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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versión On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.8 no.2 Rio de Janeiro jul./dic. 2016

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2016v2p.124 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

O defeito no universo

 

The defect in the universe

 

 

Claudia de Moraes Rego

Psicanalista. Doutora em Teoria Psicanalítica pela PUC-Rio; membro da Escola Letra Freudiana, autora de "No chão" (1989), "A pequena morte" (1992) e "Traço, letra e escrita - Freud, Derrida, Lacan"(2006). Rua Almirante Alexandrino, 3226/704, Sta Teresa, Rio de Janeiro. E-mail: cmrego@terra.com.br. Telefone: (21) 2285-1527

 

 


RESUMO

Trata-se de um percurso por textos literários, filosóficos e psicanalíticos em torno daquilo que escapa à ordem simbólica e apresenta-se como resto ou defeito no universo. Odradek, personagem de um miniconto ou prosa miúda de Kafka, é tomado como mostração disso. Na segunda parte, perseguimos em Freud e em Lacan, destacar como o sujeito lida com este defeito no universo, já entendido como Real.

Palavras-chave: DEFEITO; A NÃO EXISTÊNCIA DA RELAÇÃO SEXUAL; TRANSEXUALISMO; IDENTIFICAÇÃO; LÓGICA DO NÃO TODO.


ABSTRACT

The article presents a journey through literary, philosophical and psychoanalytic texts on that which escapes the symbolic order and constitutes a rest or defect in the universe. Odradek, character from a small story of Kafka, is taken as an example. In the second part it is highlighted how, in Freud and Lacan, the subject deals with this defect in the universe, already understood as Real.

Keywords: DEFECT; NON-EXISTENCE OF THE SEXUAL INTERCOURSE; TRANSSEXUALISM; SEXUATION; LOGIC OF THE NOT-ALL.


 

 

Eu era um enigma uma interrogação (...)

Era uma mensagem

Era uma visão

Totalmente terceiro sexo

Totalmente terceiro mundo

Terceiro milênio (...)

O mesmo signo que eu tento ler e ser

É apenas um possível e o impossível

em mim em mil:

eu sou neguinha?

Caetano Veloso

 

Odradek

Kafka denominou "prosa miúda", marcando uma diferença em relação à prosa propriamente dita, algo que fica entre o poema e a prosa, quase poema, quase prosa. Incapturável pela classificação, inclassificável. Entre esses textos, há um que se resume a cinco parágrafos: "A preocupação do pai de família". Tem um poder de estranhamento magistral. Ei-lo:

Alguns derivam do eslavo a palavra odradek e querem explicar sua formação mediante esta origem. Outros a derivam do alemão e admitem apenas uma influência do eslavo. A incerteza de ambas as interpretações é a melhor prova de que são falsas; além disso, nenhuma delas nos dá uma explicação da palavra.

Naturalmente, ninguém perderia tempo em tais estudos se não existisse realmente um ser chamado odradek. Seu aspecto é o de um carretel de linha, achatado e em forma de estrela e a verdade é se parece feito de linha, mas de pedaços de linha, cortados, velhos, emaranhados e cheios de nós, de todos os tipos e cores diferentes. Não é apenas um carretel; do centro sai uma hastezinha e nesta se articula outra em ângulo reto. Com a ajuda desta última, o conjunto pode ficar em pé como se tivesse duas pernas.

Seríamos tentados a crer que esta estrutura teve alguma vez uma forma adequada e uma função, e que agora apenas está quebrada. Entretanto, esse não parece ser o caso; não há pelos menos nenhum sinal disso: em parte alguma se veem remendos ou rupturas; o conjunto parece sem sentido, porém completo à sua maneira. Nada mais podemos dizer, porque odradek tem extraordinária mobilidade e não se deixa capturar.

Tanto pode estar no forro, como no vão da escada, nos corredores, no saguão. Às vezes passam-se meses sem que alguém o veja. Terá se aninhado nas casas vizinhas, mas sempre volta à nossa. Muitas vezes quando cruzamos a porta e o vemos lá embaixo, encostado no balaústre da escada, temos vontade de falar-lhe.

