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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versión On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.8 no.1 Rio de Janeiro enero./jun. 2016

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2016v1p.60 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

A enunciação da feminilidade em “Rebecca”, de Hitchcock

 

The enunciation of femininity in Hitchcock's Rebecca

 

 

Amadeu de Oliveira Weinmann

Psicanalista, professor do PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura / UFRGS. Referência: Weinmann, A. O. Endereço: Av. Montenegro, 186 / 602 – CEP: 90.460-160 – Porto Alegre / RS

 

 


RESUMO

O artigo visa delinear o modo como se dá a enunciação da feminilidade em "Rebecca", de Hitchcock. Com esse fim em vista, toma como matéria empírica não apenas a narrativa fílmica em questão, mas também dois aspectos do contexto em que ela se insere: a filmografia hitchcockiana e o cinema para mulheres dos anos 1940. A hipótese deste trabalho é que, por meio de sua protagonista, "Rebecca" encena a trajetória de uma mulher rumo à inscrição simbólica. Em contrapartida, a personagem Rebecca encarna, na feminilidade, aquilo que insiste em não se inscrever, um excesso de gozo que se enlaça ao discurso fílmico por meio do que o filósofo Slavoj Zizek nomeia "sinthoma" hitchcockiano.

Palavras-chave: PSICANÁLISE; CINEMA; FEMINILIDADE; REBECCA; HITCHCOCK.


ABSTRACT

The article aims to outline the way the enunciation of femininity emerges in Hitchcock's "Rebecca". Having this objective in mind, the empirical matter is not only the filmic narrative but also two aspects from the context it is part of: Hitchcockian filmography and woman's film of the 1940s. Our working hypothesis is that, through its protagonist, "Rebecca" enacts the trajectory of a woman towards symbolic inscription. On the other hand, the character Rebecca embodies things in femininity that insist in not inscribing themselves, an excess of joy that connects to the filmic discourse through what the philosopher Slavoj Zizec calls Hitchcockian "sinthome".

Keywords: PSYCHOANALYSIS; CINEMA; FEMININITY; REBECCA; HITCHCOCK.


 

 

Introdução

 

 

"Rebecca - a mulher inesquecível" (1940), primeiro filme de Alfred Hitchcock em Hollywood, é inteiramente atravessado pelo tema da feminilidade. "Rebecca" inicia com uma voz feminina fora de campo, o que já nos coloca uma interrogação acerca da identidade da narradora, e mostra-nos, quase o tempo todo, uma protagonista que não coincide com a personagem mencionada no título - a qual nunca vemos! É na tensão que se estabelece entre essas duas mulheres que se produz uma singular reflexão hitchcockiana acerca do feminino. A fim de proceder à análise de "Rebecca", conjugamos duas abordagens: uma que se debruça sobre o dispositivo narrativo dessa película hitchcockiana e outra que contempla elementos extrafílmicos, mas ainda cinematográficos, com os quais "Rebecca" mantém relações de parentesco. Nesse sentido, interrogamos a feminilidade no cinema de Hitchcock e no cinema hollywoodiano dos anos 1940. Tanto na análise do dispositivo narrativo, quanto na dos elementos extrafílmicos, o diálogo com teóricas feministas do cinema impôs-se, dada sua produção nesse campo.

A hipótese assumida neste trabalho é que, por meio da narradora, nunca nomeada, "Rebecca" expõe a trajetória de uma mulher rumo à inscrição simbólica, ou, dito de outro modo, à enunciação da feminilidade. Em contrapartida, por meio daquela que é muito falada, mas jamais vista - Rebecca -, "Rebecca" expressa, na feminilidade, aquilo que insiste em não se inscrever, um excesso de gozo que se enlaça ao discurso fílmico por meio do que Zizek (2009, 2010a), inspirado em Lacan (l975-1976/2007), nomeia "sinthoma" hitchcockiano. Nas "Novas conferências de introdução à psicanálise", Freud (1933/1978) sugere haver algo na feminilidade que talvez só a arte possa expressar. "Rebecca", de Hitchcock, é um testemunho disso.

 

Cinderela?

Nesta seção, o filme "Rebecca", de Hitchcock, é abordado desde a perspectiva de seu dispositivo narrativo. De partida, uma voz feminina, oriunda de fora do campo visual, diz: "ontem à noite, sonhei que voltava a Manderley". Simultaneamente, imagens oníricas oferecem-se aos nossos olhos e um longo travelling para frente conduz-nos, através de uma trilha sinuosa e tomada pelo mato, até a mansão abandonada. Ao final dessa trajetória, escutamos o comentário da narradora: "jamais voltaremos a Manderley. [...] Mas, certas vezes, em sonhos, eu volto àqueles estranhos dias que começaram no sul da França". Não resistimos a formular a pergunta: quem fala? Inevitavelmente, também, interrogamo-nos: de quem é esse olhar onírico que toma a nós, espectadores, como cúmplices em sua visita a um território interditado?

Em Monte Carlo, uma órfã (Joan Fontaine), que trabalha como dama de companhia, é pedida em casamento por um lorde inglês, Maxim de Winter (Laurence Olivier). É a Cinderela dos tempos modernos, notam Hitchcock e Truffaut (2010). A vida da moça não é, contudo, um conto de fadas. No castelo de Manderley, o fantasma de Rebecca - ex-mulher de Maxim - a assombra. A jovem Sra. de Winter supõe que seu marido ainda ama Rebecca e confere a esta, no que é reforçada por todos a seu redor, os mais valiosos atributos femininos. E esse parece ser o ponto nodal do filme: o amor da jovem Sra. de Winter por Rebecca. Tal como a Sra. K para Dora (Freud, 1905/1978), a ex-mulher de Maxim encarna, para a jovem esposa, um saber acerca do que a atormenta: o que é ser uma mulher?

