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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.9 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2017

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2017v1p.1 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Criminalidade, gênero e sexualidade em uma penitenciária para mulheres no Brasil*

 

Female criminality in Brazil: a study on gender and sexuality in a women's prison

 

 

Fabíola Cordeiro

Doutora em Sociologia pelo PPGSA/UFRJ; Mestre em Saúde Coletiva (Ciências Humanas e Saúde) pelo Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva (PPGSC) do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Bacharel em Ciências Sociais pelo Departamento de Ciências Sociais (DPCIS) da UERJ. Atualmente, atua como pesquisadora associada do Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero (NESEG)/UFRJ. Endereço: Largo São Francisco de Paula, n°1. - Sala 402. Rio de Janeiro - RJ. Telefone: 99600-2888. E-mail: fabiolacordeiro.rj@gmail.com

 

 


RESUMO

Este texto aborda a gestão da sexualidade no âmbito da Penitenciária Talavera Bruce (conhecida como TB) - unidade prisional de segurança máxima, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Fundado em 1942, o TB foi o primeiro presídio feminino do Estado do Rio de Janeiro e o segundo no país. Na década de 1980, adquiriu visibilidade devido aos relatos sobre casos de tortura e rebeliões. Atualmente, é frequentemente foco de ação de ONGs interessadas na questão do encarceramento feminino e de grupos religiosos (sobretudo pentecostais), possuindo uma intensa agenda social. Os meios de comunicação nacionais retratam o TB como uma instituição modelo, uma exceção no cenário degradante das prisões do país. Esse discurso é contestado por movimentos sociais e representantes de ONGs.

Palavras-chave: RELAÇÕES DE GÊNERO; SEXUALIDADES; SISTEMA PRISIONAL; ENCARCERAMENTO FEMININO


ABSTRACT

In this chapter I address the social and institutional 'management' of sexuality at Talavera Bruce Penitentiary (Know as TB), in Rio de Janeiro, Brazil. TB was the first women's prison to be created in the state of Rio de Janeiro, and the second in the country. It was founded in 1942. In the 1980's, it drew public attention as cases of torture were reported, and on different occasions inmates threatened to stage a rebellion. At present, it is regularly chosen for interventions by NGOs and religious groups (especially Pentecostal), and boasts an intense social agenda of events. The nacional media portrays TB as a model institution, an exception in the degrading scenario of the country's prisons. This discourse is contested by social movements and NGO representatives who denounce violent practices against the inmates.

Keywords: GENDER RELATIONS; SEXUALITIES; PENAL SYSTEM; FEMALE INCARCERATION.


 

 

Introdução

Desde sua criação, a Penitenciária Talavera Bruce reverbera as grandes mudanças sociais e políticas ocorridas na sociedade brasileira. Tais mudanças convergiram na elaboração de projetos de reabilitação que envolviam a gestão das sexualidades das internas da instituição. A noção de "gestão" da sexualidade aqui utilizada envolve duas dimensões. A primeira diz respeito à sujeição das sexualidades das mulheres condenadas através de monitoramento e intervenção institucionais, com a implantação de distintos mecanismos disciplinares. A segunda se refere às possibilidades e limitações de gestão das sexualidades e das práticas afetivo-sexuais por essas mulheres no cárcere. A partir do caso da Penitenciária Talavera Bruce, buscou-se compreender de que forma as práticas disciplinares institucionais se constroem e reconstroem em meio a uma teia de relações sociais que constituem vida cotidiana na prisão, bem como seus efeitos sobre as formas como a sexualidade é vivenciada pelas internas.

Os estudos sobre mulheres presas têm se detido, majoritariamente, sobre as representações sociais acerca da criminalidade feminina, o perfil sócio demográfico das mulheres apenadas e as circunstâncias com maior frequência relacionadas ao seu ingresso no sistema prisional (Soares 2002; Soares e Ilgenfritz 2002; Souza 2006). Há também um crescente número de pesquisas sobre maternidade e religiosidades na prisão (Lopes 2004; Rodrigues 2005; Santa Rita 2006; Ordonez n.d.). Essas investigações ressaltam a prevalência entre as mulheres presas de jovens dos segmentos sociais menos favorecidos da população brasileira, com biografias marcadas por vulnerabilidades socioeconômicas e violências. Entretanto, temáticas como gênero e sexualidade têm sido amplamente negligenciadas. Um número reduzido de estudos contempla temas como as distintas possibilidades de elaboração individual e coletiva entre as mulheres presas, o estabelecimento de alianças homoeróticas no cárcere, a prática da "visita íntima"(2) e a saúde sexual e reprodutiva das mulheres apenadas (Giordani e Bueno 2002; Giordani et al. 2002; Miranda et al. 2004), restringindo o debate às problemáticas da violência / opressão e dos "comportamentos de risco".

Tendo em vista esse cenário, as análises a seguir apresentam reflexões sobre os discursos, representações sociais e práticas institucionais no TB no final dos anos 2000. Busca-se entender esse contexto considerando os modos como, historicamente, a gramática de gênero e as convenções sobre sexualidade delinearam um quadro normativo que engendra um tipo de ideal ressocializador das mulheres envolvidas em práticas tidas como criminosas. Os dados analisados foram coletados na fase inicial do projeto de pesquisa "Sexualidades Encarceradas: um estudo sobre gênero e disciplinas em uma penitenciária para mulheres" (2009-2010) (3).

 

Narrativas sobre desvio e normalidade

O surgimento das prisões para as mulheres no Brasil ocorreu num contexto de grandes mudanças sociais e políticas e de penetração no país de discursos modernos sobre humanização e individualização do sistema penal (Lima 1983). Na década de 1940, época da primeira reforma penal, considerava-se a mulher criminosa não somente como uma figura ambígua e um tipo específico de delinquente, mas também, como uma potencial motivação para o crime. Os discursos de especialistas articulavam representações sociais sobre sexo, sexualidade, família, honra e nação. As teorias médicas predominantes afirmavam que a fisiologia sexual feminina era inerentemente problemática, facilmente propensa a patologias e capaz de provocar desvios de comportamento (Rohden 2001). Criminologistas viram nisso um dos principais fatores explicativos para o engajamento de mulheres na criminalidade.