Naturalmente não se fazem a ele perguntas difíceis, mas sim o tratamos - o seu diminuto tamanho nos leva a isso - tal qual uma criança. "Como te chamas?" perguntam-lhe. "odradek", diz. "E onde moras?" "Domicílio incerto", responde e ri, mas é um riso sem pulmões. Soa como um sussurro de folhas secas.

Geralmente o diálogo acaba aí. Nem sempre se conseguem estas respostas; por vezes guarda um silêncio, como a madeira de que parece ser feito. Inutilmente me pergunto o que acontecerá a ele. Pode morrer? Tudo que morre teve antes um objetivo, uma espécie de atividade e assim se gastou. Isto não acontece com odradek. Descerá a escada arrastando fiapos frente aos pés de meus filhos e dos filhos de meus filhos? Não faz mal a ninguém, mas a ideia de que possa sobreviver-me é quase dolorosa para mim. (Kafka, 2003, p. 43-45)

 

 

Como seus leitores bem sabem, Kafka não comenta nem interpreta. Apenas mostra a coisa e a interpretação cabe a nós. Odradek coloca-nos num campo fora da lógica universalizante do pai de família, da propriedade, do conceito e do sentido. Do lado do defeito do universo, do não-todo. É apelo à lógica do Héteros.

O texto não começa propriamente. De chofre, você já está nele: análise pretensamente douta do significante odradek, com letra minúscula. A conclusão é que a análise fracassa: odradek é palavra indeterminada cujo sentido não pode ser afirmado.

O segundo parágrafo, anuncia meio ironicamente a existência de um ser chamado odradek. A descrição é muito acurada e minuciosa, o que não o torna menos estranho. Somos também informados de que odradek pode levantar-se, não é um objeto inerte. Ao contrário, é extremamente móvel e impossível de ser capturado. E embora não tenha nenhuma função, é "completo à sua maneira". Foge aos espaços, não tem hábitat, tópos definido. Tampouco é determinado pelo tempo. Surpresa maior: além de ser vivo, fala e responde à pergunta pelo seu nome com a palavra odradek. Não se sabe se é seu nome ou se é um odradek.

No final dramático, carregado de páthos, entendemos que o miniconto, na verdade, é sobre o pai de família. Este pai atribulado por odradek é o narrador: civilizado, culto, prático, objetivo, proprietário. Orgulhoso, abala-se com a ideia de que odradek possa sobreviver a ele e confessa uma "quase dor". Nessa quase dor, toda uma ordem estabelecida estremece. O pai de família julga e avalia odradek pelos critérios que seriam próprios à ordem fálica: tempo, espaço e finalidade. E, com isso, estabelece uma cisão radical com este outro que habita seu território e o habita.

Será odradek outra forma de vida e de gozo? Afinal, ele ri e às vezes não responde. Gostaria de articulá-lo com o significante trans, que além do aparelhamento científico-capitalista em que foi capturado e condenado a des-ser trans, aponta para uma abertura ao Outro.

Derrida, em A lei do gênero, traz questões filosóficas acerca do modo como o pensamento aborda o real. A essência do pensamento que cria gêneros e classificações, que reúne e separa, é mantê-los firmes e separados. Segundo ele, a lei do gênero é "não misturar os gêneros" ou "não se deve misturar os gêneros". Derrida, aliás junto com Freud, desconfia dos mandamentos negativos. Escreve Derrida:

Desde que se escuta a palavra gênero, desde que tentamos pensá-la, surgem a norma e o interdito: 'não'; 'é necessário que'; 'deve-se' ou 'não se deve'. Marca-se um limite. E quando um limite se marca, a norma e o interdito não se fazem esperar. Assim, desde que o gênero se anuncia, deve-se respeitar a norma, não se deve ultrapassar um limite, não se deve arriscar com a impureza, a anomalia, a monstruosidade (Derrida,1986, p. 249).

A lei do gênero se abate sobre o que seria perceptivo e 'natural' (hoje só podemos escrever natural entre aspas, depois que entendemos que não há realidade pré-discursiva) e portanto, tira daí uma garantia de determinação.

