. Tudo isto para situarmos a ética da psicanálise no contexto teórico-conceituai do pensamento lacaniano a fim de respondermos em que medida a psicanálise atuaria no campo social - ou, ao menos, para além de uma terapêutica individual. E para tal finalidade, nossa metodologia será compreender 'a partir do quê', 'como' e 'para quê' Lacan desenvolve a ética psicanalítica, pois apostamos na hipótese de que a construção desta ética está mais implicada do que pode parecer na interface entre psicanálise e campo social.

Entretanto, se houver por parte do leitor algum receio desta escolha não ser apropriada porque generaliza a ética da psicanálise desenvolvida por Lacan para toda a psicanálise que possui práticas clínicas muitas vezes divergentes, resta-nos apenas pedir licença para continuarmos com esta restrição quanto ao nosso principal texto de trabalho e insistir na generalização de um pensamento particular, pois não vemos como um estudo teórico poderia funcionar de outra maneira senão por meio de algumas generalizações conceituais que acabam, por vezes, contribuindo para uma unidade imaginária para o que na prática se apresenta distintamente, no caso a caso, mas que oferece a vantagem de ser um organizador a mais para o debate, para o pensamento e para a prática.

Tendo feito todas estas considerações, nos é necessário portanto compreender de antemão a lógica da hipótese psicanalítica do inconsciente em sua relação ao laço social na medida em que esta mesma lógica foi também o nosso ponto de partida e, de alguma maneira, nosso suporte epistemológico para um recorte mais preciso na leitura da ética elaborada por Lacan que propomos tendo como guia a hipótese acima apresentada.

 

Por uma concepção de laço social: a antropologia psicanalítica de Freud a Lacan

Quando Freud (1921) diz que a psicanálise é também uma psicologia social no texto Psicologia de Massas e Análise do Eu, ele está, como em várias ocasiões, reafirmando o direito da psicanálise em estabelecer um profícuo debate entre suas concepções psicológicas e as de outros saberes. No caso acima, com as concepções da psicologia social de Gustave LeBon.

Esta não foi a primeira vez que o dito fundador da psicanálise põe cara a cara suas concepções advindas da reflexão psicanalítica promovida pelas psicopatologias clínicas individuais, que recebia em seu consultório, e a literatura das ciências humanas a fim de elaborar, ou no mínimo esboçar, segundo Assoun (2007), uma teoria psicanalítica do coletivo ou uma antropologia psicanalítica. Isto porque, embora "a psicanálise stricto sensu mantenha-se no plano da psique individual", as concepções teóricas de Freud relacionadas ao campo social e à esfera coletiva estão arraigadas na "lei da biogenética" que deriva, por sua vez, do "princípio de conexão onto-filogenética". O que acarretaria, de acordo com o autor, "uma nova genealogia das "instituições culturais"" permitindo pensar - dentro do paradigma da investigação do inconsciente, ou melhor, a partir de um "modo de pensar psicanalítico" - que "a neurose é o equivalente ontogenético da instituição cultural, neurose coletiva" (Assoun, 2007, pp.528-9, tradução nossa, itálicos do autor).

Sabemos que Freud (1913/1996) publicara Totem e Tabu, um de seus textos mais estimados por ele mesmo (Cf. Nota do Editor da Edição Standard Brasileira das Obras Completas, p.14) e o responsável por condensar algumas concepções suas, digamos, mais antropológicas através de uma análise sistematizada da bibliografia etnográfica de seu tempo a propósito do totemismo, do tabu do incesto e da exogamia, a ponto de "concluir [...] que os começos da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo" (Freud, 1913/1996, p.158), este "conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais" (Laplanche & Pontalis, 1982/2008, p.77). Isto é, para Freud (1913/1996), a origem da cultura, enquanto processo civilizador, está ligada intrinsecamente à noção de recalque e de inconsciente.

É como se Freud elevasse o complexo de Édipo a uma espécie de matriz mítico-simbólica inconsciente da vida psíquica do neurótico cujo desejo em direção ao objeto de investimento pulsional sofre a repressão da norma social. Matriz esta que terá seu correlato genealógico e antropológico no mito do assassinato do pai da horda primitiva, já que o totem, "substituto do pai", e o "sentimento de culpa filial" (Freud, 1913/1996, p. 147, grifo nosso) criarão posteriormente um sistema de normas e valores apoiado sobre dois tabus principais. Duas interdições que sustentam a origem da cultura (moral, sociedade e religião).

Desta forma, temos a proibição da recorrência do assassinato do pai e a proibição do incesto que decorre do fato de que, para Freud (1913/1996, p. 147, grifo nosso):

Embora os irmãos se tivessem reunido em grupo para derrotar o pai, todos eram rivais uns dos outros em relação às mulheres. [...] [Não deixando] outra alternativa, se queriam viver juntos [...] do que instituir a lei contra o incesto, pela qual todos, de igual modo, renunciavam às mulheres que desejavam e que tinham sido o motivo principal para se livrarem do pai.

Podemos assim dizer que a proibição de um ato assassino em direção ao pai e a outra em direção ao objeto causa de toda a organização fraterna marcariam a organização primitiva do corpo social por meio da instituição do totemismo. E em termos metapsicológicos, marcariam também a organização psíquica edípica do neurótico como um compromisso entre a dimensão erótica, da sexualidade, e a instituição originária da cultura.

Tal é a força dessas conclusões antropológicas na economia do pensamento de Freud que ao final do texto Psicologia de Massas e Análise do Eu, vemos o autor se apoiando nestas elaborações precedentes sobre a origem da civilização para afirmar que "todos os vínculos de que o grupo [ou a massa] (die Masse) depende têm o caráter de instintos [ou pulsões] (Triebe) inibidos em seus objetivos"(2) (Freud, 1921/1996, p.150).