Nas últimas décadas, a associação entre a mulheres criminosas e a degradação social e moral permanece popular entre senso comum e especialistas. Alguns autores sugerem que essas mulheres são mais estigmatizadas do que os homens criminosos; como se cometer um crime significasse quase uma traição do feminino, cuja "natureza" deve estar estreitamente ligada à domesticidade e maternidade (Caridade 1991; Lopes 2004; Rodrigues 2005). Também é frequentemente presumido que a entrada das mulheres no mundo do crime decorre de seus relacionamentos amorosos. Desse modo, mulheres criminosas tendem a ser descritas como criaturas perversas, vítimas da "natureza" feminina ou, da dominação masculina (Souza 2006).

As entrevistadas nesta pesquisa não estão imunes aos estereótipos sobre as mulheres que cometem crimes. Suas narrativas produzem estratégias discursivas na tentativa de neutralizar o estigma de mulher criminosa. Seus envolvimentos com a criminalidade são, não raro, descritos como um erro, uma falha de julgamento, ou uma consequência do vício em drogas; algo que "poderia acontecer a qualquer um". A única entrevistada que afirmou não ter se arrependido nem sentir vergonha por seus crimes foi Renata, condenada pelo assassinato de seu companheiro. Por meses, ele submeteu a informante e seus filhos a abusos físicos e emocionais, tortura e cárcere privado. Na narrativa de Renata, o homicídio é descrito como um crime passional, realizado em um momento de desespero. Sua vítima era o líder de um grupo de extermínio na Zona Oeste da cidade. Para ela, seu crime foi um tipo de tragédia anunciada, provocada pelo parceiro. A suposta crueldade da vítima e o grau de vulnerabilidade em que ela e seus filhos se encontravam, tornou para ela o assassinato algo justificável e inevitável. Como mãe, ela tinha de proteger seus filhos.

"Ele bebia e era ruim pra caramba dentro de casa. (...) no dia que ele pegou o meu filho, eu... ele bateu no meu filho. Falei: „Acabou. Assinou a sentença de morte!". Ele não acreditou. Aí, pronto. Deu no que deu... eu tô aqui dentro. (...) Ele achou que tinha o direito de espancar meus filhos, me deixar marcada e eu falei: „Não!". (...) Eu ia na DEAM [a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher do bairro] (...) aí, eles avisavam a ele: „oh, a tua mulher tá aqui e tá te cagoetando". Aí, ele ia lá e me arrancava de lá debaixo de pancada, puxão de cabelo, chute, me chamava de vagabunda..." [Renata]

 

 

Ao longo das entrevistas em profundidade realizadas entre março e setembro de 2009, as egressas e internas em regime aberto (4) que participaram da pesquisa acionaram, em diferentes momentos, instância discursivas moralizantes / normatizadoras, sobretudo: a família (5), a religiosidade cristã, o trabalho e a heterossexualidade. Todas, por exemplo, enfatizaram a exceção de seu desvio no contexto das histórias de suas família e a sua submissão à ordem familiar após terem cumprido pena e/ou serem libertadas. A maioria das entrevistadas mencionou que ter frequentado cultos religiosos na prisão - ou, que a "fé em Jesus" - deu-lhes força para enfrentar os horrores do cárcere e a não ceder às suas perversões. Ter um trabalho formal ou, ao menos, legal na penitenciaria garantia a elas um status diferenciado - cela individual e melhor tratamento pelos agentes prisionais. Além disso, a dedicação ao trabalho era um valor moralmente edificante.

"Nessa minha última prisão, o delegado falou pra mim que investigou a minha família, três gerações, e que ele queria saber, queria entender como eu consegui me envolver [com o crime]. Porque minha família é TÃO decente, é TÃO direita, é TÃO... Sabe? Eu tenho dois irmãos que são pastores na igreja, são pessoas corretas, fiéis às esposas. (...) Foi o vício na droga que me deixou nessa situação toda". [Camila]

"Agora, só quero trabalhar e levantar a minha vida. (...) vou ficar morando com a minha mãe. A gente [ela, a mãe e os irmãos] quer morar tudo junto. (...) minha mãe tinha raiva, mas, agora minha mãe fala comigo, a gente conversa, ela sabe de tudo [tudo oque Karla faz]. (...) Ela só fala pra mim, pra eu não misturar com ninguém. Eu não vou em baile, só vou na igreja. Saio daqui [do curso de capacitação profissional para egressos onde a entrevistei], vou pra casa (...) Meu irmão arrumou um quarto pra mim, porque eu tenho que trabalhar pra fazer minha casa. É no mesmo quintal". [Karla]

"Eu consegui [um trabalho] pela disciplina, né? Ficava quietinha, nunca arrumava confusão, aí... estava pedindo também, né? „Deixa eu ir! Deixa eu ir! Deixa eu ir!". (...) Trabalhei, diminuí a pena estudando, depois diminuí a pena digitando o jornal [das internas] Sóisso!, que circula dentro do sistema, né? (...) Eles querem pessoas tranquilas [para os postos de trabalho], porque eles vão estar colocando em contato com pessoas do mundo externo, né? Porque tem pessoas que piram mesmo! Que tudo é motivo pra bater, que perdeu tudo (...)". [Patrícia]

Oito entre as entrevistadas acionou a heterossexualidade como instância moralizadora / normativizadora. As Lésbicas (mulheres com técnicas corporais e que ostentam símbolos de feminilidade e têm relações afetivo-sexuais com mulheres também tidas como femininas) e, principalmente, os sapatões e suas namoradas foram claramente ilustrados como o outro em relação ao qual as informantes constroem sua identidade de mulheres regeneradas (6). Assim, lésbicas e sapatões e suas namoradas são caracterizadas como desviantes entre desviantes. Embora haja reconhecimento de que o que ocorre sexualmente entre duas pessoas em privado diz respeito apenas a elas, o envolvimento sexual entre pessoas de mesmo sexo biológico é visto como uma signo de degradação moral. Duas entrevistadas chegaram a sugerir que esse tipo de comportamento deveria ser mais intensamente controlado pela instituição. Lurdes, por exemplo, foi enfática:

