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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.8 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2016

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2016v1p.115 

ARTES

 

Um mundo de luz e sombra: comentário do filme documentário de Wim Wenders, Juliano R. Salgado: O sal da Terra (Prêmio César de melhor documentário)

 

 

Viviane de Lamare

 

 

"O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à
decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como
sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição
esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros
homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que
qualquer outro".
Sigmund Freud

O documentário de Wim Wenders sobre Sebastião Salgado mostra a trajetória desse fotógrafo através do duplo jogo de imagens: filme e fotos. Para Wenders "um fotógrafo é, literalmente, alguém que desenha com luz, um homem que escreve e reescreve o mundo com luzes e sombras". O documentário agrega às fotos de Sebastião sua fala e sua história.

Sebastião, criado na fazenda da família em Minas (nas palavras de seu pai: "Tião, muito malandro, estudar era difícil, eu queria que fizesse advocacia, mas tirou economia, nunca vi gostar de viajar assim"), vai para São Paulo estudar e de lá para o exílio na Europa por sua militância política durante a ditadura. Em Londres se torna economista do Banco Mundial. Uma causa política o leva ao exílio, mas é como fotógrafo que encontra um lugar de denúncia de um mundo em que a fronteira entre civilização e barbárie começa a ser diluída.

 

 

Muitos anos antes desse documentário, Wenders se impressiona com as fotos de Sebastião sobre o garimpo de Serra Pelada e no filme o faz falar sobre esse trabalho: "aquele imenso buraco, lá vi passar a história da humanidade: a construção das pirâmides, a Torre de Babel, as minas do rei Salomão... Mas não eram homens escravizados, eram apenas escravos do ouro". O barulho que se ouvia lá era "o murmúrio do ouro na alma das pessoas". O gozo do ouro, uma vez conseguido, não se pode dele abrir mão.

A câmera nos força a entrar em um universo hostil que muitas vezes queremos esquecer. A imagem provoca desconforto, ela não existe para a contemplação do Outro. Vemos corpos que se confundem com a terra, homens animalescamente chafurdando na lama em sua busca insana pelo ouro. A beleza das fotos transforma o horror em sublime.

O que a imagem sustenta para Sebastião nesse momento? Há uma causa em sua arte: suas fotos são denúncias.

 

 

Na Etiópia (1984-86) fotografa campos de refugiados em que as pessoas morrem de fome porque o governo retém os alimentos não deixando que cheguem ao povo. Morrem de frio, de cólera, envelhecidos pelo sofrimento. Suas fotos mostram esses corpos descarnados.

Em Êxodos (1993-99) o tema é o destino dos desterrados. Estradas cheias de pessoas que fogem de Ruanda; segundo ele, são 150 km de mortos. Em seguida viaja para a Europa e fotografa os refugiados da Bósnia. Os croatas matam a população sérvia: os sérvios assassinam seus vizinhos. Retorna a Ruanda; o regime havia mudado, os assassinos passam ao lugar dos assassinados. Fotografa uma igreja, antigo lugar de refúgio, coberta por corpos mortos. Quando os corpos estão vivos são cadáveres ambulantes.

Seu percurso foi se tornando cada vez mais árduo até chegar a um ponto em que a imagem não serve mais como resistência: a barbárie tomara conta da civilização. Para Sebastião a imagem não recobre mais o real que aponta o horror da humanidade. Ele não suporta o que vê, não consegue com as fotos a distância necessária para prosseguir. Em suas palavras: "terrível espécie, a espécie humana". O seu olho antes testemunho, colapsa. O fotógrafo que desenhava o mundo com luzes e sombras está "doente do corpo e da alma". Não fotografa mais.

Ele retorna a seu lugar de origem, a fazenda dos Salgado. A paisagem verde de sua juventude é agora uma terra árida. A floresta fora devastada por seu próprio pai para o sustento da família: "só de madeira tirei cem contos para educar os filhos". Mas é daí que vêm seus novos projetos. A terra pode ser reflorestada e precisa usar as próprias mãos para replantar a floresta vendida pelo pai. Consegue recriar na fazenda a Mata Atlântica perdida. Pode então voltar a fotografar, não os homens - "o sal da terra" -, mas a natureza. Em seu novo trabalho - Gênesis, suas fotos são uma carta de amor ao planeta.