Daí pode-se tirar uma primeira formulação de caráter sociológico a partir da lógica psicanalítica surgida principalmente quando Freud (1900/1996) investigava a psicologia das profundezas dos sonhos, ou seja, uma verdadeira tese sistematizada pelos preceitos psicanalíticos da investigação do inconsciente. Tese na qual "a sociedade materializa o interdito, [sendo] sob esta vertente que a teoria das neuroses a aborda" (Assoun, 2007, p.530, tradução nossa).

Então, o totemismo, apresentado tal como foi por Freud (1913/1996), nos dá condições para uma verdadeira concepção de laço social psicanalítica, pois tal sistema primitivo de organização social atestaria "um pacto com o pai, no qual este prometia-lhes [aos irmãos da fratria] tudo o que a imaginação infantil pode esperar de um pai [...] enquanto que, por seu lado, comprometiam-se a respeitar-lhe a vida" sem assassiná-lo. Mais do que isto, a sociedade como produto histórico do totemismo seria o avesso dos tempos imemoriais da horda, pois o sistema totêmico "ajudou a amenizar a situação e tornou possível esquecer o acontecimento a que devia sua origem" (Freud, 1913/1996, p.148, grifo nosso).

A partir deste ponto, o leitor, podendo se questionar sobre a facticidade por detrás destas concepções antropológicas de Freud (1913/1996) e até mesmo criticando acertadamente suas afirmações por vezes categóricas, precisará nos conceder ao menos o reconhecimento de que há uma maneira própria da psicanálise abordar o vínculo social e compreender sua constituição.

Ainda mais porque Freud (1913/1996), ao que parece, estava ciente das precisas objeções que o tal princípio de conexão onto-filogenético acarretaria às suas conclusões. Primeiro por ele saber dos problemas da correlação entre a "interpretação psicanalítica do totem [...] e [...] as teorias darwinianas do estado primitivo da sociedade humana" (Freud, 1913/1996, p.145). Correlação esta que cria uma "hipótese [... ] fantástica", mas que "oferece a vantagem de estabelecer uma correlação insuspeita entre grupos de fenômenos que até aqui estiveram desligados" (Freud, 1913/1996, p.145). E em segundo lugar, pois, ainda em Totem e Tabu, ele dirá que:

Sem a pressuposição de uma mente coletiva, [...] a psicologia social em geral não poderia existir. A menos que os processos psíquicos sejam continuados de uma geração para outra, ou seja, se cada geração fosse obrigada a adquirir novamente sua atitude para com a vida, não existiria progresso neste campo e quase nenhuma evolução. (Freud, 1913/1996, p. 159, grifo nosso).

Mas esta mente coletiva da qual depende uma psicologia social, no caso, psicanalítica, não é exatamente a mesma mente inconsciente do plano individual da psique. Basta aqui lembrar que, em Moisés e o Monoteísmo Freud (1939/1996), o autor retoma o "hipotético período primevo" na tentativa de esclarecer suas suposições e investigações sobre a origem da religião monoteísta judaica relembrando mais uma vez do velho problema ao "transferir os conceitos da psicologia individual para a psicologia de grupo [ou massas] (Massen)"(3) (Freud, 1939/1996, p.146). O problema estaria em dar créditos a uma mente inconsciente coletiva sem a devida apreciação de que o inconsciente, o recalcado, comporta justamente aquilo que o coletivo e a cultura rechaçam. Assim, o recalcado ocuparia o plano mais íntimo da subjetividade, mesmo sendo "o conteúdo do inconsciente [...] uma propriedade universal, coletiva, da humanidade." (Freud, 1939/1996, p.146).

Ora, se a psicanálise reintroduz nos saberes do social o esquecimento do recalque como fundamento e avesso do laço social a partir de um determinado princípio de conexão entre a constituição da vida mental individual e a origem da cultura, não seria em absoluto exagerado dizer com isto que o sintoma neurótico não terá mais um estatuto tão somente patológico, como para a psiquiatria, por exemplo, mas também ganhará uma condição antropológica. Assim, se compreendemos bem como Freud trata da questão do laço social, a questão volta: como se dá a relação entre a prática analítica e campo social? Se se leva em conta o estreito contato entre a etiologia da neurose e o pacto originário totêmico, uma análise teria então certo registro de atuação para além de uma psicoterapia ou tratamento que agisse apenas sobre determinada psicopatologia, não?

Contudo, para o nosso propósito, resta ainda saber como esta consideração antropológica da neurose, adquirida no diálogo de Freud com outros saberes (etnografía ou psicologia social), atua no interior da economia do pensamento de Jacques Lacan no que concerne ao laço social, já que entre este autor e o primeiro há uma grande distância.

Talvez um dos passos mais decisivos da entrada de Lacan na psicanálise foi o que ele mesmo chamou de seu retorno a Freud. Antes de retornar ao Pai da psicanálise, aquele que lhe dá o nome, Lacan não aceitava a universalidade do complexo de Édipo, isto é, ele desconsiderava seu valor de estrutura mítico-simbólica encontrada em cada neurótico como o ponto de convergência da origem da civilização.

Lacan fora até o início de seu seminário, mais ou menos, influenciado por uma posição teórica na qual a imago paterna passaria por um declínio ao longo da história. Resumidamente, tratava-se da lei durkheiminiana da contracção familiar (Cf. Zafiropoulos, 2001), a qual lhe permitia questionar a função do pai em Os complexos familiares (Lacan, 1938/2003), mas sem levar em conta o que ela possuía de mais radical em Freud: o pai morto.