"Elas tão ali [na prisão], elas têm que pagar pelo erro delas. Então, elas têm que levar mais a sério aquilo que elas fez de errado. Menos liberdade! E mais trabalho! Escola... e levar a sério. „Faz isso! Faz aquilo! O seu lugar é esse!". Tá entendendo? (...) Eu não gostava [de ver outras internas juntas]... achava uma nojeira. (...) Se elas não tivesse tempo... se tivesse a hora só de entrar, trabalhar, dormir... elas não ia ter tempo de fazer isso [namorar entre si]" [Lurdes]

Sapatões foram o principal alvo de acusação moral e de desqualificação. Eles eram frequentemente definidos como criminosos irrecuperáveis, como figuras de dominação, perversidade e violência, classificados de sem-vergonha e covardes. Muito mais que as "lésbicas" e as mulheres com quem os "sapatões" mantinham relações sexuais, eles eram identificados como "bichos", aqueles que "nem a família quer". A ideia de que os "sapatões" se enquadram perfeitamente na prisão, a ponto de serem capazes de construir uma vida para si entre seus muros, suas atitudes rebeldes e conflitos com agentes prisionais, o abandono familiar, a dominação sobre outras internas etc., foram apontados como sinais de sua natureza criminosa (7)

"Preso antigo... sabe? Que vai e volta. Fazem da rua as férias e a moradia, a cadeia. Ficam na rua de férias quinze dias... uns com dez dia. Ganha liberdade, mas, não fica... Volta... Porque na rua vira mendingo (...) Daqui a pouco, tá lá dentro de novo. Nem a família quer! Então, tem que morar na cadeia. (...) Pô, têm presas que chora pra não ir embora. Quando chega a liberdade, chora, implora pra não sair. (...) Porque a família não quer e não tem disposição pra trabalhar". [Renata]

 

Sexualidades na prisão

A recorrência da articulação dessas crenças, valores e representações de gênero, sexualidade e desvio na construção da mulher criminosa, como destacado pelas entrevistadas, conduziu a questionamentos sobre se, em alguma medida, esse complexo de referenciais continuava a orientar a política prisional do Estado em relação às mulheres presas, bem como as práticas diárias e relações sociais no contexto da penitenciária. Historicamente, desde a criação do sistema penitenciário brasileiro, a chamada "questão sexual" foi tomada como um "problema" a ser gerido por criminologistas e o Estado. Se no caso de prisões masculinas o sexo foi sempre tolerado e considerado um mal necessário, nas prisões femininas a sexualidade e, em especial, o homoerotismo foram reprimidos até recentemente (8). Estudos etnográficos na própria Penitenciária Talavera Bruce (Lemgruber 1983; Heilborn 1980) sugeriram que, pelo menos até a década de oitenta, sexualidades e alianças homoeróticas desempenharam um papel muito significativo na organização social, na estrutura de status e nas redes de solidariedade na prisão. Apesar de grandes mudanças na esfera sociopolítica, bem como no sistema prisional, evidências indicam que, em geral, tal postura permanece.

Durante a última década no TB, demonstrações de afeto entre internas têm sido mais toleradas. A perseguição A casais homoeróticos parece já não desempenhar o mesmo papel nas pedagogias da instituição. Casais podem caminhar juntos, abraçar um ao outro e dar as mãos em público, sem punições pelos guardas ou outras internas. Nesse sentido, quando questionada sobre as principais mudanças no TB entre sua primeira estadia na penitenciaria (no final da década de 80) e hoje, Camila destacou:

"Os tempos mudou, mudaram também as mentes, as presas, a criminalidade, enfim... Na minha época [sua primeira passagem pelo sistema prisional no final da década de 1980], a pederastia era um troço muito escondido. Hoje, você tem visita com a sua filha e está vendo sapatão beijar na boca da guria, entendeu? Não existe mais o respeito, entendeu?". [Camila]

 

 

No entanto, essa redução na censura a casais de mesmo sexo não significou um menor estigma associado à "homossexualidade", o qual passa a assumir outras formas. As narrativas de nossas entrevistadas e as conversas informais com agentes prisionais e representantes de ONGs que trabalham no TB sugerem que o sexo e sexualidade ainda são fatores importantes na avaliação e no tratamento dado às internas. Internas com comportamento masculino (sapatões), suas namoradas e as chamadas lésbicas tendiam a levantar maior suspeita de envolvimento com atividades ilícitas; e descritas como mais propensas a causar perturbações, especialmente por desentendimentos provocados por ciúme, ou por dívidas com drogas.

Pelas narrativas é possível afirmar as funções de faxina (9) costumam ser atribuídos predominantemente a internas com aparência feminina. Sapatões costumam não ser recrutados para funções que não envolvem trabalho pesado, como tarefas de servente e de zeladoria. Soma-se a esse, o fato de que, apesar de uniões conjugais entre presas de mesmo sexo serem bastante comuns na penitenciária, elas não recebem legitimidade. Sempre que há realocação das internas dentro do TB não é levada em conta a manutenção dessa forma de conjugalidade. Tal situação contrasta de forma significativa com a legitimidade conferida às relações heterossexuais, evidente na afirmação do direito ao parlatório para internas com parceiros homens. Embora de acordo com as normas oficiais este privilégio seja supostamente concedido às pessoas que possuíam vínculos conjugais anteriores à prisão, na prática as internas de bom comportamento podem com certa facilidade obter autorização para a visita íntima com parceiros de sexo masculino que conheceram após serem presas.

Há duas formas principais de se conhecer um namorado ou futuro cônjuge na prisão: através de telefonemas e cartas trocados com homens indicados por familiares ou amigos - sejam eles presidiários, ou não; e através de contatos pessoais com homens que vão à Penitenciaria para visitar parentes ou prestar algum tipo serviço na instituição. Três das cinco entrevistadas que receberam o "benefício" (10) visita íntima durante sua passagem pelo TB relataram que seus parceiros eram homens que conheceram na prisão. Entretanto, uma delas terminou o relacionamento antes do primeiro encontro sexual.

