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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.8 no.2 Rio de Janeiro Jul./Dec. 2016

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2016v2p.173 

ARTIGOS LIVRES

 

Anton Webern e a tradição. Uma análise das relações forma-série empregadas nas Três canções sobre Textos de Hildegard Jone op.25 e nas Variações para piano op.27

 

Anton Webern and the tradition: an analysis of the relations of the series-forms employed in Three Songs on Texts of Hildegard Jone op. 25 and Piano Variations op.27

 

 

Ernesto Hartmann

Doutorado em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil (2010), Professor Adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo. Endereço: Av. Fernando Ferrari, 514 - Goiabeiras, Vitória - ES, 29075-910. E-mail: ernesto.hartmann@ufes.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho visa demonstrar, através da análise das relações entre as formas-série empregadas nas 3 Canções op. 25 sobre Textos de Hildegard Jone e nas Variações para Piano op.27 de Anton Webern, a profundidade e o significado da afirmação de Paul Griffths sobre o neoclassicismo presente no estilo deste compositor, e, por consequência, sua aderência à tradição. Além da análise destas relações das formas-série e suas articulações com as estruturas formais das obras, buscaremos, nos depoimentos do próprio Webern, estruturar questões que permitam nortear a análise visando elucidar quais seriam os elementos tradicionais presentes nestas duas obras seriais de sua fase madura, normalmente associadas a um rompimento com a tradição. Como conclusão estabeleceremos as relações de classe 5 (quintas ou quartas justas) como ordenadores de grande parte das relações entre as formas-séries presentes nas obras, estabelecendo uma analogia, uma releitura das práticas tonais, esta por si mesma representante mais simbólica da tradição.

Palavras-chave: ANTON WEBERN; TRADIÇÃO; 3 CANÇÕES SOBRE TEXTOS DE HILDEGARD JONE OP.25, VARIAÇÕES PARA PIANO OP.27, NEOCLASSICISMO.


ABSTRACT

This paper aims to demonstrate through an analysis of the relations between the series-form used in Anton Webern's 3 songs on texts of Hildegard Jone op. 25 and Piano Variations op.27 the meaning of Paul Griffths' assertion about the Neo-classicism present in the style of the composer, and consequently his adherence to the tradition. Furthermore the analysis of the relations and it's articulation with the structural mainframe of the works we shall investigate in Webern's own words what are the elements or techniques that may guide our analysis in order to elucidate the traditional features that may be present in his late style, usually known for its vanguardist attributes. We'll conclude that the relations, pregnant of class 5 intervals, prevail on most of the work, particularly on the first two movements, settling an analogy, a new interpretation of the tonal practices, by themselves the most representative icon of the occidental music tradition.

Keywords: ANTON WEBERN; TRADITION; 3 SONGS ON TEXTS OF HILDEGARD JONE OP.25, PIANO VARIATIONS OP.27, NEO-CLASSICISM.


 

 

Introdução

A afirmação de Paul Griffiths (1998) - "É a radical novidade do estilo de Webern que torna discreto o seu neoclassicismo, tão discreto quanto o de Bartók, que na mesma época adaptava procedimentos barrocos à construção de formas simétricas" (Griffiths, 1998, p.92) - quando examinada de forma cuidadosa, apresenta-nos uma perspectiva diversa da que geralmente buscamos ao compreender Anton Webern como um ícone da música pós-tonal.

Evidentemente, Webern pode e deve confortavelmente ser posicionado como o compositor que revolucionou diversos aspectos da música, criando caminhos e apontando possíveis rotas que foram seguidas pelos compositores do século XX e que, até mesmo, ainda no século XXI, é objeto de fértil discussão. Esse posicionamento deve-se ao seu inovador tratamento dos parâmetros da música como textura, ritmo, organização motívica, alturas (esse último parâmetro, naturalmente relacionado às técnicas seriais e dodecafônicas da Segunda Escola de Viena), timbre e dinâmica. Mesmo dentro da forma, podemos destacar muitas contribuições de Webern que se demonstraram de grande relevância para a segunda metade do século XX, tendo como exemplo, ao mesmo tempo mais simples e capital, a estruturação palindrômica do segundo movimento da Sinfonia op.21.

Não obstante, interessa-nos investigar, neste artigo, as relações de Webern dentro da sua própria concepção dialética entre progresso e tradição. De que forma, para além das facilmente percebidas nos aspectos superficiais da obra (superficial, aqui, utilizado como termo referente à estrutura e à percepção), podemos compreender as afirmações de Webern e de Griffiths no que diz respeito à sua observação das práticas musicais germânicas consagradas desde Bach (muitas vezes especificamente do sistema tonal, como a forma Sonata), e à sua autoavaliação como compositor de continuidade da tradição, avaliação esta em plena consonância com a sua concepção do grupo de Schoenberg - posteriormente definido como Segunda Escola de Viena.

De acordo com Griffiths,

de uma outra perspectiva, no entanto, as formas e texturas precisas de sua música podem ser vistas como produtos do Neoclassicismo. Como Schoenberg, ele [Webern] retornara a modelos estruturais do passado que frequentemente os integrasse ao compacto desenho de suas próprias formas: ele definiria o primeiro movimento da Primeira Cantata como "um scherzo que se manifestou a partir de variações, mas permanece ainda assim como uma fuga!" O Concerto para nove instrumentos (1934) é um Concerto de Brandenburgo do século XX, e as duas cantatas - embora ele comparasse a segunda a uma missa renascentista - tem muito em comum com as cantatas religiosas de Bach, inclusive o caráter piedoso (Griffiths, 1998, p.92).

Também, no verbete Webern do Grove Dictionary, podemos observar uma preocupação em ressaltar os aspectos românticos do compositor, pois,

ironicamente, Webern o compositor que era visto por muitos como o mentor do hiperintelectualizado serialismo das décadas imediatamente posteriores a sua morte e cuja música a maior parte dos ouvintes achava desorientante e estranha após uma primeira audição, era por natureza um ardente romântico que sempre defendeu os ideais de sentimento e paixão além de compreensibilidade como os mais importantes na arte. A natureza, e os Alpes em particular, eram quase como uma obsessão para ele, e seu amor pela paz e tranquilidade encontrada nas montanhas, assim como sua fascinação com as flores dos campos alpinos foram a influencia de seus trabalhos em muitas formas, alguns dos quais até nem nunca serão totalmente compreendidos. O seu trabalho em muitas de suas obras mais abstratas foram precedidos por esboços ou projetos em que os vários movimentos, seções ou temas eram similares a lugares, climas ou flores alpinas ou mesmo a membros próximos de sua família, uma manifestação mais tangível da sua fascinação com as flores alpinas foi o seu interesse pelas teorias de Goethe sobre as cores e a Urpflanze, esta última sendo, evidentemente, a expressão da ideia de unidade, que para ela, assim como para Schoenberg era essencial1 (Sadie, 1981).