Mas, freudianamente desconfiado do interdito, Derrida pergunta: será que, mais do que um firme engajamento na proposta de não misturar os gêneros, haveria aí um desafio, uma aposta impossível? E se fosse impossível não misturar os gêneros? E se houvesse no próprio coração desta lei, um princípio de impureza, de contaminação? E se a condição de possibilidade da lei fosse o a priori de uma contra-lei, um axioma de impossibilidade, que traria pânico ao sentido, à ordem e à razão? Ou como disse Lacan: e se a exceção criasse a norma? O presente participasse do passado? E se odradek fosse trans-humano?

 

As teorias sexuais dos adultos: quantos sexos, tantas sexuações?

Freud inicia A Organização Genital Infantil (1977[1923]) tentando reparar uma negligência na sua teoria da sexualidade. Atribui esta negligência a uma dificuldade de, apesar de sua incessante observação clínica, dar-se conta de certos aspectos e situações. De fato até então, 1923, a diferença anatômica entre os sexos e suas consequências ainda não haviam entrado em cena na psicanálise.

O texto é uma interpolação na teoria de sexualidade, sendo a fase fálica inserida como organização genital infantil, depois das fases pré-genitais da libido. Ou seja, é uma fase do desenvolvimento que deverá ser superada pela organização genital adulta. Para os "adultos", a polaridade será masculino e feminino.

Vejamos como Freud nos apresenta o encontro com a diferença sexual. Ressalto que a menina, como sujeito, não aparece neste texto. Freud escreve o menino ou a criança.

"Rejeitam o fato e acreditam que elas realmente ainda assim, veem um pênis. Encobrem a contradição entre a observação e o preconceito dizendo que o pênis ainda é pequeno e ficará maior dentro em pouco" (Freud, (1977[1923] p. 182).

Qual é o preconceito? A ideia de que todos tem um pênis. Diante de uma percepção, a criança reage com uma ideia que é toda a lógica aristotélica do atributo. Aristóteles construiu um escalonamento de gêneros e espécies que deveria dar conta de cada caso. Esta lógica da classe e do atributo convém a uma identificação que repousa sobre traços diferenciais, mas não parece dar conta da sexuação de um sujeito. Mas vemos que a criança, o pequeno pesquisador, aborda a diferença anatômica, este real, já com a linguagem e a lógica, desmentindo a realidade.

Porque o menino faz esta Verleugnung inicial? O que significa, para ele, o pênis? Freud responde que ele já vinha procurando o pênis em todos os seres humanos e animais e até entre os inanimados. A pesquisa não busca a verdade. É determinada pela preferência pulsional (não somos instintivos, somos animais falantes, portanto pulsionais). É uma defesa não do pênis propriamente, mas das sensações, do gozo, "aquilo sem o que o mundo seria vão". Por isso, nenhuma diferença aí poderia ser aceita, nenhum Outro.

Esta ideia, esta defesa, é também chamada por Freud de crença. Mostra como o real é abordado pela linguagem: com crenças que desmentem a realidade. A diferença anatômica provoca consequências psíquicas: é outra cena, realidade psíquica. A diferença sexual psicanalítica que não é anatômica. As consequências psíquicas - a diferença faz pensar - são, portanto, crenças ou teorias. A fase fálica já havia sido apresentada como uma das teorias sexuais infantis. Mas os adultos também têm teorias sexuais. Lacan já disse que "somos todos loucos, delirantes". O saber é uma elucubração sobre o real e, no final de seu ensino, Lacan abandona a ideia de real como leis da natureza (aquilo que volta sempre ao mesmo lugar) e o declara sem lei. Este é o preço de irrealidade que pagamos para ter um saber sobre o sexo.

Esse preconceito que leva o menino a considerar a menina na série inferior, "menor", "é pequeno, vai crescer", esse preconceito misógino, originado na infância, mas bastante durável será superável, como quis Freud, para depois concluir que não e definir os rochedos do final da análise? Essa falsa identificação entre o feminino e o castrado? Ora, à anatomia feminina não falta nada! Mas justamente não se trata de anatomia! Tanto o homem quanto a mulher podem ultrapassar estas ficções, mas elas terão contribuído para a construção de uma relação fantasística com o outro sexo e seus restos aparecerão ligados aos modos de gozo. É preciso atravessar esses fantasmas para poder superar o preconceito misógino.

