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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.9 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2017

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2017v2p.184 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

O amor dito por uma mulher - a transmissão de Diotima a Sócrates

 

The love said by a woman - the transmission from Diotima to Socrates

 

 

Camilla Mariana Rehem Ferreira

Doutoranda em Linguística no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP). Mestra em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP). Psicanalista. Endereço: Rua Salomão Mussi, n. 20, Barão Geraldo, Campinas - SP, Brasil. Telefone: (19) 9.9391-2997 / E-mail: millarehem@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Para falar de amor, Jacques Lacan remete-nos ao diálogo O Banquete de Platão. No Banquete, Sócrates, ao fazer um discurso do amor, passa a palavra a uma mulher: Diotima, a Estrangeira. Ele o faz, porque quando o assunto é o amor, o método socrático do jogo dos significantes fracassa. E embora Sócrates conheça bem as coisas do amor, ele não pode falar delas sem que seja no campo do não saber. O que está implicado nessa transmissão de Diotima a Sócrates é o que este artigo pretende discutir.

Palavras-chaves: AMOR; MULHER; DISCURSO; TRANSMISSÃO.


ABSTRACT

To talk about love Jacques Lacan brings us to the dialogue The Banquet by Plato. In Banquet, Socrates, upon the speech of love, passes the word to a woman: Diotima, the Foreign. He does it because when the subject is love the socratic method of the game of significants fails. Even though Socrates knows well the things of love, he can't speak of them unless on the not-knowing field. What is implicated in this transmission from Diotima to Socrates will be discussed in this article.

Keywords: LOVE; WOMAN; SPEECH; TRANSMISSION.


 

 

Jacques Lacan (1960-1961/2010), no Seminário 8: A Transferência, conduz-nos a um retorno ao Banquete de Platão (380 a.C./2012) para falar-nos de amor. Dentre outros desdobramentos produzidos por Lacan a partir de sua leitura do Banquete, há um ponto no qual nos deteremos aqui: Sócrates, em seu discurso, diz que nada sabe do amor senão aquilo que escutou de uma mulher. Dessa maneira, falando do amor, Sócrates faz falar em seu lugar uma mulher. Ele renuncia a seu discurso, não para poupar Agaton que antes havia falado do amor de modo derrisório, mas devido à natureza do assunto em questão: porque se fala do amor, Sócrates é levado a passar a palavra a Diotima. No início do seu discurso, entretanto, Sócrates lança mão do seu método, da interrogação socrática, dirigindo a Agaton algumas questões a respeito do que este dissera sobre o amor.

De acordo com o discurso de Agaton, o belo é um dos atributos do amor, ou seja, o belo pertence a Eros, ao amor. Sócrates, então, interroga Agaton sobre se esse Eros, de que fala, seria Eros de algo ou de nada. Pergunta-lhe também se Eros deseja o que já tem, ou deseja o que não tem. Dito de outra maneira, Sócrates questiona se esse amor de que Agaton fala é, ou não é amor de alguma coisa, se amar e desejar algo é tê-lo, ou não tê-lo, e se é possível desejar aquilo que já se tem:

- Vamos a Eros. Eros é eros de algo ou de nada?

- De algo, é claro.

- Eros deseja e quer o que ele já tem ou deseja e quer o que não tem?

- O que ele não tem, penso.

- Observa bem. Em lugar de conjecturar, não será absolutamente necessário que assim seja: quem deseja, deseja o que lhe falta, mas, se nada lhe falta, não deseja nada. É espantoso, Agaton, o que acabo de dizer se me impõe como necessidade: o que eu disse é inquestionavelmente necessário. A ti não?

- A mim também, Sócrates (O Banquete, 199e - 200b).

 

 

De fato, nota-se no texto que, ao perguntar a Agaton se este considera que o amor é amor de algo ou de nada, Sócrates substitui rapidamente o termo "Eros", "amor" pelo termo "desejo". Na medida em que o termo "desejo" substitui o termo "amor", podemos compreender aqui uma virada, na qual a ideia de falta é produzida no coração da questão do amor. Se daquilo que se deseja, só se pode ter a falta, e se o termo "desejo" vem substituir o termo "amor", então, o amor somente poderá articular ao redor de uma falta. O próprio método socrático pode legitimar tal substituição, de maneira que esta não implique um erro, já que toda a temática do diálogo vai girar em torno da articulação do Eros como amor e do Eros como desejo.