Dentre muitas passagens, selecionamos duas reproduzidas nos dois trechos extraídos das palestras de Webern que corroboram a afirmação de Griffiths e a do dicionário Grove,

portanto o estilo que Schoenberg e sua escola buscavam era uma nova interpenetração do material musical no horizontal e no vertical: polifonia, que até então atingiu seu clímax nos Franco-flamengos e em Bach, e posteriormente, os compositores clássicos. Existe uma constante tentativa de se derivar o máximo possível de uma ideia principal. Deve ser posto desta forma, pois nós [Segunda escola de Viena] também estamos compondo em formas clássicas que não foram extintas. Todas as formas engenhosas desveladas por estes compositores também ocorrem na nova música. Não é uma questão de reconquistar ou reviver os Franco-flamengos, mas de preencher suas formas tal como os mestres clássicos, de unir estas duas coisas2 (Webern, 1963, p.43).

e

agora vamos retornar aos mestres da escola Franco-flamenga! Então um compositor escreveria a melodia com apenas sete notas, mas sempre relacionadas a esta escala. O mesmo acontece com a descoberta de Schoenberg, a composição com doze notas relacionadas apenas uma a outra. Nada mais!!! Mas porque era interessante para nós que a mesma coisa fosse enunciada o tempo todo. Tentava-se criar unidade, relações entre as coisas, e certamente, o máximo de unidade é quando todos cantam a mesma coisa o tempo todo, o máximo de unidade imaginável3 (Webern, 1963, p.48).

Ainda, podemos mencionar uma observação de Griffiths, várias vezes reiterada por Webern ao longo de suas palestras, transcritas em The Path for New Music, da relação de sua proposta artística com o conceito do "Fenômeno Primordial" (Urphänomen) de Goethe,

Para Webern a série era um exemplo do "fenômeno primordial" de que falava Goethe, "ideal como o mais elementar objeto reconhecível, real quando reconhecido, simbólico, já que engloba todos os casos, idêntico a cada um dos casos" (Griffiths, 1998, p.90).

Na seguinte afirmação, extraída de sua palestra de 20 de fevereiro de 1933, transcrita em The Path of New Music, Webern invoca a concepção de Goethe acerca da arte da antiguidade, fundamentada em supostas leis de verdade e natureza. Evidentemente, não se esperaria uma fundamentação num dos principais símbolos do movimento Sturm und Drung e da própria literatura germânica, tampouco uma simples alusão a ele, caso a posição de Webern fosse de cisão completa, a exemplo do movimento futurista de Marinetti (1909). Desta breve citação, no entanto, podemos concluir o sentido de continuidade da tradição, não sem aceitar, por outro lado, a imposição histórica de um processo revolucionário concentrado (de acordo com Webern, conforme exposto por ele mesmo nos capítulos finais do The Path for new Music intitulados The Path for Twelve-note Composition). "Outra citação de Goethe visto que expressa tão maravilhosamente bem nossa linha de pensamento. Ele fala da arte da antiguidade: 'Estas grandes obras de arte eram proeminentes em virtude e de acordo com as leis verdadeiras e naturais4'" (Webern, 1963, p.11).

Em The Path for New Music, existem diversas situações em que o autor busca justificar as perspectivas estético-técnicas da Segunda Escola de Viena como um lógico e natural desdobramento histórico da tonalidade. Na citação seguinte, podemos observar como Webern atribui a Schoenberg a "restauração" da ordem, da unidade perdida com a dissolução da tonalidade.

Se quisermos visualizar historicamente como a tonalidade despareceu [dissolveu-se] e o que a fez começar, até que um dia, finalmente Schoenberg percebeu por pura intuição como restaurar a ordem, isso ocorreu em torno de 1908 quando da ocasião do surgimento das peças op.11 de Schoenberg. Estas foram as primeiras peças "atonais". As primeiras obras em doze sons de Schoenberg surgiram em 19225 (Webern, 1963, p.44).

Sua concepção de progressão lógica da história (bastante positivista por sinal) culmina naturalmente com a supressão do gênero maior menor da tonalidade (pantonalismo), característica observada no período imediatamente anterior à adoção do dodecafonismo pela Segunda Escola de Viena. Isso fica bastante claro nas próprias palavras de Webern:

Nós [ao longo das palestras] vimos dois exemplos dos grandes tempos da polifonia e vimos, digamos claramente, o quanto elucida a música dos nossos dias também. Vimos a conquista gradual do campo tonal ocorrendo, por assim dizer, os tempos do estilo polifônico simultaneamente assistem o início do desenvolvimento do diatonicismo para o cromatismo para a conquista das doze notas. Recapitulando, primeiro o homem conquistou a escala de sete notas, esta escala tornou-se a base das estruturas que caminharam para os modos eclesiásticos. E agora nos vemos como, gradualmente, duas destas escalas cada vez mais suplantaram as outras: são as duas que representam o modo maior e menor. Aqui também um fato notável é que a necessidade da cadência foi um fator determinante para a escolha destes dois modos, a necessidade de uma sensível que faltava nos outros modos. Isso foi então reproduzido nas outras escalas de forma que estas tornaram-se idênticas as duas (maior e menor). Assim, os acidentes determinaram o fim da era dos modos eclesiásticos e o surgimento dos nossos gêneros maior e menor. Agora devemos olhar um pouco mais adiante na conquista do campo tonal! Os dois gêneros tonais, maior e menor, foram predominantes até o nosso tempo, mas agora, por aproximadamente um quarto de século, uma nova música existe que prescinde desta dualidade de gêneros6 (Webern, 1963, p.28).

Menos de uma página depois, podemos encontrar outra justificativa que se opõe ao conceito de ordem e tradição, apontando para a originalidade e novidade não só de uma determinada técnica, mas de toda a obra do grupo, visto que Webern coloca sua fala na primeira pessoa do plural,

nosso empurrão à frente tinha que ser feito, foi um empurrão de uma maneira como nunca antes havia sido realizado. Na verdade, nos tivemos que quebrar barreiras com cada nova obra: cada nova composição era algo diferente, algo novo7 (Webern, 1963, p.45).

Esta observação é ainda reforçada pela declaração de que o uso da tonalidade, já no início da década de 1930, momento em que se realizaram essas palestras, era obsoleto havia quase um quarto de século: "ainda há aqueles que baseiam suas composições na tonalidade, apesar do quarto de século já passado desde seu fim8" (Webern, 1963, p.49).