Na verdade, digamos que faltava a Lacan (1938/2003) algo a mais para diferenciar o pai morto - indispensável para a tese de Totem e Tabu - da imagem do pai produzida em diversos contextos sócio-históricos diferentes. O estruturalismo de Lévi-Strauss então viria a agir quase como uma ponte para que suas concepções reencontrassem os fundamentos antropológicos da psicologia de Freud discutidos acima. Em outros termos, foi preciso a Lacan encontrar certo saber das ciências humanas que fornecesse uma leitura mais 'próxima' da psicanalítica para os processos de simbolização implicados na passagem da animalidade à humanidade, já que a dimensão simbólica seria o principal domínio da intervenção analítica (Cf. Zafiropoulos, 2003).

A incursão de Lacan no método estrutural da linguística por meio da antropologia de Lévi-Strauss consistia então em sua famosa estratégia teórica - onde o inconsciente aparece estruturado como linguagem - desenvolvida em uma importante passagem do Discurso de Roma (Cf. Lacan, 1953/1966, p.267-290). Tal estratégia também comportava-se como uma crítica endereçada ao campo psicanalítico, pois, além da "regra" freudiana diante do texto do sonho, a qual diz que "é sempre preciso buscar nele [no sonho] a expressão de um desejo" (Lacan, 1953/1966, p.269), ele propõe que "a arte do analista deve consistir em suspender as certezas do sujeito, até que se consumem suas últimas miragens", já que "o analista sabe [...] que a questão é ouvir a que "parte" desse discurso", proferido pelo paciente, "é confiado o termo significativo" (Lacan, 1953/1966, p. 253).

Mais precisamente, a crítica de Lacan era direcionada à psicanálise das relações objetais e, sobretudo, à psicologia do ego. Assim, sua articulação teórica, imersa no estruturalismo, designava ao registro do inconsciente (registro do simbólico, do significante, do discurso) o lugar de destaque para a intervenção do analista. Por outro lado, o registro das miragens (registro das relações objetais, o imaginário) é aquele que sofreria, pelo menos até um dado momento, a maior parte das críticas lacanianas. Deste recurso teórico dos registros - e da crítica à prática psicanalítica nele presente - interessa-nos aqui a marcante relevância dada por Lacan ao registro simbólico. Contudo, antes de compreendermos o porquê disto, retomemos o significado do estruturalismo no pensamento do autor para que possamos entender como este empréstimo do método estrutural trabalhará aquela antropologia psicanalítica freudiana.

A linguística de Saussure tal como ela é assimilada por Lévi-Strauss (1948/2010)no que concerne ao método de análise d'As Estruturas Elementares do Parentesco é então o ponto de partida para a reflexão sobre a interdição do incesto em relação ao pai morto em Lacan. O totem apresentaria para este último a função de símbolo, ou melhor, de significante na estrutura de linguagem que denomina os grupos.

Por exemplo, de acordo com o método estrutural, um clã A não é representado pelo totem C porque este tem algo de semelhante àquele, mas somente porque um clã B, representado pelo totem D, é diferente do clã A na medida em que o totem D é diferente de C. É o que nos ensina Lévi-Strauss (1962/1975) em O Totemismo Hoje, a saber, a divisão entre clãs, grupos, famílias etc. é uma diferença imposta pela linguagem, pela nomeação. Consequentemente, as estruturas elementares do parentesco seriam, na verdade, estruturas de linguagem, já que o fato de um indivíduo pertencer a um clã ou a uma família resultaria do fato de ser nomeado por e nestes grupos. Por sua vez, as trocas [simbólicas] entre os clãs seriam determinadas por estas mesmas estruturas.

Desta forma, a interdição do incesto e, por conseguinte, a prática da exogamia, sem terem nenhuma causa natural, só são possíveis a partir do estabelecimento do parentesco através do nome responsável por uma espécie de ponto inicial no nível da estrutura de linguagem, um ponto zero das produções ditas humanas, isto é, do processo 'civilizatório' e do mundo cultural humano.

Para a compreensão lacaniana, esta noção de nome ou significante fundamental para a estrutura de linguagem - conhecida como Nome-do-pai e assim chamada pela primeira vez em O mito individual do neurótico (Lacan, 1953/2008), palestra proferida no mesmo ano do Discurso de Roma - será então a chave de entendimento em seu retorno a Freud, que se faz pela via de Lévi-Strauss (Zafiropoulos, 2003), para a correlação entre o tabu do incesto, o totemismo e a importância do complexo de Édipo para a sintomatologia neurótica.

Tanto o é que, para o psicanalista francês, mesmo sendo um significante, uma imagem sonora da palavra, o Nome-do-pai é aquele que representa a Lei de organização responsável por instaurar um importante apoio para a justa estruturação da linguagem. Daí este nome ocupar um relevante papel no registro simbólico, das trocas, e ter por função a interdição do desejo pela mãe, ou melhor, pelos objetos de prazer.

Depreende-se em Lacan por esta via, portanto, algo muito próximo da teoria freudiana do coletivo, ou antropologia psicanalítica - muito embora ele não gostasse destes termos(4). Isto é, o inconsciente e a cultura se estruturam, um como avesso do outro, graças ao advento do pacto totêmico reapresentado ao sujeito pelo significante da Lei. E será por meio deste mesmo evento estrutural que o laço social também se configurará originalmente.

Agora, se bem compreendido como o diálogo com a antropologia, feito tanto por Freud quanto por Lacan, nos dá condições para uma noção psicanalítica de laço social, precisaremos voltar àquela importância assinalada anteriormente dada pelo último ao registro do simbólico. Então, nosso próximo passo será contextualizar em meio a toda esta estratégia teórica o que dava a entender Lacan sobre sua prática clínica para, em seguida, resumirmos o papel definitivo desta estratégia na definição de uma ética própria à psicanálise.

 

Da antropologia à ética ou a crise da lei moral

Para dar início a este breve panorama da clínica de Lacan, escolhamos um operador clínico privilegiado por ele e também - não por mera coincidência - central para a organização de sua leitura do inconsciente tal como foi elaborado por Freud: o sujeito do inconsciente.