Voltando à fase fálica, chamo atenção para o termo freudiano 'primazia do falo', que tem esta única ocorrência no texto. Parece que ao escolher este termo grego, Freud intui aquilo que está por trás desta valorização do pênis: o falo é significante do gozo, gozo barrado a todos, homens e mulheres que passaram pelo recalque. Voltaremos a isso quando abordarmos o que Lacan chamou "erro comum" (Lacan, 2012[1971-72], p. 17).

Na saída do complexo de Édipo, Freud supõe que, uma vez que a identificação ao pai encerra o Édipo masculino, o menino dirigir-se-ia à mulher como objeto sexual. E a menina entrando no Édipo deveria estar identificada à mãe. Seria só esse o Édipo completo?

Aqui é que precisamos do conceito de sexuação. Porque, na verdade, a identificação sexuada, que entendo como este conjunto de identificações imaginária e simbólica que constituem o discurso sexual corrente (aqui o conceito saxônico de gender) não dá conta da sexuação de um sujeito. Assim como outros conceitos fundamentais da psicanálise como inconsciente, pulsão, recalque e repetição, 'sujeito' não é adjetivado como feminino ou masculino. Uma vez identificado ao pai, o sujeito deveria fazer uma escolha heterossexual e se identificado à mãe, o objeto deveria ser o homem. Mas isso nem sempre se dá. Além da questão das identificações, há o real do gozo e os modos de gozo.

Geneviève Morel, em seu livro "Ambiguidades Sexuais" (2000) e no texto "Sexo, gênero e identidade: do sintoma ao sinthoma" (2005) faz um grande esforço de teorização, incluindo o último Lacan, aquele que reduz o Nome-do-Pai a um dos sinthomas possíveis e desconstrói as estruturas clínicas desclassificando-as. Morel parte dessa evidência clínica de que a identificação sexuada (ou gênero), não dá conta da sexuação. É necessária outra lógica que Lacan vai buscar em Cantor. Apresentando um vasto repertório clínico, Morel entende que há ambiguidades sexuais e, além disso, sujeitos cuja sexuação não se serve do falo nem da castração. Ou seja, é difícil navegar nas formulas da sexuação tendo como referência as três estruturas clínicas.

Há um além das identificações, que Freud atribui a peculiaridades do desenvolvimento e vicissitudes do atravessamento do complexo de Édipo, como no caso da jovem homossexual (Freud, 1977[1920]p. 210-211), mas que Morel, conforme desenvolveu em seu livro A Lei da Mãe (2008 ), supõe talvez mais aquém, algo mais primordial na relação com a mãe que pode estar em ato nas práticas de gozo de um sujeito e que só pode ser abordado, decantado, pelo discurso psicanalítico. O conceito de não-todo é o ponto máximo de uma caracterização do sexo que não se pauta apenas pela identificação. Uma lógica de classes e de atributos pode dar conta do discurso sexual corrente, o erro comum, mas não dá conta do real do gozo.

Lacan, para fazer face ao real do gozo, recorreu à lógica dos quantificadores de Cantor (todo fálico e não-todo fálico) e apresentou as fórmulas da sexuação. O conceito de sexuação refere-se à tarefa que se coloca para cada sujeito, neurótico, psicótico ou perverso de assumir seu sexo. Sexo que não se reduz ao gênero nem à anatomia. Morel observa que o termo sexuação flerta com o biológico, mas só para marcar que o real em jogo na sexuação "é tão real quanto o da biologia" (Morel, 2004, p.143) No seminário XXI, Les non-dupes errent (1974-75), Lacan caracteriza a sexuação como uma opção de identificação sexuada:opção aponta para escolha de um sujeito; identificação implica o atravessamento pela linguagem e pelo significante e sexuada mostrando que é uma identificação que funciona com outra lógica.