A preocupação de Webern não se resumia em explanar apenas a queda do sistema tonal e sua superação por parte do novo sistema empregado pelo seu grupo. Seu projeto estético abarcava uma profunda reflexão do conceito de unidade na composição, buscando estabelecer uma linha progressiva (mais uma vez numa perspectiva abertamente positivista) desde a Escola de Notre Dame até os dias presentes, onde a obra de seu grupo representaria o mais elevado ponto nesta escala. Estaria ela, a Segunda Escola de Viena, efetivamente recuperando um grau de unidade virtualmente impossibilitado pelo tonalismo, e que já havia sido alcançado e aperfeiçoado anteriormente por estes polifonistas (cuja utilização de recursos polifônicos imitativos, particularmente o cânone, técnica onde a repetição do material é praticamente idêntica, apenas deslocada metricamente).

Webern não nos explana literalmente em The Path for New Music, mas fica evidente que, para ele, a organização básica das funções tonais - Tônica-Subdominante-Dominante-Tônica - organização esta não retrogradável, seria um empecilho (assim como foi para os compositores do século XVIII e XIX) para a utilização rigorosa das técnicas imitativas retrogradáveis, tão caras para ele como elemento unificador do material motívico de suas obras.

Vamos novamente sintetizar, porque eu ainda quero falar sobre a nova música propriamente dita. Mas eu espero já ter oferecido um quadro geral. Mais uma vez, como tópicos: a escala diatônica, a destruição dos modos eclesiásticos: do outro lado, em relação à forma: o grande florescimento da polifonia a partir de uma sempre crescente unidade, com o resultado que nos tempos finais da Escola franco-flamenga uma obra completa poderia ser construída por uma sequência de notas e sua inversão, cancrizante [retrogradação], ritmos alterados etc. Mais unidade do que isso é impossível, uma vez que todas as vozes tem algo a dizer. Então, novamente, livramo-nos disso! O que veio depois? Desenvolvimento da melodia, Maior e Menor, conquista do cromatismo, somente na música vocal. A música instrumental excluída do panorama aqui tornou-se arte, uma nova forma de expressão quando associada à canção folclórica. Beethoven e a conquista do campo tonal? Após os clássicos, o rompimento com a tonalidade. Então assistimos cada vez maiores conquistas no campo tonal tal qual expressas por o que Goethe chamaria "Lei natural como relacionada ao sentido da escuta" e a urgência da tentativa da compreensibilidade de criar cada vez mais unidade, simplesmente porque unidade aumenta a compreensibilidade. Agora, nós devemos ver como esses elementos se desenvolveram e nos conduziram ao crescimento da última década, composição em doze sons apenas relacionados uns com os outros. É o produto final dos dois elementos observados até o momento. As pessoas estão equivocadas ao considerarem-na apenas um substituto da tonalidade, aqui o elemento de compreensibilidade é importante acima de tudo para introduzir mais unidade! Esta é a razão para este tipo de composição9 (Webern, 1963, p.32).

Posicionando-se novamente na vanguarda, ele afirma a relevância da unidade e da nova linguagem como consequência do desenvolvimento natural, ao mesmo tempo em que desqualifica todos aqueles que não seguem o seu caminho, ou ainda, os que se utilizam dos recursos harmônicos e construtivos do que ele nomeia de pós-classicismo (que deveremos compreender como século XIX):

Falo a respeito desta música, uma vez que tudo mais está no máximo próximo desta técnica ou é conscientemente oposta a ela e, portanto, usa um estilo que nos não devemos analisar mais em detalhes, dado que não vai além do que foi descoberto pela música pós-clássica [sic] e apenas o faz de forma ruim. As maiores descobertas foram feitas pela música, pelo estilo introduzido por Schoenberg e que seus discípulos continuaram. Estas palestras têm o objetivo de demonstrar o caminho que levou até esta música e deixar claro que ela deveria naturalmente ter este resultado10 (Webern, 1963, p.32).

Onde estariam então os elementos que poderiam determinar estas concepções observadas nos depoimentos do próprio compositor? Estaria Webern disposto a simular alguns procedimentos do tonalismo, como uma possível simbologia, inserida dentro de suas obras de forma discreta, não perceptível sem uma análise mais profunda, como propõe Griffiths?

Acreditamos que parte da primeira questão já está amplamente respondida, pois existe uma quantidade enorme de trabalhos sobre Webern, em diversos idiomas, que abordam sua perspectiva como a de um compositor revolucionário, quer como membro da Segunda Escola de Viena, quer como revolucionário, em comparação com Schoenberg e Berg.

No tocante à segunda parte desta questão, podemos acrescentar alguma novidade quanto à sua aderência, explícita ou implícita, à tradição. Para tal, buscaremos na análise de duas peças de seu período maduro (serial-dodecafônico), as Três Canções sobre Textos de Hildegard Jone op.25 (1934-35), com destaque para a primeira - a canção Wie bin Ich Fröh!, e as Variações para piano op.27 (1935-36), alguns subsídios para sustentar nossa hipótese. Essas são obras bastante conhecidas, bem elaboradas em seus detalhes e, particularmente, utilizadas para demonstrar (Strauss, 2000) as características modernas do compositor. Ainda, ambas as obras utilizam séries não simétricas e contrastam entre si no que diz respeito ao número de formas diversas da série. O op.25 utiliza apenas oito formas da série dentro de quarenta e oito possíveis, ao passo que as Variações se servem de vinte duas formas também dentre quarenta e oito possíveis.

Dois parâmetros serão abordados e nortearão as análises: a) a questão da escolha e organização das formas das séries empregadas nestas peças e b) a questão da disposição destas formas da série na estrutura das obras, revelando os arquétipos possivelmente tonais que sustentam a estrutura formal.

 

A escolha das forma-série das Três Canções op. 25

De acordo com Strauss (2000, p.139), a série na qual o op.25 de Webern foi composto pode ser expressa através da segmentação iniciada na linha do canto, ao invés da encontrada no piano. Assim, as formas empregadas pelo compositor quando nomeadas ficam mais evidentemente relacionadas.

No exemplo 01, observamos em laranja o nosso padrão de forma da série: O7 (7,4,3,6,1,5,2,11,10,0,9,8). Observamos aqui que, se a forma retrógrada (R) desta transposição específica fosse usada, nomeá-la-íamos como R7, em virtude não de sua primeira nota, mas sim pela sua origem (Retrógrada da O7).

Montando uma matriz 12 x 12 (exemplo 02) para auxiliar-nos na segmentação, obtemos:

Podemos concluir, então que a forma da série apresentada pelo piano nos c.1-3 e destacada no exemplo 01 em verde corresponde à forma RI7.

De posse da matriz, podemos oferecer a seguinte tabela apresentada no exemplo 03 com as segmentações e as correspondentes formas presentes em toda a obra:

De acordo com esse quadro, observamos apenas a utilização de duas formas com suas respectivas retrógradas dentro das quarenta e oito possíveis, a O7 e a I7, uma vez que se trata, neste exemplo, de uma série não retrogradável12. Muito mais complexas do ponto de vista de entrelaçamento das formas das séries, ainda que se valham dos mesmos econômicos recursos, são a segunda e a terceira canção. Os exemplos 04 e 05 mostram a primeira enunciação da série em cada um dos casos permitindo-nos associar com a matriz e obter as correspondências das formas:

Os seguintes gráficos apresentados nos exemplos 06 e 07 ilustram a segmentação possível a partir da matriz. O gráfico colorido facilita a visualização da distribuição espacial das séries ao mesmo tempo em que permite a visualização dos critérios de distribuição das formas em função da estrutura das obras. Em todas as três canções do op. 25, percebemos uma estruturação ternária bastante clara, porém construídas por diferentes modos de articulação entre as formas da série.