O acesso à feminilidade parece, no entanto, bloqueado à jovem Sra. de Winter. Sua posição frente a Rebecca é de cristalizada alienação. E nisso intervém a presença da Sra. Danvers (Judith Anderson), a governanta de Manderley. Danny, como é conhecida na intimidade, incumbe-se de preservar a memória de Rebecca em cada canto do castelo. Evitar a segunda e definitiva morte de Rebecca - a simbólica - é, não apenas razão, mas também condição de sua existência. Espécie de espectro de sua ex-patroa, Danny atormenta a jovem esposa realçando sua insignificância. Em um ato carregado de sadismo - a cena do vestido de festa -, a governanta induz a moça a identificar-se com Rebecca, a fim de mostrar o absurdo dessa pretensão. Uma vez que Max não se contrapõe às atitudes de Danny, sua esposa entende que um forte elo amoroso ainda o prende a Rebecca. É preciso que algo do passado de Maxim venha à tona, para que a jovem senhora compreenda que os afetos que o enlaçam à ex-esposa são o ódio, a culpa e a impotência.

 

 

Eis o ponto de virada do filme. O aparecimento do cadáver de Rebecca é a ocasião -tensa, oscilante, mas irreversível - de sua morte definitiva. Nem Danny, nem Manderley sobrevivem a ela. Nesse sentido, é significativo que o encontro da gata borralheira com seu príncipe dê-se fora do espaço confinado do palácio, inexoravelmente identificado a sua soberana. Isso nos coloca, porém, um problema: supondo que a voz em off do início do filme é da jovem Sra. de Winter, por que ela ainda sonharia com o retorno a Manderley? Tal questão obriga-nos a retomar o fio condutor desta reflexão, que é a pergunta acerca das singularidades do dispositivo narrativo de "Rebecca - a mulher inesquecível".

Em "Ensaio sobre a análise fílmica", Vanoye e Goliot-Lété (2009) assinalam uma disjunção narrativa, no prólogo de "Rebecca". Enquanto a voz se situa no presente da enunciação - "ontem à noite, sonhei que voltava a Manderley" -, a imagem reporta-se a um passado recente: ao sonho propriamente dito. No entanto, o sujeito que narra (e não podemos esquecer que o fluxo de imagens cinematográficas também configura uma narrativa), ainda que cindido e não identificado, apresenta-se na primeira pessoa do singular. Quando opera o corte e, em Monte Carlo, inicia-se o longo flashback, em que consiste o restante do filme, a narrativa na primeira pessoa desaparece; tendemos a pensar que o narrador torna-se onisciente. É preciso lembrar, porém, o final do prólogo, quando a narradora se refere "àqueles estranhos dias que começaram no sul da França". "Rebecca" é um filme de reminiscências. A jovem Sra. de Winter é, simultaneamente, quem nos conta essa história e o foco de sua narrativa.

Em "Rebecca", uma mulher mostra o percurso tortuoso, por meio do qual ela se tornou uma mulher. Mas, por que a esposa de Max ainda sonhava com o retorno a Manderley? Talvez porque tenha sido ali, na tensa confrontação com aquela que a protagonista imaginava enfeixar os mais valiosos signos da feminilidade, que se deu esse processo. Para a jovem Sra. de Winter, Rebecca não era apenas uma mulher; ela era a mulher. Se, por um lado, a moça enxergava-se como a imagem simétrica e invertida da ex-esposa de Maxim, por outro, almejava ser como ela. Essa especularidade é particularmente nítida no jogo que Hitchcock estabelece entre os quartos das duas mulheres. Enquanto o da jovem esposa situa-se na ala leste e quase nunca era usado, o da ex-mulher fica na ala oeste e não o é mais. Além disso, o quarto de Rebecca, nas palavras da Sra. Danvers, é o "mais bonito da casa, o único de onde se pode ver o mar". E essa sala de espelhos tem outro ângulo, ainda mais inusitado. Enquanto a câmera foca a jovem Sra. de Winter ao longo de quase todo o filme, seu nome nunca é dito. Ela permanece anônima. Em contrapartida, jamais vemos imagens de Rebecca, mas ela é falada o tempo todo. Tal alienação à imagem da mulher ideal é mortífera. Nunca a segunda esposa de Max esteve tão perto da morte, como quando vestida como Rebecca e no quarto desta. Nesse sentido, é intrigante o papel da Sra. Danvers. Ela é quem assinala a irredutível diferença entre a viva e a falecida e, ao mesmo tempo, quem incita a essa identificação mortífera.

O anonimato da jovem Sra. de Winter tem como correlato seu mutismo em muitas cenas, entre elas aquelas em que Maxim a repreende. Mas é principalmente na presença da Sra. Danvers que a moça, aterrorizada, emudece, como quando flagrada no quarto de Rebecca. Somente quando Max revela a verdade acerca de seu relacionamento com Rebecca é que esta cai de seu lugar inexpugnável e a jovem pode assumir a condição de sujeito de discurso. Ao longo desse processo, a moça perde a ingenuidade e acede à feminilidade. Dito de outra forma, desloca-se da posição de quem demanda amor para a de desejada por seu marido. Agora, ela tem uma história para contar: a de sua travessia de menina a mulher. Algo ela perde, porém, nesse percurso: Manderley. Afinal, embora pareça, "Rebecca" não é um conto de fadas.

