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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versión On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.8 no.1 Rio de Janeiro enero./jun. 2016

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2016v1p.110 

RESENHAS

 

A extimidade própria à psicanálise

 

 

Betty Bernardo Fuks

Psicanalista. Professora do Programa de Pós- Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA). Autora de Freud e a Judeidade (Zahar, 2000); Freud e a Cultura (2003); O homem Moisés e o monoteísmo: o desvelar de um assassinato (Civilização Brasileira, 2014)

 

 

Resenha do livro de Ana Costa, Litorais da Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2015, 118pgs.

Dizia Mário Quintana que quem escreve poesia resgata um afogado. Ligar este dito à escrita de um livro extremamente didático é a tarefa que me proponho cumprir nesta resenha. Em sua nova obra, Ana Costa, com honestidade intelectual e criatividade conhecidas desde a escrita de Corpo e escrita: relações entre memória e transmissão da experiência (Relume-Dumará, 2000) e Tatuagens e marcos corporais. Atualização do sagrado (Casa do Psicólogo, 2011), caminha pelas bordas da psicanálise à moda do herói homeriano da Odisseia. A tentativa de Ulisses em retornar à terra natal, Ítaca, nomeia a experiência de exílio como errância. Para seguir o curso da errância de nossa autora, me deixei fisgar pela maneira como ela faz convergir a poesia de Homero com o tema do litoral e as questões relativas à letra e à escrita. Tarefa que lhe exigiu reconhecer a exatidão desse poema épico e dele se servir em sua travessia pelos labirintos conceituais da psicanálise. Nessa errância em que Ana Costa termina derrubando preconceitos que afogam a singularidade da experiência psicanalítica, a precisão da escrita é o que confere à sua obra, a meu ver, o estatuto de poesia.

 

 

Tudo começa pela fidelidade de Ana Costa a Freud, criador de uma disciplina que vive no "entre-dois". De fato, desde os primórdios a psicanálise frequenta o "país" da literatura, das artes, da estética, da filosofia, da linguistica, da medicina, da religião, da história e o do mito, ao mesmo tempo em que se afirma como um saber "extraterritorial" e sem "identidade nacional". Isso porque Freud sempre priorizou a experiência do inconsciente como motor das incursões que precisou fazer a outros campos do saber. Lacan nomeou essa condição de limiar do inconsciente de extimidade e de litorais as linhas de cruzamento que explicitam a não homogeneidade entre duas fronteiras. A especificidade do litoral é colocar, conforme ele precisa no Seminário XVIII, um "domínio inteiro como fazendo a um outro, se assim o quiserem, uma fronteira, mas justamente por não terem absolutamente nada nem comum, nem mesmo uma relação recíproca".

A obra de Ana Costa tem esse traço constante de litoral em relação a dois domínios absolutamente heterogêneos que se fazem fronteira: saber, de um lado, e o gozo sexual de outro. Seu êxito consiste em procurar desembaraçar para o leitor a sugestão lacaniana de que a letra é propriamente o litoral entre o gozo e o saber. Retomando a proposta de Lacan da emergência do inconsciente como uma letra em instância, até chegar à ultima formulação desse analista do sinthoma como letra, a autora mergulha na elaboração de seu mestre em relação à produção de James Joyce. É em Ulisses, a grande obra desse autor -uma recriação moderna da Odisséia de Homero na figura de Leopoldo Bloon, o judeu, paradigma da errância do sujeito, que vive numa Irlanda extremamente católica - que Lacan situa a arte da escrita de Joyce como suplência do Nome do Pai. A escrita como suplência, segundo nossa autora, é o ponto para repensar as diferentes estruturas psíquicas - neuroses, psicoses e perversão - por relação a transferência. Isso porque no limite uma "análise visa a redução do gozo e, nessa direção, não diferencia tanto as estruturas tratadas". Donde, a transferência comporta também uma estrutura de encontro singular ou, como escreve Christian Dunker no Prefácio ao livro de Costa, uma estrutura "diferenciante entre as demais estruturas".

Assim posto, a escrita é também veículo de investigação e pesquisa. O que o poético, músicas, filmes, contos, enfim a produção cultural tem a dizer sobre a escrita inconsciente? Essa pergunta, aparentemente simples, é o próprio questionamento que move grande parte do trabalho de Ana Costa. Fiel à escolha de manter-se no litoral, a morada do analista, a autora vaga de um campo ao outro transformando em letra os rastros, os traços que a acossam a enunciar um não dito sobre o que já foi exaustivamente dito. Seu testemunho de que escreve-se o que não pode ser dito.

Há vários ensinamentos clínicos e teóricos importantes nessa obra que tenho o privilégio de resenhar; assim como referências generosas a autores que se dedicaram e outros que se dedicam a pensar e refletir sobre o tema da letra e da escrita em psicanálise. Porém, o lugar que a autora deu a letra de alguns escritores como Homero, James Joyce, Kafka, Margarithe Duras e cineastas, Almodovar e David Lynche, é realmente especial. Dona de uma invejável cultura literária e artística, Ana Costa procura sustentar sua convicção de que uma estreita vinculação entre psicanálise, literatura e arte beneficia à transmissão da descoberta do inconsciente, desde que o analista assuma a responsabilidade de guardar a condição de extimidade de sua profissão impossível. Nesse sentido, Litorais da psicanálise constitui um arquivo que demanda interpretação à letra dos conceitos psicanalíticos trabalhados pela autora.