Sócrates, como de costume, revira a questão com perspicácia, manejando o interlocutor através do seu método. Diante da manobra socrática, o adversário não poderia rejeitar a conclusão de que o objeto do desejo, para aquele que experimenta esse desejo, é algo que não está presente, que não está à sua disposição, alguma coisa que ele não possui, ou seja, algo de que ele está desprovido, que não é ele mesmo. É desse tipo de objeto que ele tem tanto desejo, quanto amor:

- Nesse caso, Eros nos leva a desejar o que ainda não temos, o que está escondido no futuro, a permanência do presente?

- Com toda certeza.

- Logo, esse, como qualquer outro, deseja o que ainda não está à disposição, deseja o que não está presente, o que ele próprio não é, aquilo que lhe falta, objetos de desejo, de apelo erótico?

- Concordo plenamente (O Banquete, 200d - 200e).

O método utilizado por Sócrates não se trata de um jogo verbal, por meio do qual o sujeito é capturado, fascinado, paralisado, como acontece no método sofístico. O sofista apresenta uma argumentação que supostamente revela uma verdade, um raciocínio que parece ser lógico, que se pretende carregado de sentido. Tal argumento se fundamenta, entretanto, numa contradição, não passando, portanto, de um argumento falacioso, uma vez que induz ao engano, ao logro. Contrariamente a isso, o método socrático avança com o uso de palavras corriqueiras, sem preocupações com elegância, de maneira que o progresso do método se baseia na troca, no diálogo e no consentimento do interlocutor. Segundo Lacan, Sócrates faz recair o efeito de seu questionamento sobre a coerência do significante, e isso pode ser percebido no próprio funcionamento do discurso socrático.

Enquanto ele questiona Agaton sobre se o amor é amor de alguma coisa, ou de nada, já revela, no seu discurso, a ambiguidade que se produz no jogo dos significantes. Afirma, então, para Agaton que, na pergunta sobre se Eros seria eros de algo ou de nada, não se trata de saber se o amor é descendente de alguém, de um pai, de uma mãe, ou de um Deus; trata-se, antes, de saber, no plano da indagação do significante "amor", de quê o amor é correlato como significante. Esse é o terreno próprio da dialética socrática, que reside em interrogar o significante sobre sua ligação, concatenação, coerência de significante. Sócrates, neste ponto, é seguro, seu método é forte, e é isso que lhe permite substituir de modo relativamente rápido o termo "amor" pelo termo "desejo".

Para Sócrates, e isso o coloca à frente dos seus contemporâneos sofistas, um saber, o único saber certo somente pode se afirmar através da coerência do discurso que se apresenta na forma do diálogo, na medida em que esse discurso avança na busca pela apreensão, como necessária, da lei do significante. A tentativa de redução do significante, por assim dizer, de levar às últimas instâncias as relações entre significantes, da maneira como se propõe o método socrático, o conduz ao encontro com o funcionamento próprio do significante, da lei do significante. O significante compõe-se segundo as leis de uma ordem fechada, como uma cadeia de "anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de anéis" (Lacan, 1966/1998, p.505). Lacan (1960-1961/2010, p. 152) diz-nos que o par e o ímpar nada devem a qualquer outra experiência senão àquela do próprio jogo dos significantes, pois não existe nada de contável, de par ou de ímpar, além do que já foi levado à função de elemento significante, de "anel" da cadeia significante. Desse modo, os termos somente se encadeiam na medida mesma em que já exercem uma função significante.

