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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.9 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2017v2p.162 

CONFERÊNCIA

 

Psicanálise e literatura: por que, hoje?*

 

Psychoanalysis and literature: why, today?

 

 

Jean-Michel RabatéI; Tradução: Vanisa SantosII

IProfessor, Pesquisador da University of Pennsylvania, Editor-Responsável de Journal of Modern Literature; Fellow da American Academy of Arts and Science. Endereço: Philadelphia, PA - 19104, EUA
IIDoutoranda do Programa de Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (Rio de Janeiro), Mestre em Psicanálise pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Psicanalista, poeta e escritora. Endereço: R. Ibituruna, 108 - Maracanã, Rio de Janeiro - RJ, 20271-020

 

 


RESUMO

Freud sempre enfatizou a preeminência dos escritores criativos, ressaltando que o artista, sem saber, nos ensina sobre o inconsciente. Em 1926, no artigo A questão da análise leiga, Freud situa a literatura, tal como outros campos, como um componente essencial para a formação de um analista competente. Contudo, esse saber só pôde ser percebido a partir de interpretações psicanalíticas, que deram sentido às intuições dos escritores e possibilitaram uma transmissão. Em sua conferência, Jean-Michel Rabaté percorre as diferentes formas de relações entre psicanálise e literatura, abordando e problematizando os limites e possiblidades deste privilegiado campo de diálogo.

Palavras-chave: PSICANÁLISE, LITERATURA, HERMENÊUTICA, INCONSCIENTE.


ABSTRACT

Freud always highlighted the preeminence of creative writers, emphasizing that the artist, unknowingly, teaches us about the unconscious. In 1926, in the article The Question of Lay Analysis, Freud situate literature, like other fields, as an essential component for the formation of a competent analyst. However, this knowledge could only be perceived with the psychoanalytic interpretations, which gave meaning to the writers' intuitions and made possible a transmission. In his lecture, Jean-Michel Rabaté traverses the different forms of relations between psychoanalysis and literature, approaching and problematizing the limits and possibilities of this privileged field of dialogue.

Keywords: PSYCHOANALYSIS, LITERATURE, HERMENEUTICS, UNCONSCIOUS.


 

 

No campo dos estudos literários, dizer que a psicanálise tenha pouca produção escrita é, de certa forma, um eufemismo. Mesmo que continue forte em estudos de filmes, história da arte, estudos da teoria queer, de traumas, em discussões sobre o Holocausto, em abordagens pós-feministas, em ideologia crítica seguindo os lacanianos, como Slavoy Zizek, ou os filósofos neo-marxistas, como Alain Badiou ou Jacques Rancière, no que tange à literatura como tal, a invocação de Freud e de discípulos como Marie Bonaparte ou Erich Fromm, é apenas pretexto para uma boa risada.

Vladimir Nabokov incorporou fortemente essa tendência ao resumir o que chamou de charlatanismo dos freudianos no Pale Fire. Kinbote, o comentador delirante do poema principal, cita Oskar Pfister, o caso de um jovem que não conseguia parar de pegar no nariz. Pfister escreveu que o paciente estava tão dominado por esse gozo que desconhecia os limites para suas fantasias. Também, Kinbote cita Erich Fromm, que escreveu que a capa de veludo vermelho da Chapeuzinho Vermelho era um símbolo da menstruação. Foi preciso que um crítico como Jeffrey Berman salientasse que estas observações não eram absurdas quando lidas em seu contexto original. No entanto, quando vemos a forma como fazem essas equivalências tão simplórias, somos tentados a rir.

Nabokov foi um dos maiores críticos de um tipo de freudismo que dominou nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. O freudismo foi um verdadeiro furor em Hollywood. Por um tempo, uma mistura de surrealismo mediado por Dalí com a segunda geração do freudismo transformara a crítica literária em uma caça a símbolos, projeções e interpretações selvagens. Nabokov denunciou essa prática como um retorno ao alegorismo medieval. Em seus romances, memórias e palestras, ele reitera suas restrições: "Eu rejeito completamente o mundo vulgar, maltrapilho e fundamentalmente medieval de Freud, com sua busca doentia por símbolos sexuais (como se procurasse os acrósticos de Bacon em obras de Shakespeare) e também seus pequenos e cruéis embriões espiando escondidos a vida amorosa de seus pais". Mas, se Nabokov ataca as leituras que se lançam sobre imagens aleatórias para transformá-las em símbolos fálicos e obsessões sexuais, por que Lolita, seu romance mais famoso, retrata a história da paixão de um adulto por uma menina americana de 12 anos de idade? Por que Ada, o romance de sua maturidade, é um conto complicado sobre incesto entre irmão e irmã?

