SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 issue2The defect in the universe author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.8 no.2 Rio de Janeiro Jul./Dec. 2016

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2016v2p.117 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Da homossexualidade ao homo sexualis

 

From homossexuaality to homo sexualis

 

 

Antonio Quinet

Psicanalista, doutor em filosofia e dramaturgo, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, pesquisador convidado do Instituto de Psiquiatria (UFRJ), diretor da Cia. Inconsciente em Cena (RJ) e professor dos Programas de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida. End: Rua Joaquim Campos Porto, 395 - Jardim Botânico, Rio de Janeiro - RJ, CEP: 22460-190. E-mail: quinet@openlink.com.br

 

 


RESUMO

Os termos heterossexualidade e homossexualidade não são conceitos psicanalíticos. Para abordá-los, devemos recorrer às fórmulas da sexuação em Lacan e aos conceitos de homo sexualis e heteridade. Neste artigo, desenvolvemos o que Lacan designou como "hommesexualité" e que traduz como "Homo Sexualis", que é o amor narcísico, o almor, como ele mostra no Seminário XX, Mais, Ainda.

Palavras-chave: HOMOSSEXUALIDADE; HETEROSSEXUALIDADE; HOMOSEXUALIS; HETERIDADE; ORIENTAÇÃO SEXUAL.


ABSTRACT

The terms heterosexuality and homosexuality are not psychoanalytic concepts. To discuss them we must resort to the formulas of sexuation in Lacan sexuation formulations and homo sexualis and heterity concepts. In this article we develop what Lacan referred to as "hommesexualité", which translates as "Homo Sexualis", which is narcissistic love, as Seminary XX, Encore, shows.

Keywords: HOMOSSEXUALITY; HETEROSEXUALITY; HOMOSEXUALIS; HETERITY; SEXUAL ORIENTATION.


 

 

Para Freud, a homossexualidade é um mistério. E, na verdade, o mistério é um dos nomes do real - ele não pode ser dito e é impossível de ser escrito. Em seu texto "O eu e o isso", ele se refere a "pré-disposições" que podem ser masculinas e femininas em cada ser humano e é a partir daí que cada um entra no complexo de Édipo e suas relações libidinais: tendo a mãe como objeto sexual e sendo um objeto sexual para o pai. Isto serve tanto para os meninos quanto para as meninas. É a partir daí que haverá uma "consolidação" da escolha preferencial sexual. Mas todos os seres falantes, diz ele, um dia tiveram uma escolha homossexual e ela permanece presente para sempre uma vez que nas coisas do Inconsciente nada se perde, nada se apaga, podendo, no entanto, ser transformado. Daí que a homossexualidade de cada um tenha diferentes destinos: praticada, recalcada ou sublimada. No caminho da sublimação da homossexualidade, encontra-se a identificação com o outro do mesmo sexo que nada impede de ser transformada em amor, assim como é essa sublimação que faz, ainda segundo Freud, da homossexualidade o cimento dos laços sociais - é, portanto, a base libidinal da sociedade. Trata-se aqui também, podemos dizer, da atividade do Homo Sexualis - o amor pelo mesmo, onde o sexo não está em jogo. A massa, o grupo, a família, as instituições têm por base esse tipo de filia.

Encontramos dois termos no ensino de Lacan, na década de setenta do século XX que propomos elevar à categoria de conceitos para abordamos, neste século XXI, o tema da dita orientação sexual que hoje se declina em: homossexualidade e heterossexualidade.

A sociedade com suas instituições, as igrejas, os movimentos sociais e os indivíduos em geral assim como alguns estudiosos de gênero, conferem uma identidade aos indivíduos que chamaremos de "praticantes" dessas modalidades: os homossexuais e heterossexuais. E àqueles que exercem ambas seriam bissexuais. Assim é que o movimento LGBTT junta lésbicas, gays, bissexuais nesse mesmo pacote identitário de orientação sexual misturando com os travestis e transexuais que levantam questões de gênero e não de parceiros sexuais. Mas a sociedade faz realmente uma confusão entre uma coisa e outra ao qualificar o homem gay de "mulherzinha" e a mulher homossexual de "sapatão" como se só se pudesse desejar um homem sendo uma mulher e só desejar uma mulher sendo um homem, ambos definidos a partir da diferença anatômica dos sexos.