É nesse plano, portanto, que o método socrático se coloca fora da discussão sofista, dos argumentos falaciosos que apenas têm aparência de verdade. De maneira oposta a isso, Sócrates sustenta o saber interno ao jogo do significante, formulando que esse saber, considerado por ele inteiramente transparente a si mesmo, é o que constitui a sua verdade. Ele, então, continua a interrogar Agaton:

- Muito bem, amigo. Sendo assim, Eros é eros do belo e não do feio.

- De acordo.

- Aquilo de que somos carentes, o que nos falta, é a isso que Eros nos leva?

- Com certeza.

- Eros, portanto, sente-se carente do belo, não o possui.

- Forçoso é admiti-lo.

- Então? O carente do belo, o que de modo algum possui o belo, ainda o declaras belo?

- Eu não poderia fazê-lo.

- Sendo assim, ainda sustentas que Eros é belo?

- Temo, Sócrates, não saber nada do que então eu disse.

- Não obstante, Agaton, foi belo o discurso que proferiste. Mais um detalhe. Pensas que o bem também é belo?

- Penso.

- Conclusão: se Eros é carente do belo e se o belo é o bem, Eros também é carente do bem.

- Eu não poderia contradizer-te, Sócrates. Que seja como declaras! (O Banquete, 201a - 201d).

Nota-se que Agaton, diante do método socrático do jogo dos significantes, falando de Eros, ou seja, falando de amor, revela não saber mais nada do que havia dito antes. Embora Sócrates assegure a autonomia da lei significante, há algo que escapa. Nesse sentido, Lacan (1960-1961/2010, p.153) afirma que a novidade da análise, da revolução freudiana, nos mostra que alguma coisa pode se sustentar na lei do significante, ainda que não comporte um saber, e até mesmo que o exclua expressamente, estruturando-se como inconsciente, isto é, como algo que exige, no seu nível, o eclipse do sujeito, para que seja possível subsistir como cadeia inconsciente, constituindo o que há de irredutível na relação do sujeito ao significante. Isso implica que o próprio jogo da lei significante somente pode revelar um saber daquilo que não se sabe, um saber inconsciente, pois, nessa jogatina, o sujeito desaparece na medida mesma em que é representado de um significante a outro significante, ou seja, ele é puro efeito do jogo do significante. Por isso, vemos fracassar a estratégia socrática, principalmente quando o assunto é o amor.

Ao final deste momento do diálogo, Sócrates diz, então, a Agaton que considere por encerrada a discussão, pois a partir dali ele irá reproduzir as palavras que outrora escutou de Diotima, sacerdotisa de Mantineia, entendida na matéria que estavam discutindo. Sócrates afirma ser mais fácil proceder como Diotima, a Estrangeira, que em determinada ocasião o submeteu a perguntas, e suas respostas não diferiam muito daquilo que Agaton havia acabado de declarar. Com isso, notamos que o discurso socrático, o da epistḗmē, do saber transparente a si mesmo, não consegue prosseguir para além de certo limite referente ao objeto, quando esse objeto é o amor. No que se refere ao amor, as coisas não poderiam ir mais além pela via do método socrático e, por isso, Sócrates passa a palavra a Diotima.

Vale ressaltar que Aristófanes, em seu discurso a respeito do amor, introduziu um termo que é transcrito em francês como diœcisme, para qualificar a Spaltung, a divisão do ser primitivo redondo, inteiro. Essa palavra é empregada por comparação a uma prática comum no contexto das relações da cidade, sendo um recurso político na sociedade grega. O diœcisme consistia em dispersar os habitantes de uma cidade inimiga e colocá-los nos denominados campos de refugiados. Tal termo remete-nos ao fato de que é justamente na medida em que algo escapa ao saber de Sócrates, no que se refere ao amor, que ele se "diociza", se divide, se apaga, fazendo falar, em seu lugar, uma mulher, ou por que não  como nos aponta Lacan , faz falar a mulher que está nele.