 

A masculinidade como valor

A paquera e o flerte heterossexuais seguem uma dinâmica especial na prisão. Se o pretendente é ele mesmo um presidiário (situação mais comum), o primeiro telefonema ou carta é normalmente seguido pela tentativa da mulher de verificar com os assistentes sociais se são capazes de conseguir uma foto de seu pretendente nos arquivos dos presídios masculinos em que trabalham/trabalharam. Se essa estratégia não for bem-sucedida, o parceiro é solicitado a enviar uma fotografia logo que possível. Se sua aparência física não for compatível com as expectativas da possível parceira, sua próxima tentativa de contato pode ser frustrada. Quando o flerte continua, a mulher também envia uma foto sua ao pretendente. A preparação para o retrato envolve a seleção cuidadosa de roupas a serem usadas (atraentes, mas não reveladoras), e maquiagem, unhas e cabelos feitos no salão de beleza da penitenciária. Uma vez que a foto da mulher é enviada, é a vez de o homem sinalizar se gostou de sua aparência. Quando o apreço é recíproco, então, cabe ao homem iniciar os procedimentos de autorização para a visita íntima. Durante o processo, o casal passa a trocar telefonemas e cartas quase que diariamente.

Deve-se ressaltar que qualidades físicas podem se tornar um fator de pouca importância para as internas quando o pretendente é um homem livre e não envolvido na criminalidade, ou quando ele é visto como uma forma de garantir a proteção física e material. A declaração de Carolina é exemplar:

"Eu vi por foto. Mas, também não gostei: „Ai, não! Ai, que homem feio! (...) Ah, não, não, Eu quero, não. Muito feio". Ainda falava pro Ari [amigo que lhe indicou o pretendente]: „Ah, Ari, você tão bonitinho, com tanto amigo bonitinho e tu foi me arrumar logo o mais feio?". Aí, o Marcos falando: „É, mas ele é o mais inteligente, ele tem uma situação financeira legal, vai te dar um apoio legal". Ele tem curso de direito".

Segundo as participantes da pesquisa, o processo de concessão de autorização para a visita íntima com parceiros masculinos (presos ou não) costuma levar cerca de seis meses. Durante esse período, são realizados testes para detectar DST/AIDS e tuberculose. O processo pode ser interrompido a qualquer momento se uma das partes mudar de ideia. Portanto, nesse período há uma intensa negociação sexual entre o casal, que não está restrita aos termos de suas interações sexuais futuras. Telefonemas e cartas assumem a forma de uma "troca" de ideias, revelando experiências, modos de vida e visões de mundo dentro e fora do cárcere.

Esses contatos são importantes para criar proximidade e uma sensação de intimidade entre o casal. A mulher busca avaliar a personalidade de seu pretendente e o grau de possível compatibilidade entre eles. Isso é fundamental para que essas mulheres se sintam confiantes sobre a possibilidade de "um futuro juntos". Assim, tão importante quanto os telefonemas e as cartas, é alguma prova material do comprometimento e de boas intenções do parceiro. Assumir o papel de provedor é imprescindível a noção de conjugalidade nesse contexto

"A gente se falava por carta. Aí, ele me contava da vida dele, tudo, da família... Então, eu falava sobre mim (...) Antes da gente se conhecer mesmo, ele falava comigo, já me tratava como uma esposa (...) Quando eu fui pro Nelson Hungria, o presídio onde ele estava era nos fundos da quadra onde a gente tinha banho de sol. (...) Nós combinamos por carta, ele disse: „Eu marquei médico pra passar aí na quadra pra te ver". (...) como ele era do presídio de PO, polícia, ele tinha mais regalias. (...) Um funcionário de lá fechava com a direção do Nelson Hungria, aí ele pediu se podia ir lá levar uma televisão pra mim. Uma desculpa pra me ver! (...) Em Maio [cerca de 4 meses depois], eu fui transferida para o Talavera, aí ele começou a me visitar". [Carolina]

Nas interações entre os futuros amantes, discursos românticos e demonstrações de ansiedade em relação ao encontro físico são geralmente apreciados. No entanto, qualquer discurso erótico é rejeitado pelas mulheres, na tentativa de fazer respeitável diante do parceiro. Uma vez que é concedida permissão para a visita íntima (que ocorre a cada duas semanas), espera-se que a mulher defina certo número de encontros sem relações sexuais - outra demonstração de respeitabilidade. Este período tende a durar não mais de um ou dois encontros, a fim de não diminuir o interesse do parceiro. Após meses de investimento no relacionamento, negar ao homem a recompensa do encontro sexual por um período de tempo muito longo é algo desestabilizador para o relacionamento.

"Na primeira vez, a gente não chegou a fazer nada, entendeu? A gente conversou muito, assim... (...) A gente já tinha combinado. Isso tava bem claro, que não ia ser nesse... dessa vez. (...) que a gente só ia conversar, entendeu? Se conhecer melhor antes de... Então, né, só na segunda vez que a gente chegou aos finalmentes mesmo (...) Por mim... eu teria esperado um pouco mais? Teria esperado, entendeu? Mas, ele já tinha esperado taaanto. Ele ficou lá aqueles meses todo insistindo, indo me visitar, num me deixava faltar nada...". [Patrícia]

O sexo é um tipo de contra dádiva (Mauss 1968) no jogo relacional; o equilíbrio entre a obrigação e o prazer é apresentado como essencial para a manutenção da reciprocidade entre os parceiros. É esse equilíbrio que garante a chance de uma vida conjugal/familiar futura. Nas narrativas sobre interações com seus parceiros, tende a predominar o que poderia ser caracterizado como uma dinâmica tradicional das relações de gênero entre as classes populares na sociedade brasileira. Esse tipo de interpretação vai de encontro à noção de que as relações entre os gêneros nessa camada social se organizam em torno do valor concedido à família, exigindo que o prazer seja subsumido à reprodução social (construção de um núcleo familiar) e a reprodução biológica (ter filhos). Ambas só podem ser asseguradas pela forma como as mulheres conduzem as suas relações, impondo a exigência de que os homens cumpram com "obrigações" vinculadas ao masculino (Salem 1982; Heilborn 1993). Dessa forma, as mulheres precisam gerenciar seus relacionamento de modo a engajar seus parceiros em um projeto conjugal/familiar.