 

A feminilidade no cinema de Hitchcock

Em "Fascinado pela beleza", Spoto (2008) define o mestre do suspense como um misógino. Não é esse o enfoque metodológico do presente trabalho. Importa-nos analisar não a personalidade de Alfred Hitchcock, mas o cinema que leva sua assinatura - e deixamos para os interessados nessa ordem de problemas o esforço de descrever eventuais vínculos entre um e outro. No que concerne a esta seção, procuramos delinear a feminilidade que se constitui nas dobras do discurso fílmico hitchcockiano.

Nessa perspectiva, Mulvey (2008) aporta importantes contribuições. Em "Prazer visual e cinema narrativo", de 1975, essa pioneira dos estudos feministas do cinema propõe uma abordagem psicanalítica crítica da cultura patriarcal e do inconsciente falocêntrico por ela engendrado. A fim de operar suas análises, Mulvey lança mão dos conceitos de pulsão escópica e de estádio do espelho. Do primeiro, extrai a importância do olhar no campo do erotismo. Do último, que a constituição narcísica decorre da identificação a uma imagem. Entrelaçando esses conceitos, a autora sugere que o fascínio exercido pelo cinema hollywoodiano resulta de sua sintonia com a ideologia patriarcal, pois ele situa a mulher como um objeto do olhar masculino e o homem como o construtor da narrativa, incitando processos identificatórios em espectadores de ambos os sexos. No entanto, em uma cultura falocêntrica a feminilidade evoca a ameaça de castração. De acordo com Mulvey, o cinema ilusionista elide tal perigo por meio de duas estratégias: o controle voyeurístico do corpo feminino e a transformação da mulher em fetiche tranquilizador.

Com o intuito de mostrar a legitimidade de suas elaborações conceituais, Mulvey analisa três filmes de Hitchcock: "Janela indiscreta" (1954), "Um corpo que cai" (1958) e "Marnie, confissões de uma ladra" (1964). Em "Janela indiscreta", Jeffries (James Stewart), um fotógrafo obrigado a permanecer sentado em uma cadeira de rodas em função de uma perna quebrada, espia pela janela de seu apartamento todos os movimentos de seus vizinhos. Nem sua bela namorada Lisa (Grace Kelly) consegue deslocar seu impulso escopofílico. É somente quando ingressa no universo investido pelo voyeur, que ela se torna atraente a seus olhos - mas não sem antes ter sido oferecida como um fetiche para o espectador. Em "Um corpo que cai", a câmera subjetiva predomina. Na maior parte do filme, vemos o que o detetive Scottie (James Stewart) vê. E o que o olhar de Scottie persegue é a linda Madeleine/Judy (Kim Novak), cuja destruição ele não apenas observa, mas provoca com seu voyeurismo inquiridor. Em "Marnie, confissões de uma ladra", a beleza da protagonista, encenada por Tippi Hedren, mescla-se à culpa, da qual ela é salva pelo olhar ao mesmo tempo desejante e vigilante de Mark Rutland (Sean Connery).

Em The women who knew too much ("As mulheres que sabiam demais"), Modleski (2005) também adota a hipótese de um inconsciente próprio à cultura patriarcal e procura examinar suas implicações no cinema de Hitchcock. Com esse fim em vista, toma como matéria empírica sete filmes do diretor inglês: "Chantagem e confissão" (1929), "Assassinato!" (1930), "Rebecca", "Interlúdio" (1946), "Janela indiscreta", "Um corpo que cai" e "Frenesi" (1972). De suas reflexões acerca dessas películas, comentaremos quatro: as de "Rebecca", "Interlúdio", "Janela indiscreta" e "Um corpo que cai". Tal recorte privilegia filmes mais importantes de Hitchcock, mas também decorre da premissa de Modleski de que os dois primeiros são narrados do ponto de vista feminino e os dois últimos, do masculino -distinção interessante para os fins deste trabalho.

Em sua análise de "Rebecca", Modleski parte do conflito entre Hitchcock e o produtor David O. Selznick em torno da elaboração do roteiro. Enquanto o diretor tencionava eliminar alguns aspectos da novela homônima de Daphne du Maurier, na qual se inspira o filme, fortemente identificados com um estilo literário voltado, preferencialmente, para um segmento do público feminino - o que denominamos romance água com açúcar -, Selznick almejava ser fiel ao best-seller da escritora inglesa precisamente por seu poder de atingir esse mercado. Posteriormente, o mestre do suspense dirá que "Rebecca" "não é um filme de Hitchcock" (Truffaut, 2010, p. 125). De acordo com Modleski, os efeitos fílmicos da disputa entre os dois homens pelo destino dessa mulher expressam com nitidez as impossibilidades do patriarcado tanto no sentido de assimilar, quanto no de expurgar a feminilidade.