Quando se chega a um termo, como o amor, que não pode ser alcançado no plano da epistḗmē, do saber transparente a si mesmo, para que seja possível ir mais além, faz-se necessário o mito. A palavra "mito" revela-nos alguns desdobramentos em seu significado:

Mito s.m. (gr. mythos, palavra expressa; fábula). 1. Relato ou narrativa de origem remota e significação simbólica, que tem como personagens deuses, seres sobrenaturais, fantasmas coletivos, etc. 2. Narrativa de tempos fabulosos ou heroicos; lenda. 3. Representação de fatos ou personagens reais exagerados pela imaginação popular e tomados como modelo ou exemplo. 4. P. ext. A pessoa ou o fato concebido dessa forma. 5. Fig. Pessoa ou coisa que não existe na realidade; fantasia (Larousse, 1992).

Vemos surgir o mito, no sentido do mỹthos légein, ou seja, "o que se diz" (Lacan, 1960-1961/2010, p.155), no momento em que é necessário suprir a hiância, o vazio daquilo que apenas pode ser assegurado dialeticamente, isto é, daquilo que somente pode ser confirmado através do que se diz. Mỹthos légein é, ao mesmo tempo, uma história precisa e o discurso. Sócrates, portanto, passa a palavra ao mito: por um lado, recorre ao mito que outrora lhe fora contado pela Estrangeira de Mantineia, como palavra expressa, para transmitir aquilo que apenas pode ser garantido pelo que se diz; mas, por outro lado, a própria Diotima, ao falar de amor para Sócrates, já parece ser, ela mesma, um mito.

Diotima, logo de início, é-nos apresentada no Banquete como a sacerdotisa de Mantineia, como uma maga. Ela é uma sábia em matérias de feitiçaria, pois teria conseguido, através de seus artifícios, retardar por dez anos a peste que os atenienses com grande dificuldade tentavam afastar. Tal proximidade com os poderes da peste já nos leva a confessar e a situar a natureza e o percurso da personagem que irá falar-nos de amor: Diotima, que por meio de suas habilidades mânticas, numa narrativa quase heroica, parece não existir na realidade, de maneira que sua existência, portanto, beira aquilo que é da ordem da fantasia.

É nesse plano que Sócrates introduz a personagem Diotima, afirmando que ela o refutou com os mesmos argumentos que ele apresentou a Agaton, quais sejam, que Eros não é belo, nem bom. Sócrates, então, coloca para Diotima a seguinte questão: se Eros não é belo, nem bom, logo ele seria feio e mau? Aqui atingimos o limite do método conhecido por mais ou menos, sim ou não, presença e ausência, conforme nos aponta Lacan. Esse método é próprio da lei do significante e implica, com todo rigor, o avançar habitual do interrogatório de Sócrates: o que não é belo é feio, e o que não é bom, mau. A sacerdotisa, então, se encontra em posição de responder-lhe e pede-lhe que não diga bobagens, pois o não belo, não é necessariamente feio:

- Como, Diotima? Afirmas que Eros é feio e mau?

- Não digas asneiras. Pensas que o não belo é forçosamente feio?

- Sem dúvida.

- Não sábio é, por ventura, ignorante? Não percebes que entre saber e ignorar existe algo?

- O quê?

- Opinar corretamente. Não sabes desvendar o fundamento (de que forma ignorar o fundamento poderia ser conhecer?) nem apresentar a ignorância. Não pode ser ignorância apontar a coisa sob teu olhar. A opinião correta ocupa um lugar intermediário entre o entendimento e a ignorância.

- É verdade.

- Não exijas que o não belo seja feio nem que o não bom seja mau. Vale o mesmo para Eros. Admites que ele não é bom nem belo; nem por isso penses que deva ser feio e mau, mas um ente situado no meio (O Banquete, 201e - 202b).