Resultado da operação fundamental de recalque originário e, portanto, da operação da Lei paterna representada pelo significante Nome-do-pai (ou por que não pelo totem?), o sujeito do inconsciente surge como efeito de linguagem (Lacan, 1960/1966, p.849). Porém, este efeito não será tão somente condicionado pela rede discursiva da linguagem. Seguindo a lógica freudiana de que o inconsciente é o recalcado, a Lei da linguagem atuará justamente sobre o desejo ou vontades humanas. Assim, a proibição sobre o desejo representada pelo mito edípico, para que tenha efeito estrutural de linguagem, precisará de um representante que, na economia do pensamento lacaniano, atuará também como significante: o falo simbólico.

Este outro significante fundamental será naturalmente o representante da falta, do desejo incompleto, e o ponto final da inadequação do desejo humano ao mundo objetal. Em congruência com aquela crítica lacaniana à adaptação imagética entre o Eu e o mundo objetal promovida pela psicanálise de seu tempo, a intervenção analítica pensada por estas vias deveria buscar no registro da estrutura de linguagem o ponto nodal deste desejo, ou seja, o sujeito do inconsciente.

Podemos dizer que por detrás da prática de Lacan, naquele momento dos primeiros anos d'O Seminário e do famoso Discurso de Roma, encontrava-se uma leitura do complexo de castração muito particular na qual o sujeito do desejo inconsciente, aquele que sofre a castração, seria uma negatividade pura inscrita na estrutura de linguagem como significante. De acordo com Safatle (2006, p.144), toda esta racionalidade sobre o modus operandi do recalcado seria condizente com o paradigma clínico do reconhecimento intersubjetivo no qual a análise deveria, no melhor dos casos, levar o sujeito a reconhecer sua falta-a-ser através da queda das relações imaginárias responsáveis pela ilusão de satisfação desta mesma falta constitutiva do humano.

O problema é que o recurso lacaniano a uma lei transcendental (representada pelo significante paterno), ao postular ao sujeito uma falta radical (representada pelo significante fálico), não levaria em conta, ainda segundo Safatle (2006, p.139), a "proliferação de semblantes" produzida pela "irredutibilidade das aparências". Vejamos isto com mais calma.

Ao final de uma sessão do sétimo ano d'O Seminário, Lacan (1959-60/1988, p.90) cita "a crise da moral" do fim do século XVIII, crise que pode ser localizada pela mudança da lei moral positiva - do Supremo Bem aristotélico - em direção à lei negativa de Kant (1788/2003) onde se encontra a razão prática de certo imperativo categórico(5). Logo depois, na sessão seguinte, vemos o autor iniciar o diálogo que ganhará foco três anos depois em Kant com Sade (Lacan, 1963/1966) para indicar o problema colocado pela lei transcendental negativa.

Na verdade, Kant cumpriria um papel muito importante e interno à reflexão lacaniana. Tratava-se de apontar a quê servia a estratégia estruturalista por detrás do paradigma da intersubjetividade. Uma espécie de "autocrítica" (Safatle, 2006, p.181) pela qual Lacan reconheceria seu kantismo na operação da Lei paterna, já que a consequência da máxima kantiana seria a liberação do sujeito face ao objeto ou até mesmo a autonomização do sujeito frente a suas paixões tirânicas. A razão prática - enquanto regra universal da ação - proporia uma espécie de purificação do desejo ao exemplo do que se passa com a intersubjetividade lacaniana. Afinal de contas, a Lei trazida pelo Nome-do-Pai e a simbolização fálica da falta não seriam para o neurótico verdadeiros liberadores da vontade diante das relações objetais e especulares fornecidas pelo estádio do espelho (Lacan, 1949/1966)?

Desta maneira, a partir deste momento ainda propriamente estruturalista, foi preciso a Lacan trazer ao debate Sade para exemplificar como o amor à Lei poderia ser levado ao extremo e assim apresentar outra face. A tal crise da moral seria demonstrada através do carrasco sadeano,

Dolmancé, pois a possibilidade de fazer do outro sujeito um objeto indiferenciado estava inscrita potencialmente na inadequação entre desejo e objeto. Ou seja, é possível transgredir a Lei ao mesmo tempo em que se cumpre sua universalidade gozando simplesmente de sua forma.

Diante da eventualidade de uma mudança da Lei em direção à perversão, Lacan precisou portanto remeter à crítica seu modelo operacional clínico da intersubjetividade e, consequentemente, rearranjar grande parte de sua estratégia estruturalista para com a psicanálise. Isto porque "a estratégia estruturalista de Lacan era em grande parte, como todo o estruturalismo, uma espécie de kantismo aplicado ao campo das ditas ciências humanas" (Safatle, 2006, p.148).

Antes de prosseguir com a solução encontrada por Lacan para este impasse, algumas ressalvas devem ser feitas. Embora exista relevante distância entre a filosofia de Kant e os textos de Sade, não iremos nos adentrar mais nesta querela entre a moralidade kantiana e a sadeana, já que para os fins desta pequena revisão conceitual, a leitura lacaniana apresentada acima nos é suficiente. Também iremos poupar o leitor quanto à temática da perversão propriamente dita. Ela mereceria uma revisão crítica em si mesma. E nós estamos interessados mais na relação da ética psicanalítica com o laço social do que especificamente com as categorias psicopatológicas clínicas e o entendimento lacaniano delas.