Neste trabalho, não iremos abordar propriamente as questões de gênero nem a homossexualidade e a heterossexualidade, que, diga-se de passagem, não são termos psicanalíticos. Se os psicanalistas por vezes os utilizam é no sentido meramente descritivo. Mas depois dos avanços da psicanálise com Lacan, principalmente depois do Seminário XX (1975) e de suas elaborações daí em diante sobre a economia dos gozos e a partilha dos sexos segundo as lógicas do "todo fálico" e do "não todo fálico", em que se ultrapassa a diferença sexual anatômica, eles deveriam ser mais cuidadosos ao utilizarem não só esses termos, mas também os termos de "homem" e de "mulher" em seus estudos aprofundados sobre o real do sexo. As categorias "homem", "mulher", "masculino", "feminino" não são mais utilizadas de forma inequívoca para se referir aos seres falantes XX e XY, ou aos que têm pênis e aos que não o têm. Pois homens e mulheres - no sentido da genética e no sentido do registro civil - podem estar em ambos os lados da partilha dos sexos. A partilha e a diferença dos sexos não deixa, no entanto, de existir. Eis o que cabe ao psicanalista sustentar, demonstrar e elaborar como um saber que possa dar conta da aporia do sexo, marcado por um real impossível de ser apreendido e demonstrável. É impossível que se diga tudo sobre o sexo - algo que sempre escapa por ser da ordem do real. Nenhuma doutrina, portanto, será capaz de dizer tudo sobre a sexualidade do falta-a-ser.

Os termos que detectamos no ensino de Lacan e para os quais tentaremos dar uma sustentação teórica e clínica para abordarmos as questões de orientação sexual são: Homo Sexualis e Heteridade. São dois termos díspares e que não se excluem, e que não estão em oposição como o binômio homossexualidade e heterossexualidade cujo "e" é exclusivo e tem o significado de "ou". O "e" de nosso binômio é um "e" inclusivo.

 

Homo Sexualis

No Seminário XX, Encore (1975) Lacan usa o termo hommosexuel, com dois "m" (e não com um m só da grafia correta de homosexuel), para mostrar que essa palavra é derivada de homme, homem, fazendo a equivalência entre o hommosexuel e o semblable, o semelhante do estádio do espelho, ou seja, o pequeno outro. Assim, a tradução correta de hommosexuel é homensexual ou Homo Sexualis como se diz Homo Sapiens1. O amor do homem pelo homem (seja mulher ou homem) é homo-sexual. Esse deslocamento muda a perspectiva de abordagem da homossexualidade e a generaliza como o amor pelo semelhante. Homemsexual é o amor do mesmo.

Como é esse amor? Trata-se do que Lacan chama do amor de alma - ou seja, aquilo que "suporta o intolerável do mundo, em relação ao qual ela se supõe estrangeira, alheia, quer dizer que é fantasmática" (Lacan, 1975, p.78). Essa alma é "um efeito do amor" - assim essa alma existe fantasmaticamente como um produto da paixão do amor pelo outro seu semelhante que permite então a esse sujeito que ama suportar esse mundo insuportável e estranho no qual vive como estrangeiro. Mas esse amor também lhe serve para suportar o intolerável da relação com o Ser Supremo que é o Deus de Aristóteles, descrito em A Ética a Nicômaco. Esse Deus se confunde com o Bem supremo rumo ao qual a ética conduz até o aniquilamento de todo desejo e de toda demanda. O amor da alma que ama outra alma é chamado por Lacan de hommesexuel. Lacan conjuga a alma e o amor; o que resulta é o "almor". Daí a alma "almar" outra alma. Trata-se de um tipo de laço amoroso que exclui o sexo. "A alma ama a alma, o sexo aí não conta" (Lacan, 1975, p.78). Esse tipo de amor é identificado por Lacan com a filia de Aristóteles, ou seja, a amizade que, para Filósofo, é a base da relação conjugal. A filia "representa a possibilidade de um laço de amor entre dois desses seres... estes se reconhecem e se escolhem pela coragem que suporta a relação intolerável com o Ser Supremo (confundido com o Bem supremo de cada um como finalidade - télos - da conduta ditada pela ética aristotélica). O fora-do-sexo dessa ética é evidente" (Lacan, 1975, p.80).