Diotima, portanto, assegura que o amor pertence a uma zona, a uma forma de coisa, de negócio, de práxis, que se assemelha à dóxa. Isto quer dizer que existem discursos, opiniões, sendo essa a tradução para dóxa, que são verdadeiros sem que o sujeito possa sabê-lo, sem que isso possa ser ratificado por meio da epistḗmē, do saber transparente a si mesmo. A dóxa, a opinião verdadeira é verdadeira, mas na medida em que o sujeito não é capaz de perceber isso, ou seja, porquanto o sujeito não saiba em quê ela é verdadeira. O amor faz parte de um campo que se coloca entre a epistḗmē, e a amathía, entre a ciência e a ignorância, assim como está entre o belo e o verdadeiro. O amor não é nem um, nem outro. Isso refuta a objeção ingênua de Sócrates de que se ao amor falta o belo, logo ele seria feio. O amor está metaxý, ou

seja, entre dois. Ele está entre os deuses e os mortais, ele é um grande dêmon, um intérprete, um mensageiro que leva aos deuses assuntos humanos e traz aos homens instruções divinas:

- Ele é intérprete e mensageiro. Leva aos deuses assuntos humanos e traz aos homens instruções divinas. Leva preces e sacrifícios, traz ordens e respostas a sacrifícios. Estando no meio, ele completa uns e outros. Sendo assim, achega o todo a si mesmo. Através dele, nos vem a arte divinatória inteira, como também a arte dos sacerdotes, dedicados a sacrifícios, a iniciações, a encantamentos, a toda sorte de predições e à magia. Deus e homem não se misturam, mas é através de Eros que se estabelece o contato e a conversa entre deuses e homens, quer estejam acordados, quer dormindo. O entendido nisso é demônico. O experiente em outras artes, em outros ofícios é artesão. Os dêmones são muitos e variados. Eros é um deles (O Banquete, 202e - 203b).

Assim, Diotima introduz o amor como sendo de natureza intermediária entre os deuses e os homens. Para ilustrá-lo, serviu-se da comparação entre a epistḗmē, a ciência, e a amathía, a ignorância. A ignorância aqui se aproxima da dóxa, opinião verdadeira, uma vez que é verdadeira, mas de modo tal que o sujeito não reconhece em quê ela é verdadeira.

Lacan destaca uma equivalência entre aquilo que caracteriza a dóxa, que consiste em dar a fórmula sem tê-la, ou seja, em oferecer uma verdade sem tê-la, e aquilo que ele denominou como fórmula do amor, que é justamente dar o que não se tem. Tanto o amor quanto a dóxa ofertam o que não têm, giram em torno de uma falta. Com efeito, o amor, assim como a dóxa, não se refere à ignorância, no sentido de não se ter conhecimento de algo; contrariamente a isso, tanto o amor, quanto a dóxa se tratam de um conhecimento, porém de um conhecimento de que não se sabe, isto é, de um saber insabido. Se o amor atinge os deuses, ou seja, aqueles que pertencem ao campo do real, que existem, e esse fato não é contestado no Banquete, então o amor não poderia ser ignorância, já que o amor, tal como a dóxa, atinge o real, encontra "aquilo que é" (Lacan, 1960-1961/2010, p.167). Isso pode ser explicitado através do campo de Eros.

O campo do dêmon comporta o mundo das mensagens, que são, o mais das vezes, enigmáticas, na medida em que, nessa zona do amor, o sujeito não reconhece a sua própria mensagem. Se a descoberta do inconsciente nos permitiu fundamentar as mensagens no domínio do simbólico, podemos constatar que muitas dessas mensagens, que supúnhamos advirem dos deuses, opacas do real, são somente as nossas próprias mensagens. É isso que nos é conquistado do mundo dos deuses, é isso que o (a)muro (1) nos rebate de volta: amamos no outro aquele vazio enigmático que nos constitui, aquilo que, através do objeto a, supomos advir do outro como mensagem, como resposta ao nosso desejo, mas que não diz, senão do nosso desencontro com a nossa própria mensagem, com o nosso vazio, com o nosso logro.

É nessa medida que o amor, Eros, atinge o real: dos deuses não recebemos nenhuma mensagem, ou seja, do real nada pode ser simbolizado. Se há uma mensagem que Eros nos traz do real é a de que ele, Eros, somente se aproxima do que não pode ser representado, daquilo que simplesmente há. Entretanto, é o seu trajeto o que nos faz imaginar ser possível simbolizar o impossível. E aqui entendemos por que a mulher, naquilo que ela tem de irrepresentável, de mais verdadeira, de real, recorre ao amor. Lá onde ela não pode ser simbolizada, ela recorre ao imaginário para, através do amor, dar um sentido ao seu ser. Entre o amor e a mulher, há uma relação de afinidade, ou melhor, há uma relação com a não-finidade, pois tanto o amor, quanto a mulher se valem, incessantemente, de artifícios para tentar contornar, tentar dar uma finitude a algo que é infinito, a algo que é da ordem do impossível de ser delimitado Assim, a mulher e o amor, com todo o seu contorcionismo, não passam de uma miragem, de um logro.