Chama atenção então que será posto em marcha um argumento no qual o desejo precisará de um objeto próprio e resistente à purificação promovida pela esfera transcendental da Lei, já que a instauração desta - com tudo que daí deriva - surgiria sobre a fantasia. Se esta conjuga em uma imagem a relação de desejo entre sujeito e objeto desde suas origens esquecidas e, assim, "torna o prazer apropriado ao desejo" (Lacan, 1963/1966, p.785), a estruturação do desejo estaria irremediavelmente banhada também pelas relações de objeto. Mas não por qualquer objeto. Por isto, Lacan introduzirá a Coisa (das Ding), protótipo do conceito de objeto a, denominado assim só em 1962 (Lacan, 1962-63/2005).

Aliás, a Ética da psicanálise (Lacan, 1959-60/1988) começa exatamente por esta Introdução da Coisa, porque promover ou introduzir uma ética "não é o simples fato de haver obrigações, um laço que encadeia, ordena e constitui a lei da sociedade", nem o fato de haver a "troca de bens" permitida pelas estruturas de parentesco. "Ela [a ética] começa no momento em que o sujeito coloca a questão desse bem que buscara inconscientemente nas estruturas sociais" (Lacan, 1959-60/1988, pp.96-7, grifo nosso).

Então, por um lado, a existência do laço social e do registro de trocas simbólicas inaugurados com o universo cultural e simbólico, tal como analisamos anteriormente neste trabalho, deve-se a uma Lei de organização estrutural, mas por outro lado, tendo o recalque originário resultado daí, este laço se dá porque alguma coisa é rechaçada. Simbolicamente, o crime e a relação sexual entre membros de um mesmo grupo parental. Mas para efeito de estrutura, algo cumprindo a função de objeto de desejo; ou mais precisamente, objeto causa de desejo.

Embora efetivamente Lacan (1959-60/1988, p.60) "não [queira] elaborar uma teoria do conhecimento", toda sua articulação sobre sujeito e objeto apresentada no sétimo ano d'O Seminário pode parecer muito mais próxima do debate epistemológico do que propriamente do debate do qual se ocupa a tradição da ética. Acontece que, dado o contexto da autocrítica à estratégia teórica decorrente de sua prática clínica, Lacan precisava diferenciar a Coisa do objeto de apreensão imaginária, do engodo do prazer, gerado pela percepção. Afinal, não se tratava de negar toda sua elaboração precedente na qual constavam um estruturalismo mais estrito, uma clínica do reconhecimento intersubjetivo - o qual implicava no "reconhecimento [...] da infiltração em toda nossa experiência do imperativo moral" (Lacan, 1959-60/1991, p.30) - e toda a crítica que esta comportava a uma psicanálise adaptacionista. Além do quê, esta guinada do pensamento de Lacan não foi instantânea. Estamos apenas nos debruçando sobre um de seus momentos mais marcantes.

Tudo se passa como se Freud (1911/1996) - com sua teoria dos princípios econômicos que regem a psicologia humana - e Aristóteles (2007) - com sua Ética à Nicômaco escrita no século IV a.C. - compartilhassem de uma lógica comprometida com a teoria do agir, com a "ciência da conduta" (Abbagnano, 2000, p.380): a ética.

Naturalmente, o caso aristotélico é o da ética clássica. Assim, a ciência da conduta presente no Ética à Nicômaco, diferentemente da Magna moralia, ao invés de atacar a própria definição de ética - uma espécie de questão direcionada à ação enquanto do humano - começa expondo como toda ação humana converge para um bem maior a ser demonstrado pela ciência política (Wolf, 2010, p.20-8). Isto é, o bem do Estado ou da cidade ou o bem comum seriam a finalidade maior da ação humana, sendo que tal "bem é idêntico para o indivíduo e para o Estado" (Aristóteles, 2007, p.11, tradução nossa). Este bem seria a eudaimonia ou a felicidade. No entanto, de acordo com Wolf (2010, p.28), esta não deveria ser a tradução mais próxima para o conceito, pois a "explicação que Aristóteles apresenta [...] esclarece o significado de eudaimonia. Trata-se [...] do eu zen kaiprattein [...], o viver bem e agir bem".

Já no caso freudiano, as coisas seriam diferentes. A relação entre este último e ética parte da tese defendida por Lacan (1959-60/1988, p.31-2) de que "a lei moral [...] é aquilo por meio do qual [...] se presentifica o real" que "não é imediatamente acessível". Lei esta que "se afirma contra o prazer" e interdita a consumação do desejo.

Mas o que viria a ser este real-não-imediatamente-acessível? Para Lacan, tal categoria pode ser apreendida como o resultado da elaboração própria do pensamento freudiano partindo da oposição básica entre princípio de prazer e o de realidade até aquela entre pulsões de vida e de morte. A realidade imposta pela primeira oposição não seria apenas o prolongamento do princípio de prazer. A nova oposição revelaria "o caráter problemático" (Lacan, 1959-60/1988, p.31) da realidade em Freud. Por esta razão, a reflexão ética sobre a psicanálise teria, a partir daí, como sua ordem de referência a "tensão" (Lacan, 1959-60/1988, p.32) mesma entre o processo primário e o secundário, governados respectivamente pelos princípios de prazer e de realidade.

Como nunca é demais apontar certos problemas envolvendo a confrontação de autores, precisamos enfatizar que embora Lacan tinha em mente que Aristóteles e Freud possuíam em comum uma reflexão ética, sendo a do primeiro referida a uma ordem ideal do melhor dos bens e a do segundo referida a ordem do real não acessível, o psicanalista francês talvez não levasse em consideração duas coisas: 1) Aristóteles, ao que parece, quando conceituava a eudaimonia como sumo bem, estava mais preocupado com a atividade em si do que simplesmente com uma categoria que poderia ser classificada como ideal (Wolf, 2010, pp.28-42); 2) Freud não se dedicou de fato a desenvolver uma ética para a psicanálise. Assim, remetemos o leitor interessado mais profundamente pela confrontação lacaniana entre Freud e Aristóteles a trabalhos como o de di Matteo (2007), Metafísica e Metapsicologia em confronto: Aristóteles e Lacan no Seminário VII.