O papel do provedor atribuído aos homens em relações tradicionais carrega uma forte dimensão moral na constituição e atualização de sua identidade de gênero; além de afetar sua capacidade de despertar o interesse do sexo oposto. O trabalho das mulheres não recebe o mesmo valor que o trabalho realizado pelos homens e é tratado como uma forma de complementar os rendimentos do casal ou da família, bem como um meio de edificação moral. O principal responsável pela reprodução social da família é o homem. E seu engajamento nessa função é o que assegura seu comprometimento com suas esposas/companheiras e famílias.

Ademais, na prisão, ter um parceiro masculino é uma forma de garantir melhores condições de subsistência. Os alimentos de má qualidade (muitas vezes, servidos após a data de validade) são a única necessidade básica fornecida pelo estado. Os itens de higiene pessoal (como sabão, absorventes, papel higiênico, creme dental etc.) devem ser comprados pelas internas, ou trazidos por seus parentes e /ou namorados/maridos nos dias de visita. Para as prisioneiras cuja relação com a família é conturbada, para aquelas que não têm para onde ir quando puderem deixar a cadeia, e para aquelas cujas famílias vivem em condições econômicas muito precárias, envolver-se numa relação de tipo conjugal/familiar com um homem pode ser percebido como uma forma de atenuar as incertezas sobre o futuro.

As vantagens de ter um "marido", no entanto, não se limitam a benefícios materiais. Além de atenuar a "solidão" da prisão e sua "carência emocional", ter um homem "ao seu lado" confere status social às mulheres presas. Elas ganham o "direito" a celas individuais, para receber visitas íntimas, e tratamento mais respeitoso de outras presas e, até mesmo, dos guardas da prisão. Ter um relacionamento com um homem pode ainda servir como estratégia para se livrar de assédios persistentes. O depoimento de Patrícia ilustra bem esse tipo de situação.

Um ano após ser presa por tráfico internacional de drogas, ela começou a se corresponder com um dos companheiros de trabalho de seu irmão (um motoboy (11) de vinte e três anos). Embora o jovem não a atraísse fisicamente ("Ele era tããããão feio!"), ela decidiu continuar com o flerte. O rapaz conseguiu obter permissão para visitá-la como seu cônjuge e, então, ele insistiu que deveriam tentar obter permissão para o parlatório. Patrícia disse que depois de três meses tentando contornar esta situação, teve que ceder ao desejo do namorado. Ela gostava de ter alguém para quem vestir-se, alguém para apoiá-la e confortá-la, e principalmente, para torná-la menos suscetível ao intenso assédio sexual que sofria na prisão.

"Lá dentro o assédio das mulheres é muito grande (...) Então, quando ele começou a escrever, eu: „Ops, vou responder". (...) eu cheguei a ter confusões, né (...) Então, muitas pessoas acabam sendo oprimidas, entendeu? Aí, eles [os sapatões] oprimem até o ponto que eles acham que vão conseguir alguma coisa e tem pessoas que cedem. Quando a pessoa não cede, aí, passa por uma discussão, pode acabar dando briga, entendeu? (...) E quando esse rapaz, o Júnior, chegou, ele me poupou de tudo isso". [Patrícia]

Outras três entrevistadas também afirmaram ter sido alvo de assédio sexual na Talavera Bruce, através de avanços feitos a elas, bem como comentários, olhares e gestos sugestivos e obscenos. Enfatizaram que esse tipo de situação causa medo constante. Despertar o interesse de um sapatão, mesmo sem querer, pode significar ter de enfrentar a ira de sua namorada. Este tipo de confronto, envolve agressões e tentativas de assassinato, envolvendo inclusive o uso de facas, navalhas e outros instrumentos perfurante. Nesse contexto, não ter um parceiro masculino implica em insegurança constante. A declaração de Andressa é esclarecedora:

"Quando a gente chega lá, quando você é bonita... Tem muito sapatão na cadeia. Então, no caso, as mulheres dos sapatão, elas não quer saber se você se envolve ou não com sapatão. Se você passou, você é bonitinha e um sapatão te olhou, aí já é motivo de ela arrumar caô [confusão] com você... (...) eu briguei muito dentro da cadeia, briguei muito por causa de sapatão. Nunca me envolvi com sapatão. (...) Às vezes, a gente tava jogando carta, jogando baralho, aí os menino, os sapatão, sentava perto. (...) quando você vai ver, a mulher já tá partindo pra cima de você. E lá é assim: ou você bate, ou você apanha. Ou você fura, ou você é furada. Eu passei por um período assim... difícil, porque eu brigava. Às vezes, brigava de manhã, brigava de tarde e brigava de noite. (...) Até que as menina foram vendo meu ritmo. Viu que sapatão pra mim era igual mulher, não tinha diferença". [Andressa]

Assim, o masculino parece ganhar um valor ainda maior no contexto analisado que na sociedade em geral. Pode-se supor se esse é um dos resultados da quase ausência de homens no ambiente prisional - com exceção de guardas, funcionários e de alguns representantes religiosos e de ONGs. Os homens ocupam a primeira posição na hierarquia social e moral dentro da prisão, com os sapatões em segundo lugar. Como os homens, sapatões fornecem uma forma de proteção dentro do sistema prisional.Deles é esperado que desempenhem um papel sexual "ativo", e são considerados como um complemento necessário ao feminino (12) As esposas de sapatões não são classificadas como lésbicas ou amantes do mesmo sexo. Elas se autoclassificam como heterossexuais "normais". Eles não se percebem em relações sexuais com outras mulheres. Só fazem sexo com homens e sapatões. Nesse sentido, referenciam os atributos viris de seus parceiros de mesmo sexo.