Outro aspecto realçado pela autora é que, na contramão de toda a produção hollywoodiana, que mostra a problemática edípica invariavelmente da perspectiva masculina, "Rebecca" a trata do ponto de vista feminino, e isso implica apontar o excesso de identificação da menina com sua mãe, derivado do vínculo pré-edipiano que as enlaça. Dito de outro modo, envolve destacar a alienação especular da moça às suas substitutas maternas; no caso da jovem Sra. de Winter, à Sra. Hopper (Florence Bates), de quem é dama de companhia em Monte Carlo, à Sra. Danvers e à mais importante de todas: Rebecca. Em seu percurso rumo ao pai/marido, a moça tem de destronar, uma a uma, a essas poderosas mulheres. Modleski aponta, no entanto, o caráter paradoxal dessa trajetória. Se, por um lado, ela dá acesso ao simbólico, por outro, inscreve a feminilidade na ordem fálica. Em contrapartida, Rebecca condensa a resistência a tal inscrição. Ela não apenas encarna a recusa à lei sexual do patriarcado, como descentra o filme de sua trama edípica. Tal como uma assombração, que opera para além dos limites do visível, ela produz uma abertura para o que está fora de campo: a feminilidade não domesticada. Não por acaso, o filme leva seu nome.

Em "Interlúdio", Modleski salienta o vínculo da protagonista, Alicia Huberman (Ingrid Bergman), com seu pai. Pelo fato de ser ele um traidor, ela é promíscua; a tensão à lei é seu modo de enlace. Em contrapartida, o agente T. R. Devlin (Cary Grant), encarregado pelo serviço secreto norte-americano de cooptar Alicia para uma missão de espionagem, é a antítese do pai da moça: um austero representante da lei. Se, por um lado, Devlin almeja salvar Alicia de seu passado, por outro, atormenta-se com ele. A agência de espionagem soluciona sua indefinição instruindo-o no sentido de aproximar o objeto de seu desejo de Alex Sebastian (Claude Rains), um nazista amigo do pai de Alicia que fora apaixonado por ela. Ao casar-se com Alex - assim como seu pai, um fora da lei (a-lex) -, a protagonista fica ameaçada de dois lados: tal como no film noir, um olhar masculino inflexível - o do homem que não assume seu desejo por ela e ainda a entrega a outro - visa controlar os transbordamentos de sua sensualidade, mas, tal como no filme gótico, um risco de morte permeia seu casamento. Ao longo de um torturante processo purgatório, Alicia entrega-se à destruição de si própria como forma de punir Devlin por sua hesitação.

Em seu comentário acerca de "Janela indiscreta", Modleski adota como ponto de partida a afirmação de L. B. Jeffries, feita para a enfermeira Stella (Thelma Ritter), de que não se casa com Lisa Freemont porque ela é perfeita demais. Para a autora, o voyeurismo do fotógrafo visa desviar seu olhar dessa imagem sem falhas, que lhe devolve o espectro de sua própria fragmentação, sinalizada por meio da perna quebrada. Nesse sentido, é significativo que o crime de Lars Thorwald (Raymond Burr), vizinho investigado por Jeff, envolva o esquartejamento de sua esposa Anna (Irene Winston). De acordo com Modleski, em tal ato aloja-se o anseio do protagonista de livrar-se de um quantum de angústia, mediante sua projeção no corpo de uma mulher. Nessa leitura, o controle masculino do erotismo feminino, sustentado por Mulvey, é um macguffin - artifício que o mestre do suspense utilizava para despistar seu público. É a fragilidade de Jeffries diante da exuberante sensualidade de sua namorada o que se sobressai nesse filme de Hitchcock. Na cena final, um Jeff politraumatizado é velado por Lisa vestida em trajes masculinos. Mãe fálica?

A fim de dissecar "Um corpo que cai", Modleski recorta um plano aparentemente irrelevante do filme. Escondido atrás de uma porta, Scottie espia Madeleine em uma floricultura. De repente, a moça, que está de costas, volta-se e anda em direção ao detetive. Após o corte do plano subjetivo, vemos, em contracampo, Scottie e a imagem de Madeleine em um espelho. Neste plano, revela-se o que angustia o protagonista. Sua vertigem é a de ser tragado por esse espectro. Não é a esposa de Gavin Elster (Tom Helmore) que é possuída por Carlotta Valdes, mas John "Scottie" Ferguson que é obcecado pelo fantasma daquela loira perturbadora. É a decomposição identitária do personagem masculino, por efeito de seu encontro com uma mulher fascinante, o mote de "Vertigo". Não por acaso, no sonho de angústia, que marca a passagem da parte inicial para o final do filme, o detetive depara-se com uma sepultura aberta e vê-se caindo rumo à morte. Nessa perspectiva, Scottie subtrai-se à melancolia e cura-se da vertigem projetando em Judy sua identificação com Madeleine. Agora, é o corpo dela que cai.

Embora esses comentários ao trabalho de Modleski não façam justiça à riqueza de suas análises, podem-se delinear, a partir deles, algumas distinções entre as concepções dessa autora e as elaborações conceituais de Mulvey. Em "Prazer visual e cinema narrativo", encontra-se uma leitura monolítica da filmografia hollywoodiana - e da de Hitchcock, em particular. A mulher é um objeto do olhar masculino, o homem é o senhor da narrativa, o público masculino deleita-se em sua identificação com o herói e à espectadora só é possível um gozo masoquista. Em contrapartida, em The women who knew too much, as análises são mais complexas. Em "Rebecca" e "Janela indiscreta", as protagonistas lutam para conquistar o olhar de seus homens. Em "Rebecca" e "Interlúdio", a história é narrada da perspectiva feminina. Em "Interlúdio", o masoquismo de Alicia fere também o homem que a despreza.

Ademais, é no mínimo desconfortável a identificação do espectador com o atormentado Max de Winter, o hesitante Devlin, o impotente Jeffries e o obcecado Scottie. No cinema de Hitchcock, mulheres fascinantes pagam um preço elevado pelo poder que exercem sobre os homens, mas estes não saem impunes; a solidez de sua masculinidade está permanentemente na berlinda.

