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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.8 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2016

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2016v2p.220 

ARTES

 

Narrativa*: Comentário crítico do filme "Órfãos do Eldorado" (DVD)

 

 

Cássio Starling Carlos

Filósofo, Crítico, Pesquisador e Professor de História do audiovisual

 

 

 

Muitos filmes cabem numa sinopse. Poucos transbordam o resumo e só acontecem quando suas imagens encarnam na tela. "Órfãos do Eldorado" parte do segundo time.

A adaptação do romance de Milton Hatoum revela-se um desafio para Guilherme Coelho em sua primeira ficção, depois de bem-sucedidas experiências no documentário.

A escolha poderia resultar em puro mimetismo, com a transposição literal da obra de um autor de prestígio, originando um filme em que o valor do texto se sobrepõe ao que se tenta traduzir em imagens.

As duas primeiras cenas apresentam as escolhas narrativas que garantem ao longa sua força própria. Na inicial, a câmara percorre uma praia amazônica, conduz o olhar da natureza exuberante às ruínas de navios e se detém numa mulher que se desnuda e mergulha, uma pura imagem que não se explica. Na seguinte, estamos em um barco e apenas escutamos um relato que mistura sexualidade e vingança, animalidade e desejo, temperada com "saliência", como diz seu narrador. A palavra é o fio condutor, mas o que se vê é outra coisa, sem sentido de ilustração.

Seguindo essa ambivalência, o filme oscila da terra à água, do texto à imagem.

Na primeira parte, o retorno do filho pródigo traz de volta rancores, um passado povoado de assombrações. As lembranças idílicas da infância de Arminto misturam-se ao reencontro incômodo com o pai e à casa ocupada por Florita (Dira Paes), figura de signos miscigenados, índia, mãe, amante, criada. Nesse ambiente pouco iluminado, os diálogos servem como fio condutor, permitem entrever as razões do desafeto, trazem à tona o que ficou reprimido e põem em cena o conflito de modo mais verbal. Aos poucos, a primeira cena retorna e rouba o espaço da palavra. Sua aura de mistério e experiências oníricas de Arminto transportam a narrativa para o regime mais indefinido das imagens.

A segunda parte nos leva a outra viagem, na qual as palavras dispersas já não coincidem com os fatos e pessoas que Arminto busca. A textura sensorial se sobrepõe ao tecido narrativo e o filme se torna úmido, caudaloso, vegetal.

 


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A passagem de um registro ao outro não é abrupta. A transição dá muito certo graças à interpretação introspectiva de Daniel de Oliveira. Na primeira parte, ele duela com a força felina de Dira Paes. Depois, com sua "cara de onça triste", confirma ser um de nossos melhores animais cinematográficos.

 

 

* Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 12 de Novembro de 2015 sob o título Narrativa da força própria a filme inspirado em "Órfãos do Eldorado".

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