Diante desse cenário, é notável que três das oito mulheres heterossexuais entrevistadas aleguem nunca ter desejado um envolvimento afetivo-sexual na prisão. Duas dessas mulheres (Renata e Maria) tinham um histórico de relacionamentos abusivos; uma delas tendo sido presa pelo assassinato de seu marido (Renata). Ambas atribuíram a escolha de ficarem sozinhas às restrições e "dores de cabeça" que uma união conjugal poderia acarretar. A terceira interna que alegou nunca ter tido um namorado/marido na cadeia (Andressa) atribuiu sua falta de interesse aos longos períodos que passava "chapada" pelo intenso consumo de drogas: "Eu só queria dormir, fumar e cheirar...". Ela e Maria também mencionaram a dificuldade de encontrar, na prisão, um parceiro que não estivesse envolvido no crime. E envolver-se com um criminoso tornaria impossível o projeto de começar uma vida longe da criminalidade quando deixassem o cárcere.

 

A dinâmica das visitas íntimas

Por um lado, se em relatos foi atribuído grande valor especial ao masculino em si, isso não apareceu em seus depoimentos sobre as experiências de parlatório. Embora o sexo (sempre entendido como o intercurso vaginal,) fosse considerado como uma obrigação moral nessas ocasiões, aspectos emocionais como a solidão e a necessidade de afeto e a auto-estima foram muitas vezes referidos como principais motivações por trás da decisão de ter um parceiro sexual. Além disso, o fato de todas as entrevistadas alegarem não terem sentido falta de sexo durante o regime-fechado. Contudo, era esperado que as mulheres que em vários momentos da entrevista recorreram a um discurso de tipo tradicional/conservador, a esfera da sexualidade fosse minimizada em suas vidas e relacionamentos.

"Você sentia falta de ter contatos sexuais... de sexo, quando estava na prisão?

Ah, muita falta não, não muita. Sentia sim, mas, eu nunca fui ligada nessa parte [em sexo], né". [Patrícia]

"E você sentia falta de poder ter se relacionar sexualmente com seu marido regularmente?

Não, não... Sentia não, porque a minha atividade já era outra. Já era... sabe? Trabalhar. Eu trabalhava muito e era cansativo. Então, não tinha nem tempo. Trabalhava muito e não tinha nem tempo de pensar nisso". [Lurdes]

No Brasil, entre o final dos anos 1970 e a primeira metade da década de 1990, uma tradição de analisar as relações sociais - incluindo a esfera do gênero e da sexualidade - pelo prisma de classe social marcou os estudos antropológicos sobre camadas médias e classe popular em áreas urbanas. Inspirados pelas ideias de Dumont (1983), o individualismo e o holismo na sociedade brasileira foram discutidos como cosmologias que representavam o moderno e o tradicional, sugerindo uma dicotomia entre esses dois estratos sociais (Velho 1981; Duarte, 1987). As classes médias foram identificadas com o individualismo, o princípio de igualdade e a noção do indivíduo como um valor, o que supostamente levou a relações menos assimétricas entre os gêneros e a visão de que a sexualidade é uma esfera relativamente autônoma da vida social. A classe popular foi associada a uma ideologia holista, baseada na hierarquia como valor central, levando a relações mais claramente assimétricas entre gerações e gêneros e à concepção das diferenças de gênero como um valor.

Não se trata aqui de encaixar as narrativas das entrevistadas e suas práticas sociais nesse modelo interpretativo. As representações, discursos e práticas tradicionais e modernas co-existem, se intersectam e são reinventadas em diferentes espaços sociais. Valores e moralidades não são entidades impostas às pessoas, mas antes algo dinâmico e negociado em interações sociais cotidianas, moduladas por circunstâncias e situações específicas. No entanto, apesar da natureza heterogênea das inserções e relações de classe, estudos recentes sobre heterossexualidades na sociedade brasileira (Leal 2003; Salem 2006; Cordeiro 2008) avançaram a ideia de que, no contexto das classes populares - em especial, para as mulheres heterossexuais desse estrato social - a sexualidade tende a não se caracterizar como um domínio de significação isolado, mas sim, engendrado por outras instâncias discursivas. Sexo, desejo, prazer e sexualidade tenderiam a ser subsumidos por uma moralidade mais ampla e interações sociais complexas. Em consequência, as perguntas que abordavam sexualidade, em geral, suscitaram respostas não necessariamente focalizadas ou, restritas a esse tópico.

Não é pretendido aqui reivindicar que a sexualidade não é importante para os atores sociais nesses contextos, mas sim, que ela tende a fazer sentido somente quando articulada com outras dimensões constituintes da pessoa. Para as entrevistadas dessa pesquisa, isso aparece claramente numa articulação discursiva que incorpora a sexualidade ao domínio afetivo-relacional, bem como na valorização dada à modéstia ao falar sobre sexo em público. Não obstante, a relação sexual desempenha um papel fundamental na dinâmica relacional. Como mencionado, a consolidação e a realização do vínculo amoroso dependem de uma intensa negociação, e o sexo significa muito mais do que apenas o ato sexual. O parlatório se apresenta como uma estratégia de constituir redes de apoio e para manter a conexão entre o casal. Quando perguntada sobre as visitas íntimas que teve durante sua primeira passagem na pelo TB, Camila, como exemplo, apontou:

"Você usa aquilo ali [a visita íntima]... Tipo, ali é uma visita, você está carente é de afeto, não é de sexo. Eu não sentia falta de sexo. (...) ele gostava de mim e eu gostava dele também. Eu fazia parlatório com ele porque eu não queria perder isso, né".