O discurso retórico de Nabokov esconde uma piada mais profunda. A trama de Lolita literalizava o sintagma "do terapeuta infantil", transformando-o em "o estuprador". Humbert Humbert relembra suas próprias deficiências de "estuprador de criança": ele usa uma "mistureba neofreudiana" regurgitada para se impor a ela, no entanto, Lolita parece mais perto da verdade quando ela o ameaça depois do sexo: "Eu deveria chamar a polícia e contar a eles que você me estuprou". Lolita é mais madura que Humbert Humbert. A proximidade perturbadora da psicanálise em Nabokov aparece em suas reiteradas denúncias que soam mais sintomáticas do que acusatórias. No entanto, sua grave ressalva permanece válida: a maior parte da aplicação da psicanálise à literatura tem sido ruim ou de mau gosto.

 

Aplicar ou não?

Vou citar Pierre Bayard, um escritor francês que também é professor de literatura e psicanalista, que se preocupa com a evolução da crítica literária psicanalítica. Seu livro, Podemos aplicar Literatura à psicanálise? comprova uma crise. Beyard decide inverter a ideia freudiana de "psicanálise aplicada". No que se refere à literatura, ele argumenta que deveríamos reverter o paradigma clássico e aplicar a literatura à psicanálise. O resultado não é paradoxal, pois uma reversão similar já fora antecipada por Jacques Derrida, Paul de Man e Hélène Cixous.

A inversão de Bayard não é totalmente antagônica à de Freud, que recomendava uma estratégia parecida quando listava a literatura como um dos campos que o psicanalista deveria dominar para poder iniciar sua prática. Isso fica bem claro em A questão da análise leiga, texto em que Freud se opõe ao treinamento médico como pré-requisito para psicanalistas, promovendo as ciências humanas: "[...] o currículo analítico incluiria matérias que estão bem distantes da medicina e que o médico nunca requer em sua prática: história da civilização, mitologia, psicologia da religião e literatura. Se não for bem orientado nesses campos do saber, o analista não conseguirá ter entendimento algum sobre a maior parte do material com que trabalha". Freud não está simplesmente aludindo, com o termo Literaturwissenschaft (literatura), ao saber obtido com o contato pessoal com textos. Essa palavra junta a experiência literária pessoal com uma "ciência" da literatura que inclui críticas. A literatura é um componente essencial do treinamento de um analista competente. Freud, cuja maior distinção em vida foi ganhar o prêmio Goethe de literatura em 1936, era extremamente culto. Seus ensaios eram recheados de citações de Goethe, Shakespeare e Heine. Sua biblioteca continha bem mais romances, peças teatrais, livros sobre literatura, mitologia e religião do que tratados sobre assuntos psiquiátricos.

A "ciência da literatura" de Freud inclui interpretação e hermenêutica geral, partindo do campo literário para a sexualidade com sua coleção inesgotável de exemplos, personagens, situações e até mesmo de piadas, irá aperfeiçoar diagnósticos individuais, aprofundar a complexidade dos dramas de vida dos pacientes e, finalmente, olhar para as crônicas imemoriais de deuses, heróis e paradigmas míticos que atestam o impacto dos dramas transgeracionais. Na visão de Freud, literatura não é um símbolo de familiaridade com grandes romances ou um sinal de distinção cultural, pois o termo implica um saber, informa um sentido de pedagogia, e, finalmente, sustenta um treinamento ao fazer a ponte entre os estudos médicos e as ciências humanas. Pode-se dizer que a literatura oferece um modo privilegiado de entrada para a "cultura", termo que combina o envolvimento pessoal com os modos tradicionais de ficção (Bildung) com os valores que definem uma civilização (Kultur).

Nenhum psicanalista pode ignorar os benefícios derivados dessa aquisição.