Essa alma à qual se refere Aristóteles não tem nada a ver com a alma da religião católica, trata-se da alma como um tipo de substância que sustenta o corpo enquanto energia, atividade (Cf. Lacan, 1975, p.81). Daí que o "homem pensa com sua alma" e a "alma é o que se pensa a propósito do corpo" (Lacan, 1975, p.100). Lacan utiliza a metáfora do martelo e do cabo: se o corpo é o martelo a alma é o cabo. Essa alma é pensamento - que é inseparável do corpo. A alma, no ser falante é sua identidade suposta ao corpo" (Lacan, 1975, p. 100). A alma que estaria no lugar do ser do homem - algo que o define enquanto tal como homem diferente do animal, cuja "substância" - se ela existisse e se fosse palpável - seria feita de pensamento sim, mas também do amor pelo semelhante, cuja alma também sustenta seu corpo. Alma, efeito do amor pelo mesmo. O almor é homo sexual.

Lacan, dessa forma, retoma o amor narcísico e dá um passo na sua elaboração para além do que encontramos na letra de Freud. Na Introdução ao Narcisismo, Freud propõe dois tipos de escolhe de objeto amoroso: a escolha narcísica e a escolhe por apoio. Aqui, Freud não diferencia amor e sexo - trata-se para ele manifestamente do amor erótico.

A introdução do assunto por Freud é primorosa e bem apropriada para desfazer mal-entendidos e acusações à psicanálise como preconceituosa e heteronormativa. Freud deixa claro sua postura de respeito à diversidade sexual.

"A vida amorosa dos seres humanos, com a diversidade de sua diferenciação nos homens e nas mulheres, fornece-nos uma terceira via de acesso ao estudo do narcisismo. (As duas primeiras abordadas por ele são a doença orgânica e a hipocondria na psicose). Ele começa afirmando que "nos perversos e nos homossexuais (saliento como Freud os diferencia) encontramos a particular evidência que eles não escolhem seus objetos de amor ulterior apoiado no modelo da mãe e sim no da própria pessoa. Evidentemente, eles procuram a si mesmos como objeto de amor, e apresentam o tipo de escolha narcísica de objeto" (1969, p.4). Longe de fazer disso uma regra, ele observa que não se pode concluir que as pessoas se dividam entre as que têm uma escolha de objeto narcísico e as outras, que a têm por apoio (nos modelos dos pais). Não se trata portanto de estigmatizar os homossexuais como seres narcisistas diferenciando-os dos heterossexuais cuja escolha teria sido feita a partir do complexo de Édipo, tendo por modelo pai e mãe. Foi isso, porém, o que aconteceu na IPA até os anos oitenta aproximadamente, quando os homossexuais eram tratados como perversos e narcisistas. Freud (1914/1957, p.94) diz "preferimos a hipótese que as duas que vias que levam à escolha de objeto estão abertas para cada ser humano de sorte que cada uma delas pode ser preferencial". E postula não só um narcisismo primário para todo ser humano, mas que para todos existem dois objetos sexuais na origem: ele mesmo e a mulher que cuida dele. É o que Lacan vai desenvolver no estádio do espelho com o investimento libidinal na imagem do corpo próprio no espelho do Outro materno. Aqui também faço notar que Freud se afasta da biologia e da mãe biológica ao se referir àquela que cuida do bebê e não à "mãe". Essa marca da relação de espelhamento e do investimento narcísico do amor pelo próprio corpo e por si mesmo aparecerá em toda relação de amor que tem portanto um fundamento narcísico. É esse o amor homo sexualis. Esse almor, se o aproximamos de sua tipificação em Freud temos, se declina ao amar no outro o que se é, o que se foi, o que se queria ser (como ideal do eu) e aquele que foi parte de si. O narcisismo secundário é a última parada dessa libido usada para enlaçar o objeto, dizia Freud. Esse amor do mesmo no outro inclui o corpo. "Eu amo apenas meu corpo, mesmo quando este amor, eu o transfiro sobre o corpo do outro" (Lacan, 1962).