Com essa segmentação, percebemos que Webern elegeu para este opus uma única série apresentada de apenas quatro formas diferentes com suas respectivas retrogradações, a saber: O7,I7,O0,I0 (retrogradadas por: R7,RI7,R0,RI0).

A distribuição das formas obedece à seguinte regra: as canções externas do conjunto, primeira e terceira, são exclusivamente construídas com as formas da série de índice 7 e a canção intermediária do conjunto exclusivamente com as de índice 0. Uma vez que o índice da série representa sua nota inicial e a distância entre os índices segmentados é 7, isso significa que a distância entre as formas das canções um e três em relação à canção dois é de 7 semitons. Há aqui então uma relação entre as alturas escolhidas da série que simula uma analogia com a relação Dominante-Tônica, ou mais especificamente neste caso, Tônica-Subdominante, tão peculiar do período tonal, tão essencial à tradição da qual Webern afirma ser originário. Seria uma versão análoga serial-dodecafônica de um conjunto de três canções nas tonalidades de Sol-Do-Sol respectivamente, situação incalculavelmente comum no período tonal.

No que diz respeito às correspondências entre as formas da série e a estrutura formal de cada peça, temos:

a) Op. 25 nº1 - Forma ternária (Introdução - c.1-2, A - c.3-5, B - c.6-8, A' - c.9-11, Coda - c.12). A linha melódica do canto articula-se com perfeição à forma, pois associa a forma O7 às Seções A e A' e a forma I7 à Seção B. Cabe ao piano articular todas as quatro formas, predominantemente RI7 e O7 em A, R7 e I7 em B e RI7 e R7 em A' e I7 na Coda. Uma associação direta e simples.

b) Op.25 nº2 - Forma ternária (Introdução - c.1-3, A - c.4-20, B - c.21-31, A' - c.32-42). Novamente a linha do canto expõe as formas I0 e O0 na Seção A, contrastando com R0 e O0 na parte central (R0 exclusivo desta parte no canto). A' retorna ao I0 introduzindo RI0 (forma que contém a mesma sequência de I0, porém de trás para frente, garantindo a unidade da ordem de apresentação). Esta peça é mais complexa, com mais elipses entre as formas, e uma utilização mais densa e rica das formas na escrita do piano.

c) Op.25 nº3 - a mais complexa das três, também uma forma ternária (Introdução - c.1-3, A - c.4-25, B - c.29-51, A' - c.52-76, Coda - c. 77-78), em que, na linha do canto, 07 se opõe à I7, delineando A e A'. RI7 e O7 definem a Seção central da peça, porém RI7 também é exposta em A'.

Com essa constatação, fica bastante claro o processo de escolha do compositor pelo uso criterioso de formas da série como delimitadores de regiões estruturais formais neste opus.

A mesma situação e analogia ao sistema tonal, porém, ainda mais complexa, pode ser observada nas Variações op. 27.

 

A escolha da forma-série nas Variações op. 27

novamente sobre a tonalidade: foi ela um meio sem precedentes de moldar a forma, de produzir unidade, do que consistia esta unidade? Do fato de que uma peça era escrita em uma tonalidade específica. Esta era a tonalidade principal que era escolhida e que a ansiedade do compositor em demonstrá-la explicitamente pode ser compreendida. A peça tinha uma tonalidade principal, era mantida, abandonada para posteriormente se retornar a ela. Constantemente ela reaparecia e isso a fazia predominante. Havia uma tonalidade principal na exposição, uma no desenvolvimento, uma na recapitulação etc. Para cristalizar esta tonalidade de forma mais definida, havia Codas em que a tonalidade principal reaparecia. Eu preciso recordar essas questões porque estamos discutindo algo que desapareceu. Algo deveria vir e restaurar a ordem13 (WEBERN, 1963, p.47).

Não obstante a afirmação de que a "tonalidade" havia desaparecido, o próprio Webern contemporiza de forma assertiva com um novo sistema de organização, algo que deveria vir e restaurar a ordem. Ao analisarmos as Variações op.27, em cada um dos seus três movimentos, podemos novamente perceber as rigorosas escolhas feitas pelo compositor no que diz respeito às transposições, inversões e retrogradações da série principal que foram empregadas e o modo de como elas apontam para esse novo sistema de organização. É mister informar que tal sistema admite analogias surpreendentes com algumas teorias do sistema tonal, como a Schenkeriana por exemplo. Se, para Schenker, toda a tonalidade pode ser expressa através de um desdobramento do acorde da Tônica representado pela Urlinie, nas Variações op.27, ao analisarmos as relações entre as séries, fica claro que o análogo ao acorde da tônica se faz presente enquanto acordes de quartas justas, acordes de quarta justa e quarta aumentada (segundo Menezes o primeiro arquétipo de Webern14), acordes diminutos e até mesmo tríades perfeitas maior/menor. Nos dois primeiros casos, podemos associar essa nova relação ao componente vanguardista presente no discurso do compositor, porém, nos dois casos seguintes, associamo-la mais especificamente ao componente tradicionalista, que, dialeticamente, convive tanto nesse mesmo discurso como nas obras, tal como queremos demonstrar neste trabalho. O exemplo 08 ilustra a série e sua matriz 12x12 empregada por Webern nas Variações op.27. A mesma série é empregada nos três movimentos da obra.

 

 

Existem diversos métodos para obtenção da série, porém, qualquer que fosse a nossa escolha o resultado de nossas observações seria o mesmo, visto que se trata apenas da definição de qual transposição será considerada a principal. A partir desta escolha, os índices de transposição serão apenas referências relativas e não absolutas, permitindo que a distância entre quaisquer duas formas das séries possa ser calculada em termos de classe intervalar15 (STRAUSS, 2000). Optamos por eleger como a forma principal a O3 (P3), de acordo com Gandelman (2000). Uma vez que estamos interessados apenas nas relações intervalares entre as séries e não exclusivamente em que nota ou notas elas iniciam (estas só são usadas para elucidar a distância intervalar entre as séries), a escolha apontada por Gandelman nos parece razoável e eficaz, visto que opta por esta forma da série devido ao fato de que ela inicia o terceiro movimento, o primeiro a ser composto.