Seria isso o que Bayard pensa? Ele questiona os métodos que simplesmente aplicam termos psicanalíticos à literatura. Assim como Nabokov, ele critica as suposições da crítica psicanalítica padrão e concorda com o consenso acadêmico de que escolas de crítica psicanalítica estão obsoletas. De fato, se considerarmos as implicações do termo "aplicação", tendo em mente o conceito de risada de Bergson, a ideia de um discurso aplicado não tem um ciclo irônico. Esconde-se um elemento mecânico na noção de alguma coisa que foi mecanicamente aplicada (plaquée = chapeada/banhada, sendo literal) à interpretação literária.

Voltando a excelentes explorações, como o livro de Sarah Kofman ou a noção de Jean-Noël Bellemin sobre inconsciente textual, Bayard destaca que Freud sempre ressaltou a preeminência dos escritores criativos (poetas). Creditou-se a escritores e artistas o terem chegado aos conceitos de Freud antes dele; no entanto, qualquer consciência do processo lhes foi negada. Freud surpreendeu-se com o fato de que conseguiam descobrir a verdade, mas sem o saberem. Escritores e artistas não sabiam o que eles sabiam ou o que faziam quando criavam: precisavam de interpretações psicanalíticas para dar sentido a suas intuições, ao mesmo tempo brilhantes e obscuras. Se essas interpretações dependem da psicobiografia como a que foi praticada por Marie Bonaparte ou Charles Mauron, ou se tentam evitá-la como o fez Bellemin-Noël, quando pressupunha um inconsciente textual não idêntico ao do autor, Bayard permanece igualmente crítico. Ele não poupa Lacan: "Lacan não parece inovar sobre essa questão, alternando textos críticos em que o autor é levado em conta - como em Gide ou Joyce - e textos em que as leituras não são fundadas em qualquer forma privilegiada sobre a vida do autor, como com e Hamlet" (PALP, p. 37). Lacan criticava as leituras biográficas de Poe, condenando a prática da "aplicação de literatura", mas voltou para psicobiografia quando lidou com Gide e Joyce. Em tais casos, de acordo com Bayard, as escolas psicanalíticas, seja psicobiográfica, estruturalista ou textualista, revelam uma crença semelhante na superioridade da psicanálise em relação à literatura.

Todas as interpretações psicanalíticas acreditam em uma hermenêutica de desconfiança, considerada poderosa o suficiente para desvendar significados ocultos nas obras. Uma vez que esses significados são, por definição, inconscientes, o autor não pode controlar nem mesmo saber coisa alguma das forças que fizeram o trabalho acontecer. O problema é que essas leituras produzem somente resultados que estão de acordo com a teoria inicial, mantendo-se na categoria das interpretações teleológicas. Elas funcionam como leituras religiosas: o que encontramos nos textos literários é menos um produto da investigação do que de suas suposições. É como uma repetição que acabou criando tédio, esterilidade teórica.

A fim de evitar isso, a psicanálise tem que aprender a aprender com a literatura, inventar diferentes métodos de leitura, encontrar insights que serão aplicados retroativamente à psicanálise. "Literatura Aplicada" destaca momentos de emergência epistêmica compartilhados pelos leitores. O problema é que essa estratégia irá falhar em convencer os psicanalistas, que se sentirão contestados por ela ou pelos críticos literários, que não têm paciência com a psicanálise. Como para confirmar tais dúvidas, os exemplos que Bayard fornecem não são satisfatórios: no seu habitual cânone: Laclos, Proust, Maupassant, Agatha Christie e Shakespeare, todos mostram que a literatura "pensa" através de problemas psicológicos complexos.

Em função de sua diversidade e potencialidades subversivas, a literatura hoje sinalizaria o desaparecimento da psicanálise como paradigma interpretativo. A chance de sucesso da "literatura aplicada" estaria no reconhecimento do lado paranoico de todos os sistemas críticos, recusando-se a falar em nome de um método. Ao ler literatura, um psicanalista jamais deveria dizer "nós", mas explicar como alguém fala na primeira pessoa. Penso que uma vez que começamos a juntar literatura e psicanálise, não podemos ficar numa paz contemplativa. Não podemos continuar dentro de uma biblioteca empilhada de livros. A fim de promover uma nova inquietude (citando Nancy a respeito de Hegel), ligando teoria literária e prática, precisamos rever o programa de Freud e mostrar que, de fato, sua prática de leitura não pode ser reduzida à "psicanálise aplicada".