Sem juízos sobre a validade da questão, o importante aqui é entendermos a articulação própria de Lacan. Até porque ele parecia saber das diferenças entre a psicologia mecanicista de Freud e a ética aristotélica. Mas, como ele mesmo disse, "não podemos deixar de pensar que Freud [...] transponha [...] na perspectiva de sua mecânica hipotética, a articulação propriamente ética" (Lacan, 1959-60/1988, p.42). Vejamos portanto como esta transposição é entendida por ele.

Pensar assim da teoria freudiana do psiquismo sustenta-se em tratar o princípio de realidade como um corretor que "compensa [...] a tendência fundamental do aparelho psíquico", o prazer (Lacan, 1959-60/1988, p.40). Lembremos que toda uma contiguidade de sentidos nos textos de Freud entre o princípio de prazer e princípio de constância, homeostase e inércia, gerava a ideia freudiana de que o prazer seria a finalidade última do aparelho psíquico, mas que à época do Projeto de 1985 (Freud, 1950/1996)(6) estava distante da ideia de constância - esta mais associada ao processo secundário, responsável pela conservação da vida. Ali, o prazer significava algo mais próximo de descarga (Cf. Laplanche, 1970).

Mas Lacan lera aquela contiguidade de sentidos apontando como o prazer também significava conservação de energia, já que a dinâmica do inconsciente - estruturado como linguagem - afetaria a percepção a ponto de fazê-la alucinar a satisfação (Lacan, 1959-60/1988, p.40). A responsabilidade por fazer repetir este 'prazer' - que em termos energéticos e quantitativos não seria exatamente o da descarga em direção à tensão zero - ficaria então a cargo do "discurso que se atém ao nível do princípio do prazer" (Lacan, 1959-60/1988, p.42). De princípio de descarga e satisfação, mais próximo da volta ao inanimado de 1920 (Freud, 1920/1996) este princípio sofreria sua correção, com o próprio desenvolvimento do organismo, pela realidade externa ao sistema do processo primário. Realidade ainda que precária quando se considera a alucinação no nível da percepção do prazer (Lacan, 1959-60/1988, p.43).

Com a dominância do princípio de prazer sendo responsável pela objetalização - isto é, com os objetos sendo moldados a partir da percepção (que em primeira instância deveria estar a serviço do processo secundário e de seu princípio de realidade) - deveria haver uma parte da realidade que não seria cooptada pela busca de prazer. É a partir daí que vemos o real da tese inicial da Ética da psicanálise ser o que designa algo para além ou aquém do prazer promovido pelo discurso do princípio de prazer.

O leitor deve imaginar então a esta altura o porquê da Coisa (das Ding), causa-do-desejo, ser remetida ao real-de-acesso-precário para além do princípio do prazer, pois este pedaço de objeto não é, como o objeto de prazer, "produto da indústria ou da ação humana enquanto governada pela linguagem" (Lacan, 1959-60/1988, p.61). Assim, esta parcela real do objeto que só é encontrada como "coordenadas de prazer" (Lacan, 1959-60/1988, p.69), "fora-do-significado" (Lacan, 1959-60/1988, p.71) e sem representação, funcionará como referência da ação específica para que o estímulo pulsional seja saciado.

A questão toda é que esta ação e a conseguinte satisfação de descarga da pulsão não podem ocorrer graças ao fato da civilização ou do processo cultural e, consequentemente, da subjetivação só se constituírem a partir da interdição desta mesma ação. A Coisa, sendo então a parte do objeto rejeitada na fundação mesma da civilização por meio da interdição do incesto -"condição para que subsista a fala" (Lacan, 1959-60/1988, p.89) -, cumprirá o papel da mãe. E mais importante ainda, ocupará uma posição sem igual na nova estratégia teórica de Lacan em sua leitura da obra freudiana; estratégia que irá em direção a uma topologia da subjetividade.

Ora, o novo paradigma clínico devedor desta estratégia não considerará mais tão e somente a esfera do significante, mas, ao promover uma espécie de confrontação com este pedaço de real que "padece do significante" (Lacan, 1959-60/1988, p.157), agiria também com a responsabilidade de indicar um limite à satisfação não parcial dos prazeres comuns, ou melhor, ao gozo. Limite este que não seria localizável unicamente pelo reconhecimento da Lei, mas também pelo rastreamento deste pedaço de real. Contudo, deixemos também de lado todas as implicações da nova estratégia sobre este novo modelo, já que destrinchá-las abriria digressões para as quais não temos motivo algum para desenvolver aqui, e voltemos para a Ética da psicanálise.

 

Uma ética psicanalítica: a ética lacaniana do desejo

Resumidamente, até aqui estivemos preocupados em descrever como e porque o próprio Lacan (1959-60/1988; 1963/1966) operou teoricamente a passagem de uma antropologia psicanalítica-estruturalista para uma ética psicanalítica. Como não poderia ser diferente, vimos um panorama do que seria, em teoria, a clínica de Lacan. Afinal de contas, o pensamento e conhecimento psicanalíticos resultam desta prática, bem como preveem a sua constante reinvenção. Vimos como sétimo ano d'O Seminário surge com um problema relativo às concepções antropológicas que remontam às teorias freudianas, ao estruturalismo de Lévi-Strauss e à sua clínica do reconhecimento intersubjetivo. Em tempo então, antes de prosseguirmos, façamos mais um esclarecimento quanto à metodologia aqui empregada, pois é provável que o leitor já tenha se questionado sobre esta descrição do trajeto do pensamento de Lacan feita por nós.