Lacan refere-se às mulheres, e especificamente às mulheres almorosas no Seminário XX: "elas almam a alma em seus parceiros, no entanto, homo até o pescoço... isso só pode conduzi-las à histeria, ou seja, de bancar o homem (faire l'homme), e daí, por esse fato serem hommosexuelles, homo sexualis, ou fora-do-sexo(horsexe) sendo-lhes assim difícil de não sentirem o impasse que consiste em se mesmarem, se amarem (se mêment) no Outro..." (Lacan, 1975, p. 79). Vemos aqui, na vertente homo sexualis, o amor por identificação que deixa o sexo fora da jogada e fora também da diferença sexual.

Em minha peça de teatro X, Y e S - o teatro íntimo de Strinberg, a personagem Marie Caroline Davi que tem um caso de amor com a mulher do Strindberg, Siri von Essen, declara seu amor, ou melhor, seu almor. Ali, condenso o amor homo sexualis.

 

Monólogo de almor de Marie Caroline

"Amo a alma. Acho que todos devem amar a alma. Almemos! Aliás, cada um que faça o que quiser! Eu, eu almo a alma. Minha alma alma a alma. Não é essa alminha desencarnada que Platão inventou e que a Igreja Católica se apropriou para fazer comércio de indulgências. Não! Essa é a alma que vocês acham que podem salvar em troca de algumas orações e de algumas boas ações. Essa alma, queridos, não existe! É pura alegoria da rejeição do corpo! A alma que eu alma é a forma da matéria feita corpo. É a alma que eu encontro no meu parceiro, na minha parceira. É a alma que não tem sexo mas não deixa de ter corpo. É a alma que quando encontro no outro me faz amar, me faz almar.

Ai essa alma! Ai meu almor! Quando eu a encontro eu almo.

Quando a encontro me encontro. Eu mesma! Moi-même!

Eu mesmo! Je même!

Eu me mesmo! Je m'aime!

Minha alma é meu amor!

Me amo na sua minh'alma!

E saio, saio, saio de mim mesmando, em si mesmada e me amo, te amo, me amo, me mesmo, ti mesmo." (Quinet, 2014, p. 59)

Lacan utiliza em "O Aturdito" (também o hommo com dois "m") na palavra homologar "homenloga-se que todos os homens são mortais" (2001, p.450). Lacan redefine que o homo é o próprio do humano que tem amor erótico pelo semelhante - seu igual, o outro especular. Lacan, ao equivaler o homo a homem, aponta o equívoco entre o semblante (semblant, o faz de conta) e o semelhante (semblable, parecido): estatuto do homem é justamente o do (hommosexué) - homensexuado ou homo sexualis amor, aquele que ama a quem se parece. O Heteros "erige o homem em seu estatuto que é o de Homo sexualis (hommosexuel)" (Lacan, 2001, p.468). Longe de contradizer ou de opor hétero e homo, Lacan os articula e faz do Héteros a condição da sexualidade humana.

Com essa nova significação das palavras relativas à escolha do parceiro de sexo, Lacan indica que para haver o real do sexo, enquanto tal, é preciso de Héteros, enquanto que o amor narcísico é homemsexual. Em outros termos, todo ato sexual - seja homem com homem, mulher com mulher ou homem com mulher - ocorre devido à Heteridade.