 

Lola e Dora

Podemos aprender sobre literatura e com literatura se focalizarmos em Freud como escritor. Desde muito cedo, Freud já sabia sobre a falta de status científico de seus textos. Em suas anotações detalhadas sobre o tratamento de Elizabeth von R., Freud diz: "[...] ainda me soa estranho que falte um selo científico às histórias dos casos que escrevo, as quais devem ser lidas como contos [...] diagnóstico local e reações elétricas de nada adiantam nos estudos de histeria, enquanto uma descrição detalhada dos processos mentais que geralmente encontramos nos trabalhos dos poetas, permite-me, através do uso de algumas fórmulas psicológicas, obter algum tipo de insight sobre o problema em questão". Isso é ainda mais verdadeiro no caso Dora, um texto de que ele se orgulhava. Freud apresentou esse caso ao seu amigo Fliess nos seguintes termos: "É a coisa mais sutil que já escrevi e desconcertará a todos mais do que o usual". De fato, o que torna esse livro tão singular é o fato de que Freud apresenta somente fragmentos de uma análise, afirmando que seu texto é "um romance baseado em fatos reais" (roman à clef) .

Da vasta literatura sobre Dora, sigo Lacan que discutiu o caso em 1951, em "Intervenção sobre a transferência". As diferenças entre este seminário e o de 1957 refletem o impacto de Lévi-Strauss em seu trabalho.

Em 1951, Lacan enfatizava a observação de Freud para Dora, ao lhe dizer que ela tinha atuado e se envolvido como cúmplice numa comédia de traições. Lacan percebeu uma semelhança entre situação de Dora e a "bela alma" de Hegel. Dora, em sua pureza, denuncia a confusão do lado de fora, permanecendo alegremente indiferente ao seu próprio papel sombrio e a suas contradições óbvias. A "bela alma", por motivos "sentimentais", recusa-se a ver o circuito econômico em que está envolvida, assim, continua a ser alegremente inconsciente das interações sórdidas do comércio nos domínios reais e simbólicos da vida social.

Em janeiro de 1957, Lacan retornou a Dora, acrescentando à dialética conceitos de Hegel retirados da antropologia de Lévi-Strauss. A regra básica de Lévi-Strauss sobre o parentesco e exogamias pode-se resumir assim: "Eu recebi uma esposa e eu possuo uma filha". Tal princípio da troca está na base da economia simbólica da cultura e transforma qualquer mulher em objeto de permuta, o que Dora recusou vigorosamente. Dora não podia aceitar ser excluída como um agente ativo a partir das leis que governam o dom (dádiva). Assim que se viu reduzida à condição de puro objeto, Dora rebelou-se e concluiu (com razão) que seu pai a estava vendendo para encobrir sua paixão extraconjugal.

A escolha de "Dora" como pseudônimo para Ida Bauer foi genial - um verdadeiro dom para a literatura, pois a palavra grega "dōra", no plural, não só significa "presentes", como também "suborno" ou "retenção", "taxa". As conotações legais da palavra insinuam acusações contra aqueles que aceitam suborno. No entanto, se um dom (dádiva) envolve a obrigação de dar algo em troca, que dom não se vai transformar em um suborno? Dora logo percebeu que era um mero objeto de troca, sendo reduzida à função de suborno.

Freud parece bastante insensível às nuances que ficarão claras para os leitores que, como Nabokov sempre insistiu, se tornam "releitores". Releitores psicanalistas transformam-se em detetives. Cabe a nós juntar as características reveladoras e criar uma imagem de Dora. A insistência de Freud em que Dora deve ter amado Sr. K. porque ele lembrava seu pai, era uma premissa de ficção que Nabokov explorou plenamente em Lolita.

Freud insistiu nos sinais eróticos da atração sexual que ligam um homem mais velho casado (Humbertian/Sr. K) a uma ninfeta (Dora/Lolita), não percebendo as características homossexuais na invenção de Dora. Sua falha clínica transformou-se em um triunfo da análise literária e psicológica. Na verdade, o tratamento foi um fracasso, mas serve à grande literatura. Como todos os romances cativantes, o autor admite saber muito pouco. Se o autor era estúpido e errado, nós, os leitores, podemos ficar mais inteligentes, prestando atenção aos detalhes que escaparam. Conseguimos ter discernimento se relermos o texto e, como releitores, ficamos entre os mensageiros oficiais que se deslocam entre o saber e o inconsciente.