No que diz respeito à forma das Variações, Gandelman também nos mostra que existem muitas hipóteses. Citando diversos autores como Leibowitz, Dohl, Kater e Koellreutter, a autora nos oferece a possibilidade de vislumbrar a obra como uma Suíte de três movimentos, uma variação progressiva em desenvolvimento (developing variation), uma Sonata, uma Sonatina ou mesmo uma forma livre atemática. "Döhl, citado por Sampaio (2000, p.17), considera-a como um conjunto de "três movimentos independentes em forma de variações", construídos a partir de uma única série fundamental" (Gandelman, 2000, p.108). De qualquer modo, é fato que os dois primeiros movimentos se estruturam de forma ternária e o terceiro em variações. Não entraremos mais em detalhes aqui sobre a forma específica, pois o que nos interessa para esta análise é a organização em linhas gerais e sua articulação com as séries. De qualquer modo, é importante ressaltar quanto ambígua é a forma adotada pelo compositor, capaz de suscitar tantas diferentes hipóteses sobre a sua estrutura formal.

O primeiro movimento apresenta a seguinte ordem de apresentação das séries (exemplo 09) distribuídas nas seções da peça A (c.1-18), B (c.19-36) e A' (c.37-54).

Com esta segmentação temos 22 formas sendo quatro P, seis R, seis I e seis RI: P3, P8, P10 e P11, R0, R3, R5, R8, R10, R11, I2, I3, I4, I8, I9, I11, RI2, RI3, RI4, RI8, RI9 e RI11.

Através da comparação entre os índices destas séries, podemos estabelecer um quadro com gráficos onde avaliaremos quais os intervalos mais comuns presentes nas transposições separando cada tipo de forma da série (P, R, I e RI) (exemplos 10, 11, 12 e 13):

Como fica elucidado pelos gráficos, em todas as condições, neste primeiro movimento, a classe intervalar 5 é a predominante entre as relações das transposições. Isso significa, uma vez que essa classe reproduz o intervalo de cinco ou sete semitons, uma relação análoga à tradicional tonal Tônica-Dominante ou Tônica-Subdominante.

No breve segundo movimento (forma ternária ABA' - c.1-11, c.11-17 e c.17-22), esta situação é ainda mais evidente conforme podemos apreciar nos exemplos (15 e 16). No exemplo 14, temos a distribuição das formas-índices ao longo da forma ternária do movimento:

 

 

Só existem dois tipos de forma (distribuídos em vários índices) neste movimento: a forma R e a forma RI. A presença da classe 5 como a relação mais frequente é notória, destacando-se ainda a ausência das classe 6 (trítono) como relação supostamente esperada, dada a sua característica mais dissonante e mais distante da forma original e das classes 1 e 4.

Essas similaridades entre o primeiro e o segundo movimento justificam-se quando compreendemos que a composição destes foi posterior ao do terceiro movimento. Gandelman nos demonstra isso quando afirma que,

em seu livro Anton Webern, uma crônica de sua vida e obra, Moldenhauer informa que o III Movimento, o mais longo deles, inicialmente constituído por sete variações das quais o compositor eliminou a IV e a VI, foi o primeiro a ser composto. A ideia de elaboração ou transformação permanente da variação (developing variation ou desenvolvimento por variação, segundo Kater16, 1984, p.67), já ocupava o espírito de Webern há anos. Ao iniciar o novo movimento, que viria a ser o primeiro da versão definitiva, Webern escreve a Polnauer: 'durante as últimas semanas, trabalhei ininterruptamente em minha obra e agora percebo que as variações prosseguem (variations go on further) mesmo que deem origem a movimentos dos mais diversos tipos' (Moldenhauer17, 1979, p.484). O II Movimento foi, então, o último a ser composto (Gandelman, 2000, p.108).

O Terceiro movimento já apresenta características particulares que o diferem do restante da obra. Neste movimento, a classe 5 não tem o papel primordial tal qual nos movimentos anteriores, estando a relação que tentamos demonstrar presente em outras formas de sistematização que demonstraremos logo à frente neste trabalho. Conforme podemos observar nos gráficos dos exemplos 18 a 21, a classe 5 só é a de maior ocorrência nas relações entre as formas R e RI da série, sendo inclusive sua presença nula nas relações entre as formas P. Nestas duas formas, ela é a de maior ocorrência sem prejuízo de outras classes, 2 e 2 e 4 respectivamente, indicando outras possíveis construções de relação entre sons. Nas relações entre as formas I, predominam a classe 1 e a classe 4, sendo a classe 5 menos frequente. Não obstante, a maior parte das relações possíveis se dão entre as formas RI, sendo sete ocorrências de classe 5 (assim como de classe 2 e classe 4). O exemplo 17 descreve a ordem das formas-séries empregadas no movimento:

Como já afirmamos, a partir das análises destes gráficos, suportamos a hipótese de o Terceiro Movimento (forma de variações, Var I - c.1-12, Var II - c.12-33, Var III - c. 33-42, Var IV - c. 43-55, Var V - c.56-66) ser realmente quase que uma peça separada dos dois primeiros, pois a lógica de suas relações entre os índices de cada forma da série estabelece um padrão, uma organização sistemática distinta dos movimentos anteriores. Isso também será percebido ao examinarmos quais relações são possíveis não só entre cada forma isoladamente, mas entre os diversos tipos presentes em cada Movimento. Para tal, é necessário atribuir a cada forma-índice uma altura, altura esta que diz respeito a sua primeira nota da série ordenada.

No caso dos tipos P e I, a primeira nota corresponde ao próprio índice, porém para as formas R e RI (em nossa opção de nomenclatura) aplicam-se índices que dizem respeito às formas originais das quais elas derivam. Por exemplo, a forma RI0 tem como nota inicial não o 0 (Dó), e sim o 7 (Sol), conforme pode ser consultado no exemplo 8, a matriz 12x12 com todas as formas da série. Estabelecendo esta associação, é possível visualizar não só as relações entre as séries de uma forma mais objetiva e menos abstrata do que através dos índices numéricos, como, da mesma maneira, perceber relações sutis e surpreendentes entre cada uma das formas empregadas. Essas relações são réplicas de arquétipos tonais, acordes quartais e do Primeiro Arquétipo de Webern, que sustentam a rede de formas e índices que o compositor utiliza na obra, um modo notavelmente análogo ao conceito já mencionado de Schenker de que a Urlinie é uma expressão do acorde da Tônica. Enfim, um substituto à organização da tonalidade conforme as palavras do próprio Webern já citadas neste trabalho.

Vale salientar que nossa preocupação difere da de diversas abordagens ditas "pós-schenkerianas" que almejam reproduzir ou adaptar o modelo e o conceito de estrutura fundamental proposto por Schenker ao repertório pós-tonal (tomemos Felix Salzer como exemplo mais representativo desta abordagem). O que propomos aqui é demonstrar não que exista uma relação de segundas que norteia e estrutura a obra (mesmo quando isso possa existir), tal qual a Urlinie, e sim que a projeção de uma ou mais entidades harmônicas (no caso do sistema tonal a tríade perfeita) permeia o nível estrutural da obra, e mais ainda, no caso de Webern, substitui o papel da tríade perfeita na tonalidade. Para Webern, esta entidade não se limita tão somente à tríade perfeita, ela pode ser o seu Primeiro Arquétipo, uma tétrade diminuta, uma tétrade de Dominante ou até mesmo uma tríade de quartas justas.