Deixamos de abordar algumas questões importantes, como temos assinalado, mas questões que não nos cabe tampouco aprofundar neste trabalho. Escolhemos um recorte de leitura tendo como ponto de partida a visão de que a obra de Lacan comporta uma antropologia e, com isto, uma concepção particular sobre o laço social. Primeiramente, porque queríamos acentuar a relação próxima que esta antropologia psicanalítica tem histórica e conceitualmente com a ética do desejo. E também, porque este caminho nos levaria a interrogar a proposta de Lacan de uma ética psicanalítica em relação ao laço social e, em última instância, ao campo social.

Então, sabemos que Lacan estava ciente, em alguma medida, do quanto um princípio transcendental ou moral da ação, como o imperativo categórico de Kant, poderia ser danoso para o tipo de dispositivo criado por Freud. Mais do que uma Lei estruturante, o desejo, forjado nos domínios da fantasia, também deveria ser referido a uma porção objetal não representável (relativa ao mundo externo e ao corpo). Considerando a psicanálise este ethos do desejo, como se estivesse em profunda referência (ou por que não reverência?) a esta ordem da conflituosa realidade psíquica, dos desejos inconscientes, sua ética deveria se conformar à causa última do desejo, seu motivo, sua finalidade: um bem proibido. Melhor, sua ética teria um modo de funcionamento muito semelhante à própria (re)apresentação da proibição mesma deste bem supremo do desejo.

Esta interdição, à medida que é reatualizada em uma análise, será confrontada até o limite "entre-a-vida-e-a-morte", "na-finda-linha" (Lacan, 1959-60/1988, p.330), como no caso da experiência trágica do herói sofocliano. Tendo a tragédia por função a "purgação" do desejo (Lacan, 1959-60/1988, p. 297) - não obstante, sem purifica-lo - Lacan verá Antígona como o modelo da experiência propriamente analítica. Seu brilho e aquilo que ela possui de "desnorteante" levam-na para "além da família e da pátria" (Lacan, 1959-60/1988, p.300), ou seja, para além da moralidade e da Lei; mas aquém do limite imposto pela condição do desejo, aquém de um suposto encontro com seu bem maior, aquém de uma espécie de prazer supremo, aquém do mais além do prazer corriqueiro e da constância (mais além que significaria a morte). Enfim, aquém do gozo.

Se Lacan entendia a ética aristotélica como "ciência da felicidade" (Lacan, 1959-60/1988, p.313), a ética da psicanálise deveria então se enquadrar ao lado da tragédia, não por uma pregação contra o bem, seja ele o próprio modo de agir, seja ele o sentimento de felicidade, mas pelo fato de o prazer final associado ao melhor dos bens promover "um excesso" com "consequências fatais" (Lacan, 1959-60/1988, p.314), mortíferas. Isto porque Antígona, ao desafiar o representante da Lei para que seu falecido irmão recebesse as honras funerárias adequadas, estaria agindo de acordo com seu desejo, de acordo com sua causa última, seu bem maior, porém intransponível. Por isto ela estaria ali entre o mundo dos vivos e o dos mortos.

Portanto, a ética psicanalítica comportaria, sobretudo, além do reconhecimento do desejo, da falta, a confrontação com a Coisa, objeto da falta por excelência. Tal ética dirigirá uma análise como uma verdadeira travessia das fantasias inconscientes até seu núcleo onde, de acordo com a fórmula lacaniana ($◊a), o desejo de se situa igualmente entre o sujeito do inconsciente e o objeto, uma espécie de imagem especular do outro, "resíduo de presença [...] ligado à constituição subjetiva", e "a junção mais segura do sujeito com o corpo" (Lacan, 1966-67, p.191). E mais, esta verdadeira cartografia, com suas coordenadas de prazer, será o ponto de referência primordial ao desejo - quase como sua falta originária - e ao mesmo tempo, limite real máximo para o gozo mortífero de um suposto fim do desejo.

Mas por que - e isto ainda não está claro - a ética do desejo inconsciente desenvolvida por Lacan começa a ser colocada em prática quando o sujeito se questiona sobre o que quer mais intimamente, sobre este bem inconscientemente presente nas estruturas sociais?

Pois bem, já que não se trata de ignorar "a ordem dos poderes" (Lacan, 1959-60/1988, p.377), mas tampouco de um "Tu deves incondicional" (Lacan, 1959-60/1988, p. 378) da razão prática kantiana; e tendo considerado que a ética do desejo situa-se sobre a fronteira entre a ordem da cultura, da Lei, e a referência real de orientação ao desejo, ou seja, sobre a fronteira mesma da fantasia, fábrica do desejo; esta ética psicanalítica atua sobre o laço social à medida que a subjetividade mais radical seja reintroduzida aí.

Lembremos que, se a civilização depende de uma interdição do desejo em direção à mãe e de outra interdição quanto ao assassinato do pai, respectivamente, interdição do incesto e proibição do sacrifício totêmico fora do ritual propício para tal (Freud, 1913/1996, p.137), então o desejo, na medida em que é atravessado pela Lei, torna-se inconsciente, recalcado. Recalque originário que funda a civilização e sustenta-se como avesso do mítico assassinato.

Considerando que este crime imemorial foi a causa mesma (assim como o desejo pelas mulheres-objeto) da associação entre os irmãos, sem o qual o laço social não se formaria tal como o conhecemos ou, no mínimo, não poderia ser concebido tendo como referência mestra o símbolo totêmico ou o pai morto que veio a substituir o pai primevo e real; interrogar-se sobre o bem inconsciente, sobre a causa do desejo, é referir-se a esta ordem onde se concebe uma estrutura social que faz laço (a ordem discursiva, a ordem propriamente simbólica), mas sem deixar de confrontar o interditado nas formas de fantasias de incesto e de crime contra o próximo, pois nestes redutos habitaria a marca maior da subjetividade.