 

Os Embaixadores e o Inconsciente

A literatura nos ensina algo, fazendo-nos desempenhar o papel de um "embaixador" da corte do inconsciente, se tal formulação não soa muito presunçosa. Por isso, vou conectar três imagens: a do consultório de Freud e seu divã, a de uma pintura histórica famosa e a de um romance de Henry James. Estão ligadas em uma superposição visual: assim que se olha para o tapete no divã de Freud e na pintura ao lado dos Embaixadores de Holbein, a semelhança é impressionante.

 

 

 

 

 

 

O tapete no divã de Freud é quase idêntico ao tapete pintado em uma prateleira coberta com instrumentos científicos na obra Os Embaixadores. Freud certamente viu essa pintura de Holbein na Galeria Nacional, quando visitou Londres ainda jovem. Sabemos que Henry James a viu quando elaborou seu romance intitulado Os Embaixadores. Os objetos alegóricos visíveis entre os dois embaixadores franceses se parecem com as estátuas do consultório de Freud.

A decisão de Freud para combinar um tapete persa exuberante em um sofá diante de uma mesa cheia de fileiras de estátuas antigas obedecia a certas regras. Era como um jogo particular jogado diariamente junto a calculadas interações pedagógicas com seus analisandos. Por um lado, as estátuas evocam a metáfora arqueológica utilizada por Freud para caracterizar a descoberta do inconsciente. Seus objetos raros e coleções cuidadosamente escolhidos incorporam a Antiguidade, apontam para a existência de um passado antigo e parcialmente esquecido, cujos símbolos podem ser entendidos graças à exploração intelectual.

Uma noção diferente é transmitida pelo tapete Qashqai Shekalu. O tapete exótico sinaliza um processo mais feminino; lembra-nos do fato de que, na casa Freud, as mulheres eram hábeis em bordado, crochê, tricô e tecelagem. Ao longo de sua vida, Anna Freud costumava fazer sua própria a roupa à mão. Seu enorme tear de madeira encontra-se no museu Freud. Anna Freud, como seu pai, pensou que a tecelagem era útil e terapêutica.

A imagem de tecelagem sugere algo diferente da escavação. O trabalho de tessitura metafórica no divã fica por conta do paciente a maior parte do tempo, já o psicanalista destece com seu silêncio e com observações pontuais. Isso nos aproxima mais da visão construtivista da interpretação defendida por Freud em ensaios posteriores, como "Construções em psicanálise", a partir de 1937. Freud cita o lema inglês, "cara eu ganho, coroa você perde", para rejeitar a acusação de que interpretações psicanalíticas nunca podem ser refutadas. A operação de Freud lembra a ação de Penélope, que destece durante o dia o que foi tecido durante a noite.

A ideia foi desenvolvida no discurso de agradecimento de Freud pelo prêmio Goethe, no verão de 1930 que foi entregue por Anna Freud, pois o pai encontrava-se doente. Freud inspirou-se no passatempo de sua filha preferida. Para Freud, psicanálise e biografia diferem, pois: "A psicanálise pode fornecer informações que não podem ser alcançadas por outros meios, e pode, assim, demonstrar novos fios de ligação na 'obra-prima do tecelão', espalhando entre os talentos instintivos, as experiências e as obras de um artista". Freud literaliza a imagem de uma fábrica de pensamentos (Gedankenfabrik) no Fausto de Goethe, I, 4. Mephistopheles fala com um aluno sobre ciência e, principalmente de lógica. Diz-lhe: "Na verdade, o tecido do pensamento / É como uma obra-prima da tecelagem".

Freud tinha usado essas falas de Fausto em uma passagem de A Interpretação dos Sonhos, a análise do Sonho da Monografia de Botânica. Lá, o sonho é comparado ao trabalho de tecelão e o significante "botânico", neste caso, funciona como um nó (amarração) em uma tapeçaria. Um sonho funciona como uma fábrica de tecidos: quanto maior o número de pontos de intersecção, mais rico o tecido de pensamentos interligados. Este processo capta a lógica produtiva do trabalho do sonho alegorizado pelo tapete.