Com essa acepção, Lacan põe por terra tanto a concepção da mulher como um "segundo sexo", quanto às teorias sobre a homossexualidade como uma esquiva da confrontação com o Outro sexo.

Como situar as homossexualidades a partir das fórmulas da sexuação? Nada impede que um homem, inscrevendo-se do lado do todo fálico (dito homem), tenha uma escolha de objeto homossexual ou heterossexual assim como também se inscrevem desse lado, diz Lacan, as mulheres histéricas, que também podem ser hétero ou homossexuais ou ainda bissexuais.

 

 

Um homem, inscrevendo-se do lado do Não-todo (dito mulher), na posição de La barrado F, pode escolher seu parceiro do lado do todo fálico a partir do significante fálico (Ф) encontrado no corpo desse outro ou em posição social, ou em qualquer outro atributo fálico. Essa relação (La barrado F → Ф) pode fazê-lo feminizar-se, como aparece na caricatura do afeminado. Ele pode também, ao se inscrever do lado do todo fálico como sujeito desejante ($), e portanto viril, escolher seu parceiro reduzindo-o ao objeto (a) localizado no Outro lado. A cultura gay acabou tipificando e caricaturando essa posição na exageração dos caracteres viris até os chamados Barbies. A feminização ou a virilização estruturais são devidas às posições na partilha do sexo. Há também um tipo de prática homossexual que, longe de constituir um casal ou uma parceria erótica, é feita de encontro fortuitos e anônimos onde o sujeito só se interessa pelo pênis não importa de quem, situando assim essa situação inteiramente do lado do todo fálico ($→ Ф).

Da mesma forma o homossexualismo feminino. Uma mulher pode situar-se no lado do todo fálico e eleger sua companheira como objeto sexual ($ → a). A caricatura dessa posição é o sapatão, a mulher virilizada. Essa posição reproduz o par mãe-filha na medida em que essa falta pode representar o objeto a para a mãe. Ela pode também situar-se do lado do Não todo La barrado F e buscar o falo (Ф) do lado do todo fálico - são as mulheres que procuram a proteção da outra mulher como se busca um pai ou a mãe fálica - figuras do Outro que tem o falo. São as mulheres que, como a jovem homossexual, diz Freud, condensam nessa escolha as tendências homossexuais e heterossexuais.

Há mulheres que procuram na outra mulher o Outro gozo (La barrado F → S ()) dentro de uma relação que não é propriamente sexual no sentido do encontro erótico de corpos, pois o falo não se encontra presente. É aí uma relação fora-do-sexo. Muitos casais femininos se formam numa relação sem sexo e de autêntico amor.

A partir das fórmulas da sexuação, podemos depreender duas lógicas distintas: a lógica do Um e a lógica da Heteridade (Quinet, 2012). A primeira é a lógica fálica do Um que constitui um universo a partir da exceção formando, portanto, um conjunto fechado, uma totalidade, um todo. Articula assim o UM com o todo do batalhão fálico dos homens. Eis a lógica da razão fálica.

A segunda lógica, a que Lacan propõe para se pensar o sexo feminino, é uma lógica distinta da lógica do Um e do todo. O não todo do lado feminino caracteriza o Héteros - outro em grego. A lógica do não todo é a lógica da Heteridade.

Por não ter o quantificador lógico da exceção que contraria a função fálica, a lógica do Héteros não constitui um Universo, não se fecha em uma Heteridade, ou seja, não faz grupo nem massa organizada. Não é uma lógica da "medida por medida", da competição, da luta para saber quem tem o maior, quem tem mais. Héteros é o âmbito do incomensurável. E do um a um, um mais um mais um que não se fecha num todo.