Morel propõe três tempos para a sexuação: o primeiro é o da diferença anatômica dos sexos. O segundo, o discurso sexual corrente; o terceiro, a sexuação propriamente dita. O primeiro é marcado pelo nascimento; mas, na verdade, só adquire importância no segundo tempo. O segundo tempo é o do discurso sexual corrente. De fato, agora, a natureza só vale se interpretada pelo significante. A própria percepção é estruturada pelo significante, como vimos há pouco. O discurso sexual é o da comunidade da qual o sujeito faz parte: pais, família, o social, o médico, a escola. Este discurso passa despercebido porque parece refletir a própria natureza; mas não reflete o real, pois interpreta segundo critérios fálicos. A natureza sugere uma diferença, mas "é menino" ou "é menina" diz mais do que isso; diz virilidade, diz força, diz privação, feminilidade, beleza. A natureza vira semblant, afirma Morel com muita perspicácia. A natureza sucumbe sob o peso de um significante único que categoriza a diferença natural em termos de falo e castração. Este discurso corrente é a causa de um erro que Lacan chamou de "erro comum" porque é de todo mundo. O órgão natural vira organon, instrumento significante, desatarrachável. Temos também o significante descaralhado ou descaralhamento que parece mais se referir a uma exclusão temporária da ordem fálica. Será o discurso sexual corrente um erro? Em que consiste este erro? Morel propõe que o erro consiste em mudar o estatuto do falo que é, segundo Lacan, o de significado do gozo para significante mestre do discurso sexual.

O falo é o significado do gozo. Este erro comum, segundo Lacan, que transforma o significado fálico do gozo onde o bebê é mergulhado passivamente em um significante mestre sob o qual ele deve inconscientemente inscrever-se. Mas pode ser aceito ou não pelo sujeito. A recusa é a psicose como estrutura. O sujeito está fora do discurso sexual corrente e deverá inventar uma sexuação inédita, fora da função fálica. O empuxo à mulher é uma delas mas, segundo Morel, há outras.

Como, com apenas um significante, o falo, especificar dois sexos? Já abordamos essa questão quando falamos sobre a organização genital infantil. É um paradoxo. Apresento dois fragmentos clínicos.

O primeiro é de Morel. Um jovem homossexual, André, relata uma lembrança: na mesinha do banheiro de sua casa de infância, havia dois barbeadores; o de seu pai, para a barba e o de sua mãe para as pernas. "E os dois barbeadores eram os mesmos!", relata com perplexidade. O barbeador evoca a castração e Morel o lê como o registro inconsciente da função fálica. O segundo fragmento é de minha clínica: uma jovem analisanda relata um sonho de infância, ocorrido depois de ter recebido de sua prima, com desenho e tudo, a informação de que na xoxota havia duas coisas: um buraquinho e um pininho. O sonho é que 'meninos' chegavam e enfiavam giletes do barbeador de seu pai no seu buraquinho. Vemos aqui o significante que corta conjugado ao saber sobre a existência da vagina.

Passemos ao terceiro tempo. É o tempo da sexuação propriamente dita. Se só há uma função do gozo, há, contudo, dois modos de nela se inscrever, que correspondem a dois modos de gozo fálico. O recurso que Lacan (1983 [1975]) faz a outra lógica, que não a do atributo, está determinado pelo real do sexo como impossibilidade de escrever a relação sexual. Seria, portanto, uma tentativa de sair do "erro comum"?

Poderíamos colocar a questão de por que só dois sexos? Uma vez que a referência não é anatômica, poderiam ser 3, 4 ou 5? Estariam aí os transexuais, os assexuais, os ambíguos que se sentem homem e mulher ao mesmo tempo, ou os que não se sentem nem totalmente homem, nem totalmente mulher? Lacan propõe dois sexos como opção de identificação sexuada, que corresponderiam a dois modos de gozo fálico. O gozo fálico e o gozo feminino, este sim sexuado, isto é, qualificado como feminino, embora não seja privilégio da mulher assim como o gozo fálico não é atributo do homem. Então dois sexos e três gozos?

Há um saber se virar que escapa ao simbólico. A psicanálise quer saber como os sujeitos se viram, se arrumam, não sem ambiguidade, do lado homem e do lado mulher. Elas definem contornos lógicos do gozo de cada sexo: o gozo do lado mulher é ilimitado enquanto o do lado homem é limitado pelo pai que teria um gozo ilimitado. Este ilimitado do lado mulher não forma universo, mas talvez faça aglomerados (LGBTTI), classes paradoxais de gozos particulares.