A organização dos dois movimentos iniciais opera quase que exclusivamente na lógica de utilização do seu primeiro arquétipo e da tríade em quartas como a entidade que estrutura a escolha das formas e índices das séries.

No primeiro movimento temos as seguintes combinações:

a) Na seção A, a combinação entre R11, P11, I11 e RI11, quando substituída por suas notas inicias gera o acorde Si, Mi, Fá# e Si, ou seja, uma tríade de quartas sobrepostas

b) Na seção B, outras combinações podem ser observadas. Nitidamente ocorrem duas progressões paralelas por "quintas descendentes", pois RI4/I4 representam a díade Mi/Si (classe 7 abaixo de Fá#/Si de RI11/I11), RI9/I9 a díade Mi/Lá e RI2/I2 a díade Lá/Ré. A outra progressão similar inicia-se em uma região distante, mas que, se considerada como complemento da anterior, gera o primeiro arquétipo de Webern. Esta é representada por R0/R5 com a díade Fá/Sib que progride para P10/R10 com a díade Sib/Mib e, por fim, R3/P3 com a díade Mib/Láb

c) Na seção A', observa-se uma maior estabilização, porém sem prejuízo da progressão I3/RI3, com a díade Sib/Mib progredindo para RI8-I8 com a díade Mib/Láb, e, por fim, P8/R8 com a díade Láb/Réb.

O exemplo 22 ilustra, através da disposição temporal, a maneira como Webern articula a forma geral do movimento com as formas da série. Fica evidente que a Seção interna representa a tensão entre duas progressões por quintas descendentes que, superpostas, geram o 1º Arquétipo. As seções A e A' são mais "estáveis", operando a progressão em apenas um nível. Seria possível estabelecer uma enorme quantidade de relações consequentes desta aqui representada como, por exemplo, o acorde de quartas justas sobrepostas pela fusão de duas díades consecutivas, porém a que aqui representamos contempla todas as combinações e demonstra melhor o sentido de direcionalidade do movimento na concepção de Webern, sempre análogo ao sistema tonal, e que podemos compreender quase como uma releitura do compositor das relações presentes no tonalismo.

No segundo movimento a situação é similar, porém ainda mais concisa, talvez em virtude do menor número de formas a série empregadas:

a) A relação entre R3, Ri3, R10 e RI8, as formas da série empregadas na Seção A representam as notas Sib, Sol#, Mib e Ré# respectivamente. Delas emerge um acorde de quartas e, portanto, da superposição da própria progressão de quintas descendentes.

b) Na Seção B e A', existem duas relações possíveis. A da superposição de duas díades formadas por intervalo de quarta justa ou da expressão de um acorde de Sibm7 (por enarmonia), sem dúvida uma estrutura com forte associação ao sistema tonal. Uma vez que, ao longo dos dois primeiros movimentos as formas-séries intercruzam-se com frequência, não há muito sentido em radicalizar a representação gráfica de uma antes ou acima da outra, sendo possível a leitura das relações em qualquer direção, conforme o exemplo 23:

As relações são riquíssimas, podendo inclusive ser consideradas uma progressão horizontal por movimento contrário em quintas justas, onde a última combinação (A' - R8/RI10) seria virtualmente a primeira. Com essa alteração, Webern fornece variedade ao mesmo tempo em que unidade na progressão não tornando-a obvia. Vale sempre a pena recordar, antes de formador do Primeiro Arquétipo de Webern, o intervalo de classe 5 está indissociavelmente associado as práticas tonais, pois toda e qualquer relação dentro do tonalismo desenvolve-se a partir desta relação intervalar para uma dada Tônica. Seja confirmando ou negando esta relação, o sistema tonal se organiza a partir dela. Sendo assim, o uso desta relação de forma sistemática e frequente pode perfeitamente ser interpretado como uma citação, uma referência a este sistema, evidentemente associado à tradição.

No Terceiro Movimento não existe superposição de formas-séries, mesmo que, eventualmente, elas se interliguem em suas últimas-primeiras notas.

Tanto podemos demonstrar relações entre os tipos de formas-series similares (entre R e R, entre I e I, por exemplo) como podemos relacionar esses diferentes tipos entre si. De qualquer modo, podemos acusar as seguintes relações observadas (sempre com formas-séries consecutivas ou elipsadas - a mesma forma-série pertence a dois ou mais grupos distintos):

a) P3/I3/R8/I3 - estrutura de quartas sobrepostas. De modo análogo a como procedemos no segundo movimento, é possível estabelecer uma relação entre as duas primeiras formas da série com as duas últimas de modo a determinar um arquétipo capaz de se inserir como "moldura" das relações que ocorrerão no decorrer da forma.

b) P4/RI3/RI4 - 1º Arquétipo de Webern.

c) RI3/I4/RI10 - 1º Arquétipo de Webern.

d) RI4/RI9/RI2 - Acorde de quartas justas sobrepostas.

e) RI9/RI2/R9 - Acorde de quartas justas sobrepostas.

f) R9/R4/RI9 - Acorde de quartas justas sobrepostas.

g) RI9/R4/I0 - Tríade perfeita (menor).

h) R4/I0/RI0 - Tríade Perfeita (maior).

i) I11/P3/RI2/P6 - Tétrade da Dominante.

j) P3/RI2/P6/RI5 - Tétrade diminuta.

k) RI2/P6/RI5 - Tríade diminuta.

l) RI2/P6/RI5/R9 - Tétrade da Dominante.

m) RI8/P0/RI11 - Tríade diminuta.

n) P0/RI11/P3/R3 - Tétrade da Dominante.

o) R3/I4/RI4 - Tríade perfeita (menor).

O exemplo 24 ilustra algumas possibilidades de formação de arquétipos ao longo das notas representativas de cada forma-série:

A quantidade de relações que podem ser demonstradas neste exemplo é extraordinária. São 15 relações ao total sem prejuízo de outras possíveis não demonstradas. Se considerarmos que as duas primeiras formas-séries se relacionam com as duas últimas, poderemos então contemplar todas as escolhas do compositor neste movimento. Ainda, podemos observar que a tríade perfeita, até então pouco relevante na estrutura dos dois movimentos anteriores, se faz presente em três oportunidades, do meio do movimento em diante assim como a tríade/tétrade diminuta, substituindo as tríades quartais mais constantes no início do movimento. O próprio acorde da Dominante (evidentemente apenas a sua representação, sem nenhuma função tonal específica) se apresenta em três oportunidades, Sobre, Si, Ré e Láb, também do meio para o fim do movimento.