É por isso que Sócrates, embora conheça bem as coisas do amor, não pode falar delas sem que seja no campo do "ele não sabia". Ainda que saiba, ele não poderia falar, ele mesmo, daquilo que sabe e, portanto, deve fazer falar alguém, que irá falar sem saber. Nesse ponto, entendemos por que no interrogatório feito por Sócrates a Agaton, este lhe disse com toda simplicidade: "temo, Sócrates, não saber nada do que então eu disse". A noção que está por trás do "ele não sabia" introduz o sentido do mito contado por Diotima sobre o nascimento do amor. Vejamos, pois, o mito do amor a que Diotima se refere:

- É uma longa história. Vou contá-la assim mesmo. Para festejar o nascimento de Afrodite, os deuses deram uma festa. Entre os convivas encontrava-se Poros (Caminho), filho de Mêtis, a Sabedoria. Findo o banquete, apareceu uma mendiga, Pênia (Penúria). Em busca de restos, aguardava à porta. Poros, ébrio de néctar - vinho naquela época ainda não existia - entrou no jardim de Zeus e, chumbado, adormeceu. Penúria, em seu descaminho, desejando gerar um filho de Caminho, deitou-se a seu lado e concebeu Eros. O motivo de Eros tornar-se companheiro e serviçal de Afrodite foi esse, ter sido engendrado durante os festejos natalícios dela; erasta do Belo, porque Afrodite é bela. Filho de Penúria e Caminho, a origem determinou-lhe a sorte (O Banquete, 203b - 203c).

Para comemorar o nascimento de Afrodite, os deuses deram uma festa. Entre os convivas estavam Poros, que quer dizer "Expediente", "Recurso", filho de Mêtis, que se traduz melhor por "Invenção" do que por "Sabedoria". No final do banquete comemorativo aparece Pênia, a saber, "Pobreza", "Miséria", que em busca de restos, aguardava próxima à porta. Pênia, a personagem feminina que será a mãe do amor, é caracterizada como aporia, ou seja, sem recursos. O que esta personagem feminina sabe sobre si mesma é que, recursos, ela não os tem. Aporia se trata, como processo filosófico, de um impasse, aquilo frente ao qual se entregam os pontos, diante do qual ficamos sem recursos. Aí está, portanto, Aporia, fêmea que irá engendrar Eros com Poros, o Expediente.

No momento da concepção do Amor, era a Aporia que mantinha os olhos bem abertos. Ela vem aos festejos do nascimento de Afrodite, mas como qualquer Aporia frente à hierarquia do saber, permaneceu nos degraus diante da porta. Por que é Aporia, e nada ter a oferecer, não entrou no salão do festim. Mas, como em toda festa, acontece algo que inverte a ordem comum: Poros, embriagado, adormece, e é isso que possibilita a Aporia fazer-se emprenhar por ele, e conceber Eros, o Amor, na data de nascimento de Afrodite. Por conta disso mesmo é que o amor terá sempre um laço com o belo, já que Afrodite é uma deusa de extrema beleza.

Dessa maneira, notamos que, no momento da concepção do Amor, é o masculino que é desejável, e é o feminino que é ativo. Se o feminino é quem dá o que não tem na concepção, na criação de Eros, podemos compreender de onde parte a formulação do amor segundo Lacan. A expressão "dar o que não se tem", de acordo com Lacan, já se encontra explicitamente no texto do Banquete. Essa é uma fórmula fundamentada no discurso, já que a própria temática do Banquete se refere a dar um discurso, uma explicação verdadeira, válida, sem tê-la.