Vejamos então a passagem do sem. 19 "...ou pior" (Lacan, 2011-2012) onde Lacan escreve o "erro comum". É uma passagem bem complexa.

 

 

Na lição 1 deste seminário, Lacan esclarece não caber nenhuma ambiguidade no dizer não há relação sexual. É uma proposição completa que se propõe como verdade. Mas como a verdade só pode meio dizer-se, Lacan propõe que a metade diz pior. Se não houvesse este pior (a outra metade) isto simplificaria as coisas (esta é aliás, a última fala de Teresa-Tirésias no final da peça de Apollinaire 'As tetas de Tirésias" : "Não compliquemos as coisas!", que veremos a seguir. Ninguém está a salvo de cair no pior, exatamente como todo mundo, até os analistas. "Como o analista ainda não se apercebeu de que não existe relação sexual, o papel de protetor dos casais o obceca". Agarra-se ao mastro como Ulisses, mastro neste que vocês não poderão deixar de reconhecer o falo. "Porque os sujeitos temem que a análise venha a restringir as relações interessantes, os atos apaixonantes, as perturbações criadoras exigidas pela ausência das relações sexuais?" (Lacan, 2011-2012, p 19). É porque sabem do silêncio analítico institucionalizado sobre a questão de que não existe relação sexual. Cito Lacan: "Quando digo que não há relação sexual, formulo esta verdade: o sexo não define relação alguma no ser falante". (Lacan,2011-2012 p. 13)

Lacan refere-se a um 'erro comum' que seria da comunidade, do laço social, que é o discurso sexual corrente. Lembro que a questão do erro é uma questão cara a Freud. Desde o fundamento da psicanálise, Freud considera o inconsciente como a coisa em si, propriamente incognoscível, colocando-se como um agnóstico. Há uma impossibilidade, um limite absoluto ao saber. Assoun, em sua Introdução à epistemologia freudiana (Assoun,1981), recorda-nos a influência de Du Bois-Reymond sobre Freud. Em 1872, no Congresso de Naturalistas em Leipzig, Du Bois-Reymond lança o que viria a ser o lema dos agnósticos: "Ignoramus. Ignorabimus!" (Ignoramos, ignoraremos).

Há uma singular racionalidade em Freud, o Phantasieren. Em Análise terminável e interminável (1937/1977), Freud, como Fausto, apela à feiticeira, alcunha de sua metapsicologia. A atividade teórica é uma forma de fantasia. Neste texto, a fantasia está ligada a especulação e ao teorizar. O erro é interpretado como um sintoma do recalcado. A própria função do julgamento é atravessada pelo desejo, como no caso da fase fálica.

Voltando a Lacan, sua referência ao 'erro comum' parece assumir o discurso sexual corrente como um erro. Segundo Morel (2000), haveria aqui uma alusão à queixa do transexualista de ter um corpo errado ou de ser vítima de um erro da natureza. De que lugar se pode falar em erro? Haveria o verdadeiro em algum lugar? Ou, com Freud, serão sempre fantasias subjetivas em busca de dizer a Coisa?

Em todo caso, Lacan considera comum o erro de todo mundo, ou seja, um universal, exatamente a função fálica. O erro de todo x é não ver que o significante é o gozo e o falo apenas sua significação genérica. Na metáfora paterna, o falo é o nome da ausência, é a resposta à constatação da ausência da mãe. Para acessar o outro (sexo) é preciso pagar o preço: a pequena diferença anatômica passa erroneamente ao real através da transformação em significante. É este o erro? Ficar cis, isto é, ficar conforme à heteronormatividade: 'homem é homem e mulher é mulher', como disse uma militante transsexual. Nada de trans, E Lacan entende que o pleito do transexualista é querer libertar-se desse erro, recusando a entrada na função fálica. Sua saída é forçar pela cirurgia e escapar ao real que está na impossibilidade da relação sexual, graças a copulação discursiva entre o discurso do capitalista e o discurso da ciência que 'disponibiliza' a estes sujeitos 'hormonoterapias' e cirurgias mutiladoras.