Em La femme n'existe pas - em português: "A mulher não existe" -, Slavoj Zizek (2010b) analisa "A dama oculta" (1938) à luz do conhecido aforismo lacaniano. Nesse filme de Hitchcock, Mrs. Froy (Dame May Whitty) desaparece em um trem e é procurada por sua jovem companheira de viagem, Iris Henderson (Margaret Lockwood). No entanto, todos os passageiros negam ter visto a senhora e insinuam tratar-se de uma alucinação da moça. De acordo com o filósofo esloveno, a temática da mulher desaparecida é recorrente no cinema. Nela se expressa o fantasma da mulher capaz de preencher a falta em um homem, isto é, daquela com quem a relação sexual seria possível. Evidentemente, essa mulher não existe. Dela não há registro simbólico. Dito de outra forma, o encontro com ela só pode ser alucinatório. Por outro lado, ela existe, sim, mas carrega em si algo de mortífero, para a mulher que a encarna, e de enlouquecedor, para o homem que a deseja. Não é este o drama de Rebecca e Max de Winter, em "Rebecca", e de Judy e Scottie, em "Um corpo que cai"? Não por acaso, Rebecca e Madeleine também desaparecem.

 

A feminilidade no cinema hollywoodiano dos anos 1940

A entrada dos EUA na II Guerra Mundial, no início dos anos 1940, desestabiliza os conceitos de masculinidade e feminilidade, vigentes em Hollywood (Tay, 2003). Por um lado, acarreta a convocação das mulheres para que ocupem os lugares de seus namorados e maridos nas fábricas. Intitulada Rosie, the riveter ("Rose, a rebitadora"), essa campanha estatal apresenta uma imagem masculinizada da mulher trabalhadora, associada à afirmação de sua capacidade de incorporar-se ao esforço de guerra - embora prometa o retorno à felicidade doméstica ao final do conflito. Por outro lado, a disseminação de neuroses de guerra entre os soldados que retornam dos campos de batalha implica a crise do estereótipo masculino de invulnerabilidade. Tais processos sociais introduzem modificações importantes no público do cinema - agora densamente feminino - e nos próprios gêneros cinematográficos, constituindo o que Doane (1987) denomina cinema para mulheres dos anos 1940. É nesse cenário que proliferam o film noir e o filme gótico.

Em sua análise de "A dama de Shanghai", de 1947, Kaplan (1995) lança uma luz sobre o lugar da femme fatale no film noir. De acordo com a autora, essa vertente do cinema hollywoodiano dos anos 1940 retrata as ansiedades masculinas frente à emergência de uma mulher independente. Nesse filme de Orson Welles, o processo investigativo, típico do noir, assume a forma de um esforço de compreensão, por parte do narrador - o marinheiro Michael O'Hara (o próprio Welles) -, dos artifícios utilizados pela bela Elsa Bannister (Rita Rayworth), a fim de desvencilhar-se deles. Isso implica conceber a femme fatale como um enigma, isto é, como um objeto do saber que resiste à pulsão epistemofílica - intimamente vinculada à de domínio - masculina. O caráter incompreensível e ingovernável desse modo de constituição da feminilidade não é assimilado, no entanto, pela ordem patriarcal sem alguma forma de punição. Elsa não pode realizar-se no amor, moralmente é degradada (entrega-se para o homem que lhe oferece mais dinheiro) e paga com a vida por imiscuir-se no mundo do crime, tradicionalmente masculino, e por ferir de morte o coração de um tolo.

Mascarello (2008) realça outro aspecto desse problema. De acordo com o autor, o tema do crime e de sua investigação é estruturante do film noir e concerne à crítica dos fundamentos da ordem social estadunidense, abalados pela guerra. No que tange às relações entre os gêneros, o noir expressa a desconfiança recíproca entre homens e mulheres e a fragilização masculina diante do aparecimento de uma feminilidade mais autônoma. Tal reflexão é explicitamente realizada, porém, desde a perspectiva masculina, o que se evidencia pelo uso frequente da narração em voz over pelo protagonista. E, na contramão da tradição hollywoodiana, este é apresentado como um anti-herói. Ao bancar o tipo durão, o protagonista do noir apenas defende a cidadela de sua masculinidade ameaçada. Nesse sentido, a femme fatale consiste em uma criação masculina, sobre a qual incidem os desejos e temores do homem norte-americano dos anos 1940. É relevante assinalar que sua contrapartida - a mulher redentora, isto é, a esposa convencional - também é motivo de ansiedade, pois encarna o perigo de domesticação do protagonista.

No filme gótico, gênero ao qual pertence "Rebecca", a construção da feminilidade é distinta. Inspirada na literatura gótica - cuja obra paradigmática é Jane Eyre, de Charlotte Bronte -, essa filmografia carrega em si uma problematização do matrimônio, realizada desde a perspectiva feminina. Dentre outros, destacam-se nessa vertente do cinema para mulheres dos anos 1940: "Suspeita" (1941), de Alfred Hitchcock, "À meia luz" (1944), de George Cukor, "O segredo da porta fechada" (1948), de Fritz Lang, e "Coração prisioneiro" (1949), de Max Ophuls. Embora admita variações, sua trama tende a adotar o seguinte modelo (Tay, 2003; Coppel, 2007; Doane, 1987): uma mulher jovem e desamparada pensa ter encontrado a felicidade no casamento com um homem rico e maduro, a quem ela mal conhece. Trata-se de seu príncipe encantado, do homem de seus sonhos. Ela logo percebe, no entanto, algo de sinistro em seu marido. Ele parece atormentado por segredos familiares, que concernem a outra mulher, cujo espectro perturba a paz conjugal, e ela vê-se confinada no interior de uma casa sombria - em geral, uma mansão ou um castelo -, na qual frequentemente há um quarto cujo acesso é proibido. Tormentas, mar bravio e névoa compõem um ambiente assustador. Uma ameaça de loucura ou de morte paira sobre a protagonista. Ao longo dos anos 1940, contudo, as suspeitas da moça em relação a seu esposo deslocam-se. Se, no início da década, mostravam-se infundadas e o casal reconciliava-se no final - como em "Rebecca" -, no fim desse período, elas confirmam-se e a jovem escapa dos perigos do casamento com o apoio de outro homem, com quem reconstitui sua vida amorosa.