Acontece que ter como referência esta ordem discursiva, em sua figura mais radical, deriva como vimos, dentre outras coisas, de uma antropologia que acaba por instaurar na psicanálise concepções teóricas próprias para além da clínica individual. Mas obviamente - se não nos esquecermos que uma teoria, por mais abstrata que seja, não aparece do nada -, tais concepções também resultam de um dispositivo onde haveria supostamente uma modalidade particular de laço que se faz (ou é promovida) quando uma análise se realiza. O que nos leva diretamente ao Seminário, livro XVII (Lacan, 1969-70/1991).

A despeito de toda a complexa trama conceitual ou da operacionalidade clínica do que é discutido neste ano d'O Seminário, vemos Lacan articular justamente o quê quando fala a respeito do discurso analítico? Este discurso, no qual a causa do desejo é o agente, é aquele que escreve a impossibilidade entre o objeto a e o sujeito do inconsciente (Cf. CASTRO, 2009). Não vemos como esta escrita, depois de tudo o que foi discutido até aqui, não poderia ser resultante de uma conduta ou ação que tem como finalidade a confrontação com os limites da fantasia proposto por aquela ética trágica do desejo.

Chamamos a atenção do leitor então para o fato de que o discurso analítico, embora não fique explicitado no texto em questão (Lacan, 1969-70/1991), tem profundas ligações com a ética da psicanálise. Além do quê, a ideia de discurso ali talvez não estivesse tão distante de uma antropologia psicanalítica, pois, por mais que esta concepção seja diferente da de linguagem e não mais tão estruturalista, sendo o discurso ali aquilo que "ultrapassa em muito a palavra" (Lacan, 1969-70/1991, p.11), ela gravita em torno da ideia da existência de certa estruturação entre sujeito e Outro, ou seja, de uma ideia de laço social.

Finalmente, depois de apresentada uma antropologia psicanalítica, após termos percorrido uma das facetas do trajeto de Lacan, feita a contextualização do Seminário VII e principalmente após a ética ali apresentada ser remetida ao laço social, precisamos voltar a nossa questão inicial.

 

Concluindo...

Se a psicanálise, ao menos naquilo previsto pela ética desenvolvida por Lacan (195960/1988), deve ter como horizonte a ordem do desejo inconsciente; e se analista e analisando são posições em uma modalidade do laço social onde a causa deste desejo se apresenta interditada; esta referência à ordem do desejo para a conduta analítica deveria atuar por meio de uma espécie de reatualização do laço instituído pelo advento da cultura e da ordem discursiva sob a égide da Lei. Isto é, a ética da psicanálise ao colocar a questão "agiste em conformidade com teu desejo?" (Lacan, 1959-60/1988, p.373)(7) estaria promovendo necessariamente uma reintrodução do laço social, mas às avessas, ou seja, pela promoção da subjetividade radical do recalcado.

Portanto, acreditamos que, para o nosso propósito de interrogar a psicanálise em relação ao campo social, atentar para a ética do desejo nos dá condições para pensar (ao menos teoricamente) na análise como um dispositivo no qual o laço social - que originariamente exclui para os domínios da fantasia seu esfacelamento - e o campo social atuam minimamente como pano de fundo imprescindível da conduta analítica, mesmo que ela esteja voltada em primeiro plano para a subjetividade ou para a singularidade.

 

Notas

(1) A pesquisa da qual deriva este pequeno estudo também teve como produto uma dissertação de conclusão para o Master Recherche em Psicologia realizado no departamento de Estudos Psicanalíticos (UFR d'Études psychanalytiques) da Université Paris-Diderot, França, entre 2011 e 2013. A pesquisa fez parte do programa de formação em pesquisa intitulado "Psicanálise e campo social". Este estudo foi baseado majoritariamente em alguns capítulos de nossa dissertação.
(2) Escolhemos trabalhar aqui com a Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Freud (1996). Simplesmente por ela ser ainda a mais completa presente em nossa língua. Contudo, cotejamos as citações com os originais da Sigmund Freud Gesammelte Werke, já que é sabido que Edição Standard Brasileira apresenta problemas. Também por conta disto, optamos por utilizar os termos em português que hoje são mais usados quando, como neste caso - "Alle Bindungen, auf denen die Masse beruht, sind von der Art der zielgehemmten Triebe" (Freud, 1921/1991, p.157, grifo nosso) -, a tradução brasileira apresentar grande distância do termo mais corriqueiro na atualidade, mas não sem antes cotejar com o original..
(3) O mesmo ocorre aqui. No original, "Es wird uns nicht leicht, die Begriffe der Einzelpsychologie auf die Psychologie der Massen zu übertragen." (Freud, 1939/1991, p.241, grifo nosso).
(4) "Se psicanalista, eu pretendesse de alguma maneira introduzir, o que se intitula ridiculamente, uma antropologia psicanalítica, me bastaria para refutar lembrar, na entrada deste domínio, verdades constituintes que a psicanálise traz consigo." (Lacan, 1968-69/2006, p. 12, tradução nossa).
(5) O imperativo categórico kantiano se estrutura assim: "age de tal maneira que máxima de tua vontade possa sempre valer como princípio de uma legislação que seja princípio de uma legislação que seja para todos" (Lacan, 1959-60/1988, p.98, grifo nosso).
(6) Vale a pena notar que para Lacan (1959-60/1988, p.62), o Projeto apresenta "a teoria de um aparelho neurônico em relação ao qual o organismo permanece exterior, assim como o mundo exterior".
(7) Um dado interessante aqui é que esta pergunta da ética psicanalítica aparece apenas no texto estabelecido por Jacques Allain-Miller. Nas transcrições não-publicadas do sétimo ano d'O Seminário (Lacan, J., 1959-60) com as quais cotejamos a nossa edição de trabalho, ela não aparece.

 

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Recebido em: 22/09/2014
Aprovado em: 11/12/2014