Como última questão a ser analisada, discorreremos brevemente sobre a qualidade de algumas relações que se estabelecem por classe 5 almejando sustentar ainda mais a nossa tese sobre a busca pela estrutura análoga e da simbologia referencial ao sistema tonal/tradição presente em Webern na fase final.

Inicialmente, mencionaremos a relação presente no primeiro movimento que simula a relação I -V tão presente em formas ternárias do sistema tonal. R11/P11 apresenta exatamente esta relação (classe 5) com RI11/I11, inclusive pelas notas representativas Si/Mi (R11/P11) e Si/Fá# (RI11/I11). Não há como não associar esta relação à ideia de Tônica-Dominante, principalmente após estarmos cientes da intenção do compositor de encontrar soluções que substituíssem de forma análoga a estrutura da tonalidade.

Seria natural supor, neste contexto, a recapitulação como um retorno às formas originais, ou ao menos às notas que podem representá-las, porém, não é isso que nos oferece Webern. Ao contrário, neste Primeiro Movimento, o que percebemos é a continuidade da progressão por quintas descendentes que operava em paralelo no desenvolvimento com a progressão iniciada por Fá#/Si, Mi/Si. Essa nova progressão, iniciando-se agora em Fá/Sib, quando relacionada à da Seção A, expressa a projeção de uma sequência por graus conjuntos descendente (triplicada) - Fá#/Si/Mi - Mi/Lá/Ré - Mib/Láb/Réb, algo similar a uma Urlinie (exemplo 25).

No segundo movimento, a ideia da Seção A é bastante similar, podendo ser abordada por duas perspectivas: a) horizontal, se considerarmos como uma progressão por movimento contrário de quintas justas as relações entre as séries R3/R10 e RI3/RI8 respectivamente. Estas realizariam o caminho de Sib para Mib, e, por movimento contrário, de Láb para Mib e b) vertical, onde podemos considerar a Seção A um todo harmônico, compreendendo que os dois pares de formas não representam dois temas, e sim, fazem parte da mesma estrutura. Neste caso, temos a expressão do acorde de quartas justas formado por Mib, Láb e Réb, exatamente o mesmo que terminou o movimento precedente. A Seção B pode ser compreendida pelas mesmas duas perspectivas, ou seja, como uma progressão de Sol# para Réb (RI1/RI10) e de Sib para Fá (R5/R8) na perspectiva horizontal ou como um acorde de duas quintas justas (classe 5) sobrepostas por uma distância de classe 3, o que gera uma tétrade de Sibm7 (exemplo 26).

No terceiro movimento, conforme já havíamos mencionado, o grau de diversidade é bem maior. Contudo, a escolha das formas por Webern ainda deixa claramente explicitado o sentido da classe 5 (quintas sobrepostas na Variação I e V, e acordes de quartas justas, Variação II). A classe 2 pode ser compreendida como o ponto final da Variação e, por si mesma, uma forma incompleta do acorde de quartas justas sobrepostas. Neste movimento, podemos notar a presença do Primeiro Arquétipo de Webern na Variação II e na Variação III. Não deixa de ser notável que o Movimento termina com a utilização da classe 2 constituída pelas formas que podem ser representadas por Mib e Réb, fragmento do exato acorde de quartas justas sobrepostas que finaliza o primeiro Movimento e inicia o Segundo Movimento. Indubitavelmente, uma relação análoga a da Tônica no contexto tonal esta sendo utilizada aqui por Webern (exemplo 27).

 

Considerações finais

Podemos elencar cinco situações que se destacaram nas análises realizadas:

a) A escolha das séries corresponde à articulação da estrutura formal de cada peça e a uma simulação do ciclo tonal mais básico e representativo do sistema tonal, o ciclo das quintas.

b) Arquétipos tonais e não tonais como acordes de quartas sobrepostas são definidores de estrutura formal nos dois casos.

c) Webern possibilita, em certos casos, uma leitura tanto vertical quanto horizontal das relações que propõe - esta segunda leitura muito aproximada dos princípios composicionais da Escola Flamenca, sem sombra de dúvida influencia marcante em sua técnica composicional, tal qual pode ser observado em seus depoimentos.

d) Não se quer dizer que as formas-série são uma Tônica e si, mas que operam de modo análogo às relações que ocorreriam com uma suposta Tônica em uma obra tonal, gerando um sistema análogo ao sistema tonal, direcional, devido as suas premissas primordialmente construídas sobre as relações por classe 5, claramente referentes à tradição.

e) Muitos elementos de tradição revelam-se apenas nos níveis mais profundos da obra, mostrando uma fantástica visão geral da história da música ocidental, seja atualizando-a através de um movimento - a princípio revolucionário, mas que continha os elementos de toda uma história da música europeia -, seja preservando-a através da releitura de suas práticas mais relevantes, a polifonia e a funcionalidade tonal.

Evidentemente, para um compositor cuja proposta estética supunha tal controle dos elementos essenciais e parâmetros da música, as relações apontadas aqui neste trabalho não são mera coincidência. Elas se articulam claramente com as declarações do próprio compositor e as de Paul Griffiths, enunciadas na introdução deste artigo articulando-se a partir de parâmetros ou em contextos, onde, conforme Griffiths, "tão discretas" não são notadas ou percebidas, ao menos que se promova uma incursão analítica mais detalhada nas obras. Não foram feitas para serem percebidas como tal pelos ouvintes, ao menos não naquele momento, dada a sua complexidade e sutileza. Foram concebidas como elementos simbólicos que permitam ao próprio compositor crer em sua obra como possibilidade de continuidade do sistema em que ele próprio, em sua relação dialética entre progresso e tradição, se insere.

 

Notas

(1) Ironically Webern, the composer who was seen by many as the originator of the hyperintellectualized serialism of the decades immediately following his death and whose own music most people found thoroughly bewildering upon first hearing, was by nature an ardent romantic who always held feeling and passion - and comprehensibility - to be important above all else in art. Nature, and the Alps in particular, were almost an obsession with him, and his love of the peace and solitude to be found in the mountains, as well as his fascination with the flowers of the alpine meadows, were an influence on his work in many ways, some of which will probably never be understood. Work on many of his seemingly most abstract works was preceded by sketches or outlines in which the various movements, sections and themes were likened to specific alpine places and flowers, to climatic situations ('coolness of early spring' etc.) and to members of his immediate family. A more tangible manifestation of this fascination with alpine flowers is his interest in Goethe's theories of colour and of the Urpflanze, the latter being of course another expression of the idea of unity, which to him - as to Schoenberg - was paramount.