É intrigante observar que, assim como o film noir, o filme gótico também se organiza em torno de uma investigação. O deslocamento dos lugares do masculino e do feminino na cultura, na década de 1940, parece haver mobilizado uma enorme vontade de saber. No film noir, trata-se de compreender uma feminilidade que escapa à ordem patriarcal. No filme gótico, importa à protagonista apoderar-se da chave que dá acesso ao conhecimento das cláusulas secretas que fundam o pátrio poder. Ao confrontar tal instituição, ela corre o risco da loucura ou da morte, mas também de conquistar uma nova posição frente à masculinidade. No limite, a angústia da protagonista do filme gótico sinaliza o risco de apagamento da subjetividade feminina nos marcos do casamento indissolúvel, engendrado pelo patriarcalismo burguês. Um limiar de sensibilidade é transposto, algo se torna intolerável e Hollywood não perde a oportunidade de lucrar com essa transformação cultural.

 

 

Amor lésbico?

De acordo com Greenhill (2007), em "Rebecca" insinua-se um amor lésbico entre Danny e Rebecca. O autor observa, porém, que, no romance de Daphne du Maurier, a Sra. Danvers nem enlouquece, nem morre ao final e que o incêndio de Manderley consiste na vingança de Danny contra Max, por este ter assassinado seu único amor. Em contrapartida, no filme a governanta é punida por sua imoralidade com a loucura e a morte. Desde essa perspectiva, Hitchcock e Selznick ousam, mas não tanto, ao confrontar a rigorosa censura moral vigente em Hollywood.

Vários fragmentos de "Rebecca" endossam a tese de Greenhill. Na chegada do casal a Manderley, quando da apresentação da jovem Sra. de Winter aos criados, a Sra. Danvers coloca-se entre os homens e veste-se como eles, isto é, com roupa preta e colarinho branco. Desprovida de feminilidade, ela encarna a típica lésbica hollywoodiana. No almoço com Beatrice (Gladys Cooper) e Giles (Nigel Bruce), irmã e cunhado de Maxim, Beatrice comenta: "ela adorava Rebecca". Na sequência no quarto de Rebecca, Danny acaricia a roupa íntima da ex-esposa de Max e, arrebatada pela paixão, recorda: "enquanto se despia, ela me contava sobre a festa a que tinha ido. [...] Quando saía do banho, ia para o quarto e sentava-se na penteadeira. [...] Eu escovava seus cabelos por uns 20 minutos". O modo como a Sra. Danvers mantém o quarto de Rebecca - os buquês de flores, a fronha com o R bordado por ela - é outro testemunho de seu amor por sua ex-patroa.

Muito mais importante para a construção da narrativa é, todavia, a corrente erótica que liga a jovem Sra. de Winter a Rebecca. Ela é despertada pela Sra. Hopper, quando esta afirma que Max é um homem arrasado pela morte da linda esposa, e é incitada por diversos outros comentários. Beatrice evoca sua elegância. Giles, sua habilidade em caçar, montar e velejar. Frank Crawley (Reginald Denny), o administrador de Manderley, observa que ela não tinha medo de nada e que era a criatura mais bela que jamais viu. A Sra. Danvers sentencia: "todos a amavam". Impressiona a moça, sobretudo, o efeito que a lembrança de Rebecca produz em Maxim. A paixão homoerótica da jovem Sra. de Winter tende, contudo, a procurar um destino narcísico. Em distintos momentos, a moça busca identificar-se com sua antecessora. Após escutar o comentário de Frank acerca de Rebecca, ela vai ao encontro de Max com um vestido longo, um colar de pérolas e um sofisticado penteado. Ato contínuo à visita ao quarto interditado, a protagonista diz a Danny: "agora, eu sou a Sra. de Winter". Para o baile à fantasia, inspira-se ela no retrato de lady Caroline de Winter - o que Rebecca fizera no ano anterior. Tal confluência de afetos deixa como resto uma pergunta: o que torna Rebecca uma mulher fascinante tanto para homens, quanto para mulheres?

 

"Rebecca" feminista?

Em The desire to desire ("O desejo de desejar"), Doane (1987) inscreve "Rebecca" na vertente paranoica - modo como define o filme gótico - do cinema para mulheres dos anos 1940. Por meio da análise da sequência em que é projetado o filme da lua de mel de Max e da jovem Sra. de Winter, a autora visa situar o lugar designado pelo filme gótico a sua espectadora. De acordo com essa teórica feminista, o que seria a revivência de um momento feliz interrompe-se em três ocasiões. Antes da apresentação do filme, Maxim recebe sua esposa, que usa um vestido de cetim negro e um colar de pérolas, com um olhar de desaprovação. Durante a exposição, o filme destaca-se do projetor no instante em que a jovem diz desejar que a lua de mel durasse para sempre. Ato contínuo, revela-se que ela quebrara um valioso cupido. Por fim, Max encerra a projeção ao escutar a moça declarar que ele casara com ela devido a sua insignificância, incapaz de dar motivos para fofocas.