Deve-se questionar se a constituição do parlatório em espaço privilegiado para a elaboração e legitimação do casal não decorre das limitações de se experenciar mais propriamente a conjugalidade nesse contexto. Nesse sentido, é relevante destacar que, mesmo nos casos em que o relacionamento "deu certo" - isto é, se perpetuou para além dos muros da penitenciária -, a natureza explicitamente sexual do parlatório e a "obrigação" pressuposta de ter relações sexuais durante esses encontros, também foi relacionada pelas entrevistadas aos sentimentos de insegurança e desconforto constante. A ausência de instrumentos de formalização do relacionamento, que assegurassem sua continuação no tempo e para além da prisão (casamento, construção de um lar etc.), impedia que a incerteza sobre as "boas" intenções do parceiro fossem aplacadas de fato. O "fantasma" da puta esteve sempre presente nas narrativas por meio da recorrente menção ao medo de que o parlatório fosse visto pelo homem apenas como forma de obter sexo. Carolina contou quem nas primeiras vezes que teve visitas íntimas com seu "marido", sentiu-se como uma "prostituta", pois, ao final dos encontros, ele lhe deixava algum dinheiro.

"Eu me sentia uma prostituta, sabe? E ele se intitulava meu marido. E ai, ele começou a levar dinheiro pra mim no dia da visita e tal. Aí, eu falei pra ele: „pera aí, olha só, eu me sinto mal você trazendo dinheiro pra mim. Parece que você veio pagar o programa, pagar pelo sexo". (...) Acho que na terceira ou quarta vez, conversei com ele sobre isso. Abri mesmo o jogo. Aí, eu consegui administrar melhor isso na minha cabeça".

Qualquer papel que não seja o do cônjuge legítimo é recusado. No caso de Karla, sua única tentativa de ter uma relação amorosa na prisão fracassou. Antes que ela e o pretendente - um pedreiro prestou serviços à direção do TB - tivessem a primeira visita íntima, ela se recusou a recebê-lo. Descobriu por outra interna que o homem era casado, já tinha uma família. Karla seria apenas "a outra".

"Ele deu a entrada lá [no pedido de autorização], só que eu não quis não. Eu descobri que... a menina, uma menina que também fazia parlatório, que conhecia ele da rua, me falou que ele era casado. Então, pra mim, cortei. Então, ele mentiu pra mim! Falou que não era casado! Aí, eu soube que ele só quis se aproveitar. Num sou disso! Cortei o parlatório!".

As duas entrevistadas que faziam parlatório com homens com quem viviam em união conjugal e tiveram filhos antes da prisão (Lourdes e Camila) não tiveram qualquer incerteza sobre as intenções de seus parceiros em relação ao parlatório. Pelo contrário, viram o não abandono dos parceiros como evidência indiscutível da força de seu vínculo com eles. Isso, porque quando uma mulher vai presa e o namorado/marido permanece livre, espera-se que ele termine o relacionamento.

"Eu falava pra ele: „Olha, se você não achar que é melhor ficar, então vai. Porque eu já sei como eu vou tirar a minha cadeia. Eu sei que eu vou sobreviver. Então, você pode ir viver a sua vida. Não precisa mais você vir. (...) Saindo daqui, eu vou pra casa da minha mãe e vou viver a minha vida. Sem mágoa, sem rancor, sem nada". Mas, ele continuava insistindo em ficar comigo. Ele que ia me visitar". [Lurdes]

Existe nos discursos um grande contraste entre a forma como a prisão de um homem e de uma mulher afeta suas relações familiares. A literatura indica que a maioria das mulheres condenadas não recebe nenhuma visita; e quando o recebe, é predominantemente da parentela feminina (Frinhani e Souza 2005, Lima 2006, Brito 2007). Nas unidades penitenciárias masculinas, por sua vez, formam-se longas filas de mulheres nos dias de visitação, carregando crianças e todo tipos de alimentos e produtos de higiene pessoal e comida. Quando uma esposa abandona o marido porque ele foi preso, isso levanta objeções morais e desqualificações. Mas, quando as esposas são presas, não só é esperado que seus parceiros abandonem-na, como as próprias mulheres consideram compreensível que eles sigam com suas vidas.

À esposa cabe o papel de organizar e administrar a vida doméstica e assegurar a união da família diante de qualquer adversidade. A ausência do marido causa uma ruptura na ordem familiar, especialmente, em termos de meios materiais de subsistência. No entanto, não é possível manter um núcleo familiar sem a figura central da esposa/mãe. É em torno dela que se estrutura a família. Um homem precisa de alguém para cuidar dele, de sua casa, de seus filhos. A ausência da esposa em um lar também implica a ausência de alguém capaz de regular a natureza do homem (que se acredita não ser capaz de controlar seus impulsos sexuais,) e de proteger a família da ameaça externa que outras mulheres representam. Ademais, quando essa ausência é combinada com a infidelidade conjugal do homem, o elo que une o casal torna-se frágil e o conflito é inevitável.

"Lá dentro [na prisão], você nem sabia se o seu marido era seu, tá entendendo? E eu sabia de muitas coisas dele da rua. (...) Porque na rua tu não liga pra nada do que dizem, pra fofoca. O teu marido é teu e é aquilo que você acredita. Mas. ali [na prisão]...". [Lurdes]

 

Conclusão

As narrativas analisadas indicam que o estabelecimento de relações amorosas na prisão envolve um processo mais amplo de adaptação à vida institucional - da possibilidade de inserção social nesse universo - e um meio de adquirir status e tentar aliviar a incerteza quanto ao futuro. Os relatos sobre a prática do parlatório revelam o valor de um modelo de relações de gênero que pode ser caracterizado como tradicional, no qual a assimetria entre homem e mulher atua como um poderoso organizador do modo como a sexualidade é vivenciada. Juntamente com a família, a religião e a disposição para o trabalho, a heterossexualidade afirma-se uma condição moral, uma das instâncias de moralização/normalização acionadas nas tentativas dessas mulheres de se distinguirem das verdadeiras criminosas.