(2) So the style Schoenberg and his school are seeking is a new inter-penetration of music's material in the horizontal and the vertical: polyphony, which has so far reached its climaxes in the Netherlanders and Bach, then later in the classical composers. There's this constant effort to derive as much as possible from one principal idea. It has to be put like this, for we too are writing in classical forms, which haven't vanished. All the ingenious forms discovered by these composers also occur in the new music. It's not a matter of reconquering or reawakening the Netherlanders, but of re-filling their forms by way of the classical masters, of linking these two things.

(3) And now let's switch back to the masters of the second Netherland school! Then a composer would build a melody out of the seven notes, but always related to this scale. The same happens in Schoenberg's discovery, composition with twelve notes related only one to another. Nothing else at all! But why was it interesting to us that " the same thing " was sung all the time? One tried to create unity, relationships between things, and surely the maximum unity is when everyone sings the same thing all the time the maximum unity imaginable!

(4) Another quotation from Goethe, because it expresses our line of thought so wonderfully. He spoke of the art of antiquity:"These high works of art were at the same time brought forth as humanity's highest works of nature, according to true and natural laws".

(5) If we want to find historically how tonality suddenly vanished, and what started it, until finally, one day, Schoenberg saw by pure intuition how to restore order, then it was about 1908 when Schoenberg's piano pieces Op. 11 appeared. Those were the first "atonal" pieces; the first of Schoenberg's twelve-note works appeared in 1922.

(6) We also looked at two examples from the great days of polyphony and saw let's say this quite clearly, it will throw light on the music of our day, too ! saw how the conquest of the tonal field gradually came about; that's to say, the days of the polyphonic style simultaneously see the beginning of the development from diatonicism to chromaticism to the conquest of the twelve notes. To recapitulate: first men conquer the seven-note scale, and this scale became the basis of structures that led beyond the church modes. And now we see how gradually two of these scales come ever more to the fore and push the others aside: the two whose order is that of present-day major and minor. Here indeed the remarkable thing is that the need for a cadence was what led to the preference for these two modes, the need for the leading-note that was missing in the other modes. It was then transplanted to the other scales, so that they became identical with the two enduring ones. So accidentals spelt the end for the world of the church modes, and the world of our major and minor genders* emerged. Now we must look at the further conquest of the tonal field! The two tonal genders, major and minor, were predominant down to our time, but now, for about a quarter of a century, a new music has existed that has given up this double gender.

(7) Our push forward had to be made, it was a push forward such as never was before. In fact we have to break new ground with each work: each work is something different, something new.

(8) There are still people who base their composition on tonality, even though a quarter of a century has gone by since then.

(9) Let's again sum up, because I still want to talk about the new music itself! But I hope you already have a general picture. So once again, in headlines: diatonic scale; destruction of the church modes: on the other hand, in relation to form, the greatest flowering of polyphony, through ever-increasing unity, with the result that in the late Netherland school a whole piece would be built out of a sequence of notes with its inversion, cancrizan, altered rhythm, etc. More unity is impossible, since everyone has the same thing to say. Then on again away with it! What came next? Development of melody, major and minor, conquest of chromaticism that's only vocal music. Instrumental music crept into the picture here, playing on instruments became an art, a new expressive form in association with the folk song. Beethoven. And the conquest of the tonal field? After the classics the break-up of tonality. So we see ever greater conquests in the field provided by sound as Goethe would have said," natural law as related to the sense of hearing " and the urge for comprehensibility trying to create ever more unity, just because unity increases comprehensibility. Now we shall see how these elements have gone on developing and have led to the last decade's new growth, composition with twelve notes related only one to another. It's the final product of the two elements we've observed so far. People are wrong to regard it as merely a substitute for tonality." Here the element of comprehensibility is important above all to introduce ever more unity! That's been the reason for this kind of composition.

(10) I mean this music, for everything else is at best somewhere near this technique, or is consciously opposed to it and thus uses a style we don't have to examine further, since it doesn't get beyond what was discovered by post-classical music, and only manages to do it badly. The greatest strides have been made by the very music, the very style, that Schoenberg introduced and that his pupils have continued. These lectures are intended to show the path that has led to this music, and to make clear that it had to have this natural outcome.

(11) P representa o mesmo que O, ou seja, Prime ou Original, que dizem respeito a nomenclatura para qualquer uma das 12 transposições da série.

(12) Pela sua ordenação, pois ambos os hexacordes discretos desta série são 6-2.

(13) Returning to tonality: it was an unprecedented means of shaping form, of producing unity. What did this unity consist of? Of the fact that a piece was written in a certain key. It was the principal key, which was selected, and it was natural for the composer to be anxious to demonstrate this key very explicitly. A piece had a keynote: it was maintained, it was left and returned to. It constantly reappeared, and this made it predominant. There was a main key in the exposition, in the development, in the recapitulation, etc. To crystallise out this main key more definitely, there were codas, in which the main key kept reappearing. I have to keep picking out these things because I'm discussing something that's disappeared. Something had to come and restore order.

(14) MENEZES (2002) considera o acorde de quarta justa e trítono como o primeiro arquétipo de Webern e o acorde de duas terças menores sobrepostas por semitom como o segundo arquétipo de Webern (MENEZES, 2002, p.124-126).

(15) Define-se por classe intervalar todos os intervalos que estão compreendidos por um a seis semitons e suas inversões. Como intervalos de classe 1, temos intervalos de um semitom e sua inversão por onze semitons; por classe dois, os intervalos de dois e dez semitons; por classe três, os de três e nove semitons; por classe quatro, os de quatro e oito semitons; por classe cinco, os de cinco e sete semitons e por classe seis, os de seis semitons. Nesta definição, é indiferente se o intervalo representa uma terça menor ou uma segunda aumentada, pois ele só é valorizado a partir de sua quantidade de semitons e não de sua posição dentro de uma escala tonal.

(16) A autora não fornece nas referências a indicação desta obra.

(17) MOLDENHAUER, Hans. Anton Webern, a chronicle of his life and work. New York: Alfred Knopf, 1979.

 

Referências

Gandelman, S. (2000) Memorizando as Variações op.27 de Webern: da análise á cognição. Per Musi, Belo Horizonte, 2, 104-117, Acesso em 7 de Agosto de 2014, de http://www.musica.ufmg.br/permusi/port/numeros/02/num02_cap_06.pdf        [ Links ]

Griffiths, P. (1998). A Música Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Menezes, F (2002). Apoteose de Schoenberg. Segunda edição. São Paulo: Ateliê Editora.         [ Links ]

Sadie, S. ed. (1981). The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Verbete Webern.         [ Links ]

Strauss, J. (2000). Introduction to post-tonal theory. New Jersey: Prentice Hall.         [ Links ]

Webern, A. (1963). The Path to New Music. Universal Edition: London.         [ Links ]

Partituras

Webern, A., Jone, H. (1956). Drei Lieder nach Gedichten von Hildegard Jone op.25. Wien: Universal.         [ Links ]

Webern, A.(1936). Variations op.27. Wien: Universal.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 27/04/2015
Aprovado em: 15/06/2015

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