É enquanto Poros dorme, no momento em que ele não sabe de coisa alguma, que se produz o encontro que gera o Amor. A Aporia, aquela que se insinua por seu desejo no intuito de procriar, de gerar esse nascimento, a feminina Aporia é o erastḗs, é a desejante primordial na sua posição verdadeiramente feminina. Ela é definida pela sua natureza, pela sua essência, desde antes da geração do Amor: ela não tem nada de erōménē, de desejada, visto que lhe falta. No mito, Aporia, penúria absoluta, está à porta do banquete dos deuses, no dia do nascimento de Afrodite, mas não é reconhecida em nada, não possui nada, nenhum dos bens que lhe proporcionariam um lugar à mesa com os entes. É nesse sentido que a feminina Aporia está antes do Amor: é através de Recurso, por meio de um artifício, que Aporia irá buscar, na geração, na concepção, na invenção do Amor, uma maneira de dar o que não tem, de transmitir, num ato de criação, a sua própria falta.

É por meio de um discurso, de uma narrativa de origem remota que tem como personagens deuses e seres sobrenaturais, que Diotima, a Estrangeira, diz, através da fantasia, uma verdade, uma realidade. Contrariando todo o método socrático e quase que remetendo-nos aos sofistas da época de Sócrates, ela nos captura, fascina-nos, ao contar uma história precisa, carregada de sentido e que, supostamente, nos revela uma verdade. Essa verdade, não obstante, é fundamentada essencialmente numa aporia, numa contradição, numa falácia, pois não há outra forma de se fazer, no discurso, o amor, sem que sejamos induzidos ao engano, ao logro. É essa torção que faz mulher, o amor, e é por isso que Sócrates passa a palavra a Diotima. Ela não apenas transmite a Sócrates um saber fazer, no discurso, o amor, mas ela transmite um saber fazer, no discurso, e através do amor, a mulher. É esse truque que enlaça a mulher e o amor, e é por isso que Sócrates passa a palavra a Diotima. Ela não apenas transmite a Sócrates, no discurso, um saber fazer com as coisas do amor, mas transmite, discursivamente, um saber fazer mulher, através do amor.

 

Notas

(1) O jogo de palavras (a)muro aponta para o amor: há quase uma homofonia entre as palavras "(a)mur" e "amour"; Lacan parece recordar o "amur" do francês arcaico, que fora substituído pelo atual "amour". Do "mur" de "amur", Lacan compôs o muro de (a)muro; ao pôr em evidência o "(a)", ele põe em relevo o objeto em sua relação com o muro. Dessa maneira, como nos indica Serge André (1986/1987, p.257), o termo (a)muro revela por um lado o objeto a, e por outro, o muro levantado por esse objeto frente à apreensão do ser. É nesse sentido que, deparando-se com o (a)muro, o sujeito se encontra em estado de angústia, porque, do ser amado, nunca se obtém mais do que alguns signos, ou alguns restos.

 

Referências

Allouch, J. (2010). O amor Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud Editora (Original publicado em 2009).         [ Links ]

André, S. (1987). O que quer uma mulher?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor (Original publicado em 1986).         [ Links ]

Lacan, J. (2010). O Seminário. Livro 8: A Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor (Original publicado em 1960-1961).         [ Links ]

Lacan, J. (1998). "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud". Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor (Original publicado em 1966).         [ Links ]

Lacan, J. (1997). Seminário O Saber do Psicanalista. Trad. Centro de Estudos Freudianos do Recife (publicação para circulação interna). (Original publicado em 1971-1972).         [ Links ]

Larousse (1992). Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Nova Cultural.         [ Links ]

Lucchelli, J. (2012). Métaphores de l'amour: Étude lacanienne sur Le Banquet de Platon. Rennes, France: Presses Universitaires de Rennes.         [ Links ]

Platão (2012). O Banquete. Porto Alegre, RS: L&PM (Original escrito por volta de 380 a.C.         [ Links ]).

 

 

Recebido em: 30/01/2016
Aprovado em: 06/06/2017

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