Apesar disso, não se pode esquecer que se trata de mulheres que recusaram a domesticidade, fragilidade e submissão que tradicionalmente se esperava delas. Em algum ponto de suas trajetórias sociais, elas romperam com suas famílias por insatisfação com as regras familiares para viverem a vida que escolheram. Em alguns casos, tiveram carreiras desviantes e cometeram crimes mesmo na prisão. Eles estão, então, longe de modelos tradicionais de feminilidade. Isso reforça a ideia de que, em alguma medida, esse compromisso com uma visão tradicional de mundo vem da tentativa de desconstruir diante da pesquisadora o estigma imposto a elas como condenadas e egressas. Assim, apresentam-se como que reconciliadas com essa domesticidade que antes negaram.

As entrevistadas foram contatadas por meio de contatos com funcionários do Departamento de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro (SEAP-RJ) e de uma ONG. Durante o processo de avaliação da sua candidatura à liberdade condicional ou ao regime aberto, foram selecionadas para participar de um curso de capacitação profissional proporcionado por essa ONG. O curso pretendia permitir-lhes criar e gerir as suas próprias pequenas empresas. A seleção foi muito competitiva, envolvendo uma análise do registro criminal das candidatas, relatórios de classificação e cartas de recomendação do diretor da penitenciária, bem como entrevistas com os assistentes sociais e psicólogos da ONG. Aquelas que foram aprovados nesse processo foram consideradas criminosas reformadas à procura de "uma nova chance". Isso introduziu um viés na seleção das entrevistadas; uma vez que em sua autoapresentação, notadamente enfatizaram um compromisso com um discurso normativo.

Esse fato, porém, não torna esses resultados iniciais de investigação menos relevantes para os objetivos de pesquisa. As representações, os valores e as categorias em suas narrativas e as formas discursivas de construção de si dentro e fora da prisão levantam importantes elementos para a reflexão sobre as pedagogias das prisões femininas e sobre a produção da "mulher criminosa" na atualidade.

O fato de que quase todas as entrevistadas autodeclararam-se heterossexuais foi outra limitação da pesquisa exploratória. Porém, isso também é indicativo de como convenções de gênero e de sexualidade continuam a nortear formas de estratificação social no contexto prisional, afetando a avaliação das internas como mais ou menos "recuperáveis". Nesse sentido, pode-se afirmar que os meios pelos quais o contato com essas mulheres foi estabelecido e a ênfase dada à heterossexualidade em seus relatos são dados muito significativos.

Finalmente, a ausência de uma análise das relações amorosas da única entrevista declarada homossexual nesse texto se justifica pouco material disponível sobre a dinâmica de suas relações. Fabiana falou muito pouco sobre suas parceiras e expressou grande embaraço em relação a perguntas sobre sua vida sexual e seus relacionamentos no TB. Ficou claro apenas que todos os seus relacionamentos na prisão foram muito breves e, segundo ela, "não sérios".

 

Notas

(1) Embora grande parte das questões aqui apresentadas já tenham sido repensadas a partir da expansão do trabalho de campo, entre os anos de 2010 e 2013, incluindo uma etnografia da Penitenciária Talavera Bruce, considera-se que a discussão realizada no texto permanece relevante. Não obstante, perspectiva mais atual, consistente e aprofundada do tema pode ser encontrada na tese de doutorado "Prisão e resistências: micropolítica da vida cotidiana em uma penitenciária para mulheres", defendida em junho de 2016, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

(2) Visitas autorizadas com parceiros estáveis - maridos ou namorados - dentro das prisões. No Brasil, essa prática também é conhecida como parlatório.

(3) Essa pesquisa pode ser realizada graças ao apoio, via bolsa de estudos, do Projeto History of Modernities and Sexualities do South-South Exchange Programs on the History of Development (SEPHIS).

(4) A decisão de incluir egressas na pesquisa se deve às dificuldades na obtenção de autorização da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro (SEAP-RJ) para o trabalho de campo na penitenciária. O contato com as entrevistadas foi facilitado pelos funcionários da SEAP-RJ e por uma ONG.

(5) A perspectiva de reinserção na família como o elemento fundamental na ressocialização das prisioneiras também é onipresente no discurso do Estado sobre reabilitação criminal.

(6) O uso de lésbica pelas entrevistadas não deve ser confundido com outros usos públicos desta categoria na sociedade brasileira. Sapatão é um termo pejorativo usado no Brasil para se referir a mulheres do mesmo sexo; especialmente aqueles com um comportamento masculino.

(7) A autoapresentação do único sapatão entrevistado contrasta muito com a forma como os sapatões foram descritos por entrevistadas heterossexuais.

(8) Heilborn (1980) ressalta que, até o final dos anos 70, o discurso institucional sobre as visitas íntimas variou entre a ideia de que a permissão da prática seria "sem-vergonhice" e a concepção de que ela favorece a preservação dos laços conjugais e familiares.

(9) Faxina é a termo da prisão para detentas que têm empregos formais na penitenciária. Suas funções incluem cozinhar, serviços de limpeza, trabalho administrativo e "ligações" entre os diferentes setores da prisão. Por se tratar de um compromisso especial que permite o acesso a todos os setores da penitenciária, é a ocupação mais prestigiosa que um recluso pode realizar na prisão; exceto para ocupações de zeladoria.

(10) Muito do que se denomina como "benefícios" ou "regalias" no sistema prisional brasileiro refere-se, de fato, a direitos previstos em lei que nem sempre são cumpridos.

(11) Motociclistas que prestam serviços de entrega.

(12) Apesar de seu comportamento masculino e do fato de não se auto identificarem ou serem identificados por seus parceiros como mulheres, os sapatões geralmente não se envolvem no discurso da transexualidade. Ou seja, eles não se veem como pessoas nos corpos errados (um homem dentro de um corpo feminino), mas sim como não confinados aos padrões convencionais de heteronormatividade.

 

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Recebido em: 10/01/2017
Aprovado em: 05/04/2017

 

 

* Este texto foi originalmente publicado como: "Female criminality in Brazil: a study on gender and sexuality in a women"s prison" (Chapter 13). In: Saskia Wieringa and Horacio Sívori (Eds.); Sexual History of the Global South: sexual politics in Africa, Asia and Latin America. London/New York: ZedBooks, 2013. A tradução para o português foi feita pela própria autora, que manteve a integridade do texto original.

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