A lógica do gozo Outro abre-nos para as declinações do Héteros como heteronomia, heterodoxia, heterogeneidade e até mesmo heterossexual, o qual Lacan define como "aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu sexo próprio" (Lacan, 2001, p.467). Essa frase de Lacan em "O Aturdito" é suficiente ambígua para não se fechar nenhuma porta da diversidade sexual. Assim, "aquele" pode ser tanto um homem, biologicamente falando, ou uma mulher, sejam eles homo ou heterossexuais no sentido da escolha objetal. Assim como pode ser de qualquer sexo quem está no lugar de "mulheres" dessa frase. A frase aponta, portanto, que o amador pode ser XX ou XY e que "mulheres" também podem ser XX ou XY sendo esta posição definida por aquele que é amado, independente do sexo. Pois é o Héteros que suporta o sexo, seja ele como for. Para haver sexo é necessário a diferença do outro - não se faz sexo com o mesmo.

Heteros se opõe ao poder instituído da lei e das normas ditados pelo Um do significante-mestre da lógica fálica. O Outro, em relação ao instituído, é sempre o Diferente. Eis o que caracteriza a Heteridade. E a Homensexualidade é o amor narcísico, o amor pelo Mesmo e não pelo Diferente. Por outro lado, a relação de objeto própria do sujeito desejante, independente do sexo, está sempre no lado do todo fálico, ou seja, só se deseja um objeto como homem. O que é outra forma de reafirmar com Freud que a libido é masculina.

Como vemos, em todos esses casos para haver sexualidade entre homem-mulher, ou entre dois homens ou entre duas mulheres é preciso haver esse elemento hétero que é a relação entre um elemento do todo fálico com um elemento do Não-todo fálico. A conclusão: A homossexualidade não existe. Para haver sexo, precisa-se de ambos os sexos. É necessário a Heteridade: dois sexos que não se complementam, mas não deixam de se encontrarem nos atos sexuais, no chamado intercurso sexual para repetir o fracasso, o rateio da relação sexual que não cessa de não se inscrever. A relação sexual precisa dos dois, da diferença. Não se faz sexo com o mesmo, e sim com o diferente. Estamos falando aqui de posição sexuada. A sexualidade do ser falante é sempre da ordem do Héteros, para além da diferença anatômica dos sexos. A Heteridade comanda a sexualidade e coloca em circulação o "heterotismo". É sempre necessário dois sexos para que o sexo exista. Mais além da escolha sexual, a experiência analítica nos leva a questionar: será que existe uma fixidez em uma posição ou outra das fórmulas da sexuação? O ser-para-o-sexo pode circular entre as posições como o faz nos discursos que constituem os laços sociais.

 

Notas

(1) Atenção para tradução errada na edição brasileira dos Outros Escritos (p. 450) assim como de O Seminário, livro XX, Mas ainda.... Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1982, p. 113/114, que leva a perder toda a importância desse termo em Lacan. "Tanto que, com efeito, a alma alma a alma, não há sexo na transação. O sexo não conta neste caso. A elaboração de que essa transa resulta é homossexual (homensexual), como é perfeitamente legível na histeria" (p. 113-114) e em seguida "a histeria, ou seja, bancar o homem, como eu disse, por serem por isso, hommosexuelles ou homo sexualis ou fora-do-sexo, ..." (p. 114).

 

Referências

Freud, S. (1957). On narcissism: an introduction. In: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. V. XIV. London: The Hogarth Press. (Originalmente publicado em 1914)         [ Links ]

Freud, S. (1997). La vie sexuelle. Paris: PUF. (Originalmente publicado em 1969)         [ Links ]

Lacan, J. (1975). Le Séminaire 20 - Encore. Paris: Seuil.         [ Links ]

Lacan, J. (2001). L'étourdit. In: Autres écrits. Paris: Seuil.         [ Links ]

Quinet, A. (2012). Os Outros em Lacan. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar.         [ Links ]

Quinet, A. (2014). X, Y e S - o teatro íntimo de Strindberg. São Paulo: Giostri.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 22/11/2015
Aprovado em: 06/02/2016

Creative Commons License