Surpreendentemente, Lacan diz que é a mesma coisa que anunciara em "Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina": só a homossexual sustenta o discurso sexual em toda segurança (en toute securité). Nesse texto, em que, apesar de certo didatismo na forma e um intuito colaborativo um tanto autoritário ('diretrizes'), Lacan é traído por uma escrita rebuscada que obscurece a recepção do leitor e sela o destino de um texto pouco lido. Parece-me que Lacan propõe que a homossexual se colocaria num desafio (aqui a semelhança com o transexualista) não à ordem fálica, mas em relação ao objeto incestuoso (o pai), mostrando a este como se deve amar uma mulher. O amor cortês que, mais do que qualquer outro, se 'gaba' de dar o que não se tem, seria o caso. Seria isso o que Lacan define como "a sustentação do discurso sexual em toda segurança"? E por aí a homossexual seria "amputada" do discurso analítico "numa total cegueira do que se refere ao gozo feminino"? É neste contexto que Lacan, em tom elogioso, invoca a liberação que o preciosismo produziu. As preciosas praticavam o excesso do amor, não tomando o falo por um significante.

Em associação à cegueira, Lacan passa à peça de Apollinaire, "As tetas de Tirésias". Escrita em 1906 e encenada pela primeira vez em plena guerra, em 1917, temos Teresa, que é uma feminista. Não quer mais obedecer ao marido, quer estudar. Ser médica, deputada, matemática, física e não quer ter filhos nem cozinhar para o marido. Quer ir para a guerra, lutar ao lado dos homens. Declara que vai virar homem e chamar-se Tirésias. Abre a blusa e se soltam dois balões, uma azul e outro vermelho, que chama "os dois pássaros de minha fraqueza". E lhe crescem barba e bigode. Teresa vai e neste meio tempo, o marido cede aos apelos de um gendarme que se apaixonou por ele e dá à luz 40.049 bebês, dos quais cuida com devoção. Na cena final, Teresa-Tirésias volta à casa e ao marido que a aceita, apesar de observar que ela está "chata como um percevejo". Diz o marido: "Querida Teresa, já não é necessário que sejas chata como um percevejo" e busca dentro da casa os balões e os devolve a Teresa. Mas Teresa diz: "Não precisamos mais disso", e o marido: "É verdade, não compliquemos as coisas". A frase final de Teresa: "Voem, pássaros da minha fraqueza. Vão alimentar a todos os bebês da repopulação!" Ao final da peça, um coro entoa: Cantem noite e dia/ arrisquem se lhes dá vontade/ amem o branco e também o preto/ quanto mais mudança mais encanto/ é só se aperceber disso.

Lacan surpreende mais uma vez ao escrever que Teresa vira Tirésias, não soltando os pássaros de sua fraqueza e sim os recuperando. No texto de Apollinaire, ao contrário, quando volta a ser Teresa e o marido lhe traz os balões que representam os dois pássaros de sua fraqueza, que por sua vez representam os seios, Teresa responde que não precisam mais disso e solta os balões mais uma vez. No entanto, considera coerentemente que, nesta autoamputação, mostra-se que a mulher só goza de uma ausência.

Voltando à questão do 'erro comum', de que são prova o machismo, ou exibição viril, e a mascarada feminina que caracterizam o discurso sexual corrente, deduzo que Lacan supõe que a homossexual está no discurso sexual corrente e na função fálica, mas o transexualista se colocaria fora do erro comum do discurso sexual corrente. Mas os sujeitos, na função fálica, estariam excluídos, 'amputados' do discurso psicanalítico? Esta 'amputação' me parece um pouco obscura. Aproveito para mencionar que, através de um ação judicial, Neon Cunha teve sua auto-declaração como mulher reconhecida sem cirurgia ou laudos médicos. Esta parece ser uma auspiciosa nova tendência entre estes sujeitos.

Enfim, alguma luz e muitas sombras..., como disseram os alunos de Lacan, no seminário 11 (Lacan, 1985 [1973]). Non liquet, como dizia Freud (1917/1977), desanimado. Impossibilidade de saber, dizemos nós, resignados.

 

Referências

Apollinaire, G. (1917) As Mamas de Tirésias. Tradução em circulação interna na Escola Letra Freudiana/Rio de Janeiro (s.d.         [ Links ])

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Recebido em: 12/12/2015
Aprovado em: 03/03/2016

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