Nessa sequência, Doane realça a impossibilidade de a protagonista posicionar-se como sujeito do olhar, posto que ela é imediatamente recodificada como o conteúdo privilegiado da imagem. O específico do filme gótico é, porém, o esmaecimento dessa imagem até seu virtual apagamento. Em contrapartida, o olhar masculino transita da perplexidade para a severidade implacável: "não me olhe assim", diz a jovem, enquanto vemos o rosto de Max ocultar sua imagem na tela, na projeção doméstica. Nessa perspectiva, a autora considera a interrupção do filme diegético como uma metáfora da desintegração do amor conjugal e aponta que o destino do desejo feminino, no filme gótico, é converter-se em angústia de aniquilamento. E, tal como na sequência analisada, para a espectadora desse gênero cinematográfico, não resta outro lugar senão o de aterrorizada observadora de seu colapso subjetivo.

Tay (2003) rejeita o enclausuramento da protagonista (e da espectadora) do filme gótico em uma posição masoquista, efetuado por Doane. De acordo com essa autora, ao expor as tensões que permeiam a instituição do casamento, tal gênero abala um dos pilares do cinema hollywoodiano clássico. No que concerne a "Rebecca", Tay postula que esse filme de Hitchcock viola os cânones do cinema clássico ao construir uma feminilidade transgressora, mediante recursos fílmicos que expressam a força da personagem Rebecca. Diferentemente de "Laura" (1944), de Otto Preminger, em que uma mulher supostamente morta presentifica-se por meio de um retrato e de flashbacks, Rebecca mantém-se o tempo todo invisível. A abertura para o fora de campo implicada nessa ausência fissura o aparato cinematográfico clássico, caracterizado por delinear um universo diegético fechado em si próprio.

Nesse sentido, na abertura da sequência em Monte Carlo, a câmera mostra-nos o mar revolto, move-se de modo a vermos um penhasco e, no alto, foca em Max, que olha fixo para baixo. Há um corte e, por meio de um plano subjetivo, vemos novamente o mar. A posteriori, sabemos que se trata de Rebecca a convidar seu ex-marido a ir a seu encontro1. Na cena em que a moça desenha um retrato de Maxim, a câmera enquadra o casal com o mar ao fundo. Novo corte e a câmera posiciona-se no lugar do mar. Fala-se de águas quentes e frias, de correntes e ressacas, até que a jovem diz não ter medo de afogar-se. Max vira-se, abruptamente, e no plano seguinte vemos a moça perplexa, com o mar novamente ao fundo. Rebecca, fora de campo, esteve o tempo todo com eles. Na cena em que Jasper, o cão de Rebecca, corre rumo à cabana da praia, onde a ex-esposa de Maxim recebia seus amantes, o mar bate violentamente nas pedras, à passagem da nova Sra. de Winter. Em Manderley, Rebecca marca sua presença invisível por meio da letra R, impressa em papéis de carta, guardanapos e lenços, dentre outros objetos domésticos. Inspirada em Deleuze, Tay (2003) sugere que Rebecca, ao tensionar a narrativa fílmica a abrir-se para o fora de campo, introduz um devir feminista em "Rebecca".

Em sintonia com Tay, Modleski (2005) também afirma a relevância da presença fora de campo de Rebecca. No cinema clássico, o procedimento da sutura é responsável por preservar fechado o universo diegético. Assim, se em um plano mostra-se alguém a olhar, no próximo deve-se exibir o objeto olhado, a fim de não existirem lacunas na narrativa. Conforme o postulado de Mulvey (2008), esses lugares usualmente são ocupados por um homem e por uma mulher, respectivamente. Ao não oferecer Rebecca como imagem, "Rebecca" transgride esse código. Em uma cena magistral - aquela em que Max relata para a jovem Sra. de Winter o modo como morreu Rebecca -, Hitchcock poderia ter adotado a técnica do campo/contracampo, mostrando-nos, alternadamente, as expressões de quem fala e de quem escuta, ou introduzido um flashback, com o intuito de preencher um vazio na narrativa imagética. A câmera foca, no entanto, o movimento incorpóreo de Rebecca. Diferentemente de Doane (1987), para quem a câmera ejeta o corpo feminino da imagem, inscrevendo-o como falta, Modleski (2005) sugere que se trata de delinear uma feminilidade que escapa ao assujeitamento mediado pelo dispositivo clássico da sutura.

 

Uma feminilidade que insiste em não se inscrever

Para além do debate acerca do caráter feminista de "Rebecca", interessa-nos delinear o modo como Rebecca enlaça-se ao discurso fílmico. No que tange à jovem Sra. de Winter, a feminilidade mostra-se, de partida, capturada em um imaginário de conto de fadas. Isso é magnificamente expresso no primeiro plano da cena do baile em Monte Carlo, em que Maxim de Winter e a dama de companhia da Sra. Hopper, elegantemente vestidos, aparecem refletidos no espelho d'água do salão do hotel. Tal imaginário tem sua versão simétrica e invertida em Manderley: a moça torna-se uma gata borralheira. No momento em que mata, simbolicamente, aquela que reinava em seu universo psíquico, ela pode inscrever-se como sujeito de discurso. Max lamenta essa mudança: "foi-se para sempre aquele olhar [...] que amei. [...] matei-o quando lhe falei sobre Rebecca. [...] Em poucas horas, você cresceu". E nós, espectadores, percebemos que a jovem Sra. de Winter pode, enfim, ausentar-se da imagem. Seu lugar no filme está assegurado: é essa nova posição discursiva que a autoriza a ser a narradora da história.