A obra Os Embaixadores de Holbein exibe dois cortesãos franceses, Jean de Dinteville e Georges de Selves que se reuniram em Londres na primavera de 1533. Holbein foi o principal pintor da corte na Inglaterra quando pintou o retrato duplo. Jean de Dinteville trouxe a pintura de volta para casa e a pendurou no castelo de Polisy, onde permaneceu por vários séculos.

Esse retrato duplo é familiar aos leitores de Lacan, que o usaram para ilustrar sua teoria do olhar no Seminário XI. Nesse seminário, Lacan analisa e comenta o estranho crânio anamórfico que domina o primeiro plano da pintura inspirando-se no livro de Jurgis Baltrusaitis, Anamorphoses. Holbein tornou visível um emblema tanto da ereção como da castração: o falo aparece em uma tal forma que ele fala diretamente ao nosso olhar. Nosso olhar está preso, capturado nessa "função pulsátil, deslumbrante e dispersa". Lacan generaliza isso dizendo: "Essa imagem é simplesmente o que todo o retrato é, uma armadilha para o olhar. Em qualquer imagem, é justamente ao procurar o olhar em cada um de seus pontos que você o vê desaparecer". O olhar do Outro vem do inconsciente através da sugestão do poder da morte e da castração incorporada no crânio. A pintura de Holbein projeta uma alegoria material da situação psicanalítica.

Na pintura de Holbein, o tapete é um cenário para os instrumentos matemáticos mais precisos do dia, um globo celeste, um mostrador de pastor, dois quadrantes, um pequeno mostrador, um relógio de sol poliédrico e um torquetum. A prateleira de madeira inferior somente com o alaúde, um livro de matemática, um outro globo e o hinário. Acima, o tapete oriental enquadra um diálogo entre a mão esquerda de Jean de Dineville, que se curva para baixo de forma aberta, e a mão direita de Georges de Selve, que agarra suas luvas e segura o casaco. A triangulação de olhares dos dois homens e olhar do Outro convoca o arranjo escolhido por Freud para a situação psicanalítica. Freud sentado em sua poltrona profunda olha em frente a ele, enquanto o analisando, deitado no divã, fala ou está em silêncio. Tudo isso é necessário para materializar o lugar do Outro, em outras palavras, para a abertura do saber inconsciente.

Uma triangulação semelhante ocorre na obra de Henry James, Os Embaixadores. Para compreendê-la, não precisamos colocar Henry James no divã, pois sendo fiel ao próprio Freud, James já tinha entendido o processo por si mesmo. O fato de que ele decidiu que fazer um romance disso mostra que uma pintura já é um texto, pelo menos na medida em que pode gerar inúmeros textos. James tinha visto retrato duplo de Holbein em Londres, enquanto pensava em seu romance. Isso ocorreu quando Freud acabara de publicar AInterpretação dos sonhos e quando Mary F. S. Hervey provou definitivamente que as duas personagens descritas por Holbein eram embaixadores franceses.

Sendo contemporâneos a Freud, vemos como em Os Embaixadores tenta-se explorar o inconsciente através da ficção. Strether, o "herói", é um embaixador desajeitado enviado por uma mãe, que também é sua noiva, na esperança de trazer de volta seu filho Chad que fora seduzido por mulheres europeias. Strether trai sua missão ao se apaixonar completamente por duas vezes, mas sem perceber totalmente: primeiro com a sedutora e brincalhona Senhorita Gostrey, em seguida, com a própria amante de Chade, a bela Madame de Vionnet. O fato de que Strether desconhece seus próprios sentimentos cria um jogo requintado de esconde-esconde com o leitor. O leitor torna-se o psicanalista e adivinha a verdade antes de o herói enfrentá-la, o que acontece apenas perto do fim.

Esse jogo de detecção pressupõe algo como um inconsciente, seja freudiano ou não; a importância dos conceitos manifesta-se pela recorrência do adjetivo "inconsciente", que é repetido seis vezes na novela. A verdade da relação sexual do Chad e Madame de Vionnet é algo que tinha sido óbvio há algum tempo, mas que Strether não poderia enfrentar, preferindo mentir para si mesmo crendo nos equívocos deliberados do casal. Uma indicação de tal revelação surge no início do romance numa conversa entre Strether e Miss Gostrey. Eles discutem as consequências que a viagem de Strether a Paris certamente terá na atitude de Chad:

"Você vê está vendo coisa demais", ele retruca.