Qual o lugar discursivo de Rebecca, porém? No que diz respeito à ex-esposa de Max, a feminilidade não compõe um imaginário com o qual uma mulher possa identificar-se. Aliás, esse é o drama da jovem Sra. de Winter. No espelho, ela não encontra uma imagem para incorporar, mas uma espécie de buraco negro, que traga suas possibilidades identificatórias. No que concerne a Rebecca, a feminilidade também não se inscreve nessa estrutura falocêntrica, que é a linguagem - cinematográfica, no caso. Em nenhum momento ela assume a narrativa. Por certo, Rebecca deixa marcas: as ondas chocando-se com as pedras, que pontuam o filme; a letra R, disseminada em Manderley, dentre outras. Mas, qual é o estatuto discursivo dessas marcas?

Zizek (2009, 2010a) descreve alguns motivos visuais que se repetem ao longo da obra de Hitchcock, sem que seja possível atribuir uma significação comum a cada um deles nos distintos filmes em que comparecem. É o caso da mulher inteligente, mas sem atrativos sexuais, que intui antes dos demais o rumo dos acontecimentos (frequentemente, ela usa óculos); da pessoa agarrada à mão de outra, que a impede de cair de uma grande altura; da escada em espiral, que atrai o olhar do protagonista (e do espectador) para suas profundezas abissais; do recipiente cheio de uma bebida branca, dentre outros. De acordo com o filósofo esloveno, essa constelação de signos não é interpretável. De fato, ela aponta o limite da interpretação, pois fixa um excedente de gozo, que resiste à inscrição simbólica. Entretanto, ela não pode ser elidida do discurso fílmico, posto que se mantém vinculada à narrativa. A fim de conceder estatuto teórico a esses signos, Zizek (2009, p. 84) lança mão do conceito lacaniano de "sinthoma":

Ao contrário do sintoma, que é um código de um significado reprimido, o"sinthoma" não tem um significado determinado - dá apenas corpo, em seu padrão repetitivo, a uma matriz elementar de jouissance, de prazer excessivo; embora os "sinthomas" não tenham sentido, é indubitável que irradiam jouis-sense (grifos do autor)2.

É por meio desses "sinthomas" hitchcockianos - as ondas chocando-se com as pedras, a letra R etc. - que Rebecca se enlaça em "Rebecca". Ela evoca um tema recorrente na obra de Hitchcock: a mulher que goza demais. Se, por meio da jovem Sra. de Winter, a feminilidade não apenas se põe em imagem, mas também se enuncia, mediante Rebecca, ela expressa um excesso de gozo irredutível à ordem fálica. Disso decorre seu fascínio. Talvez seja o momento de evocar o caráter mortífero desse gozo e de lembrar o último plano do filme, em que a fronha com o R bordado é consumida pelo fogo. É preciso pôr em questão, no entanto, o estatuto dessa morte. Como assinala Modleski (2005, p. 52): "se a morte por afogamento não extinguiu o gozo feminino, podemos estar certos de que a morte pelo fogo o terá reduzido a cinzas?" Nessa perspectiva, será casualidade o fato de a jovem Sra. de Winter, na temporalidade do a posteriori, que vigora no prólogo de "Rebecca", posicionar-se fora de campo para narrar o filme?

 

Considerações finais

Em "Rebecca", a enunciação da feminilidade opera de modo análogo ao de outros filmes góticos. A protagonista, identificada a uma imagem de sofrimento, escapa ao colapso narcísico por meio de um processo investigativo que revela os segredos que atormentam seu marido e a mantêm sob intenso medo de enlouquecer ou morrer. Através desse processo, e em uma evidente resposta ao film noir, ela conquista a prerrogativa de narrar a história. "Rebecca" tem algo que burla o script do filme gótico, assim como de todo o cinema para mulheres dos anos 1940. A presença constante de Rebecca fora de campo subverte os cânones do cinema hollywoodiano clássico ao situar a feminilidade em um lugar que, do ponto de vista discursivo, é, ao mesmo tempo, um não lugar. É desde este (não) lugar que a feminilidade se expressa no que tem de irredutível à ordem fálica. A fim de teorizar o estatuto de determinados signos que se repetem no discurso fílmico hitchcockiano, sem que sejam passivos de interpretação, Zizek (2009, 2010a), inspirado em Lacan (1975-1976/2007), opera com o conceito de "sinthoma". É por meio de "sinthomas" hitchcockianos que Rebecca vincula-se à narrativa de "Rebecca". Mediante esse recurso, a obra de Hitchcock avança ali onde a de Freud conhece um limite.

 

Notas

(1) O olhar de Rebecca é o objeto fantasmático que captura todos os olhares, inclusive o do público. Danny pontua a onipresença desse olhar, quando pergunta à jovem Sra. de Winter: "acredita que os mortos possam voltar para observar os vivos?"
(2) Trocadilho que Lacan (1975-1976/2007) faz com jouissance (gozo) e que pode ser traduzido por sentido de gozo.

 

Referências

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Recebido em: 15/08/2015
Aprovado em: 30/11/2015