"É claro, vejo você aí."

"Bem, então você vê isso aí mais em 'mim!'"

"Mais do que você em si mesmo? Muito provavelmente. Um sempre está certo."

Esse diálogo representa um saber não sabido sobre nós mesmos sendo isso a única coisa que Strether vai adquirir no final. O resultado de sua viagem melancólica o faz perder as ilusões tanto quanto à ideia de ficar rico, casando-se com a senhora Newsome, como quanto à ideia de um amor mútuo, quando se recusa a ficar em Paris com Maria Gostrey, que lhe oferece tudo, menos um casamento. Strether decide voltar para os EUA, para ter uma vida burguesa monótona sem ilusões, pois deseja voltar para morrer.

Tendo falhado como embaixador e tendo sido substituído pelo eficiente Jim Pocock, Strether volta para Woollett. Do mesmo modo que nunca soubemos o nome do objeto misterioso produzido em massa em Woollet (segundo críticos, seria um palito, origem da riqueza dos Newsomes), não conseguimos compreender a razão de sua volta ao lar. James não queria que adivinhássemos o significado do objeto pequeno, pois seu esquema alegórico implicava que a Coisa (o crânio da morte iminente, o memento mori) encontrava uma contrapartida enigmática no objeto parcial, a pequena coisa, que também era o emblema inominável do capitalismo triunfante. A pintura de Holbein e o romance de James têm uma única e mesma estrutura, um espelhamento paralelo de lembranças que vai do objeto parcial à alegoria da morte. A ambientação do romance revive a situação histórica dos Embaixadores de Holbein.

Quais os conceitos necessários para estabelecer uma sólida ponte entre ficção e "vida real"? O que os sonhos e pesadelos nos podem dizer? Podemos fazer perguntas sobre vida e morte? Freud fez isso, o que é bem mais relevante do que em uma velha piada judaica: "Os Schadchen asseguraram ao pretendente que o pai da menina não está mais vivo". Após o noivado, verifica-se que o pai ainda está vivo e cumprindo pena numa prisão. O pretendente em seguida, acusa os Schadchen, que diz: "O que eu lhe disse? Você chama aquilo de vida?" (JU, p. 44). Chamamos isso de "vida"? Será que não sabemos o que significa a vida? O saber adquirido através da conexão da psicanálise com a literatura é reconhecidamente um saber obscuro. A audácia necessária para fazer essas perguntas tem um impacto sobre a forma que a aquisição de qualquer saber irá tomar. Como a literatura, tal saber toca na questão da morte e da escrita, uma escrita que está na base do trabalho do nosso próprio aparelho psíquico.

Tal saber mobiliza uma infinidade de oradores e palavras mortas que são revividos cada vez que lemos um texto. É um saber paradoxal porque é um saber que não sabe, ou pelo menos que não sabe tudo. Não se "aplica" a nada e nem pode ser "aplicado" por ninguém. Em vez disso, desabrocha e desenvolve-se. Uma vez desabrochadas suas imagens, o texto transgride seus limites assim que eles surgem. Se trabalharmos psicanaliticamente com literatura, explorando os espaços mais escuros, vamos aprender a trabalhar com a escuridão e o desconhecido, ou seja, vamos aprender a confiar em nosso inconsciente. Mesmo se mergulharmos mais fundo em "outra" cena abissal, uma voz sem corpo vai dizer-nos que podemos voltar. E ainda voltando mais sábios de nossa viagem de exploração, sempre continuamos a adquirir algum saber e, até, a transformar o processo em um método. Então, nós, os leitores, podemos chamar-nos de embaixadores do inconsciente.

 

Referências

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Recebido em: 15/09/2016
Aprovado em: 20/12/2016

 

 

* Conferência proferida no dia 2 de setembro de 2016, no evento "Interface: Psicanálise e Literatura", em comemoração aos 10 anos do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida. Editoração por José Maurício Loures, mestrando do Programa de Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ) e psicanalista.

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