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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.9 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2017

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2017v2p.199 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Fome: o umbral da vergonha

 

Hunger: the threshold of shame

 

 

Karla Patrícia Holanda MartinsI; Daniel KupermannII

IProfessora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC. Psicanalista. Endereço: Avenida da Universidade, 2762. Benfica, Fortaleza - Ceará. CEP: 60.020-180. E-mail: kphm@uol.com.br
IIProfessor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Coordenador do psiA - Laboratório de pesquisas e intervenções psicanalíticas. Endereço: Avenida Professor Mello de Morais, 1721 - Bloco F. Butantã, São Paulo - SP. CEP: 05508-030. E-mail: dkupermann@usp.br

 

 


RESUMO

A partir de uma compreensão sobre o tabu em torno do tema da fome, apresentaremos a experiência dos campos de concentração cearenses, ocorridos em três momentos da história do estado - 1877, 1915 e 1932 -, e seus testemunhos, considerando, numa perspectiva psicanalítica, as possíveis relações entre esta zona de silêncio em nossa história e os obstáculos na elaboração singular desta experiência. Desse modo, dialogaremos com um trabalho clínico, desenvolvido há dez anos em uma instituição do terceiro setor em Fortaleza, com crianças desnutridas e suas mães, todas marcadas pelas experiências de privação do alimento em suas famílias. Seguindo-se os estudos de Sándor Ferenczi sobre o trauma, considera-se que a desautorização relativa à experiência subjetiva da fome produz uma espécie de vergonha, proveniente da identificação com o agressor.

Palavras-chave: PSICANÁLISE; FOME; CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO; TESTEMUNHO; VERGONHA.


ABSTRACT

Based on un understanding of the taboo on the subject of hunger, we present an experience with concentration camps that took place in Ceará in three different moments of the state's history - 1877, 1915 and 1932 -, and its testimonies, considering, in a psychoanalytical perspective, the possible relationships between that silence zone in our history and the problems we face when dealing with this experience. Therefore, we intend to develop a dialog with a clinical work that has been carried out for the last ten years in a third sector institution in Fortaleza which deals with poorly nourished children and their mothers, both deeply marked by the experience of the lack of food. Making echo to Sándor Ferenczi's studies on the subject of trauma, we consider that the subjective experience of hunger produces a kind of shame originated by an identification with the aggressor.

Keywords: PSYCHOANALYSIS; HUNGER; CONCENTRATION CAMPS; TESTIMONIES; SHAME.


 

 

No céu entra quem merece
No mundo vale quem tem...
....................................
Como tenho vergonha
Não peço nada a ninguém...
Que me parece quem pede
Ser cativo de quem tem...
(Rachel de Queiroz – "O Quinze")

 

Introdução

O médico pernambucano Josué de Castro (2004), já nos anos 40 do século XX, desenhara o mapa da fome no mundo, denunciando, em diálogo com a teoria social de Freud, a dimensão de tabu que reservava a esta experiência seu pertencimento às zonas de sombras e silêncio de nossa história. Afirmara que, sob os véus do segredo e da vergonha, a fome não podia ser reconhecida e pensada nos meios acadêmicos brasileiros. O silêncio se espalhava para os testemunhos da cultura e se encriptava nos núcleos mais recônditos das experiências subjetivas. A cripta onde se encapsulam os nossos segredos históricos não deixa, todavia, de produzir efeitos subjetivos e de modular nossas formas de sofrimento atuais.

No presente trabalho, apresentaremos a experiência histórica dos campos de concentração cearenses, ocorridos no estado nos anos de 1877, 1915 e 1932, e seus testemunhos, considerando as possíveis relações entre esta zona de silêncio em nossa história e os obstáculos na elaboração singular desta experiência. Em seguida, dialogaremos com um trabalho clínico desenvolvido há dez anos em uma instituição do terceiro setor em Fortaleza, com crianças pequenas desnutridas, marcadas pela experiência de privação do alimento em suas famílias. Ressalta-se que uma reflexão sobre o mal-estar da experiência da fome e suas formas correlativas de sofrimento no referido contexto não poderia deixar à margem uma introdução sobre suas dimensões histórica e cultural. O procedimento é indispensável quando o que está em jogo é um "evento-limite" (Seligmann-Silva, 2000, p.75) e de dor extrema, que fora silenciado desde a cultura.

Pode-se ainda creditar a esse silenciamento o caráter de impossibilidade que se impõe à representação da experiência que conduz o homem ao seu duplo inimaginável com a morte, com a dor extrema e com a desumanização. Considerando a tensão da proposta do escritor Eli Wiesel [sobre os campos de concentração nazistas]: "calar-se era proibido e falar impossível" (Wiesel in Semprum & Wiesel, 1995 citado por Koltai, 2016, p.1), indaga-se como a Psicanálise pode aproximar-se desse tema. O paradoxo acaba por conduzir-nos, metodologicamente, ao conceito de testemunho, uma experiência de linguagem que igualmente nasce "sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade" (Seligmann-Silva, 2008, p. 67).

A articulação entre a fome e o testemunho segue a direção dos estudos sobre uma "ética da representação" (Seligmann-Silva, 2003, p.10). Alia-se também a uma perspectiva de pesquisa que relaciona a experiência cultural aos elementos da metapsicologia e da clínica psicanalíticas. Nessa direção, aproximamo-nos dos trabalhos que colocaram em relevo figuras culturais - do estrangeiro (Koltai, 2000) e do exílio (Fuks, 2000) - para pensar a influência do legado cultural de Freud na invenção do campo psicanalítico. Seria a fome uma representação silenciada na história da psicanálise, mas que, todavia, teria colaborado também com a constituição do legado freudiano? Vicent Gualejac (2008), no livro "Les sources de la honte", ao analisar as violências humilhantes - dentre elas, a fome e a pobreza - ressalta o papel da vergonha relativa a essas experiências de vida nas escolhas teóricas de Camus, Sartre e Freud. Infelizmente, não poderemos, no contexto deste artigo, desenvolver tal perspectiva, mas podemos aqui indicar algumas pistas de um possível estatuto da fome como um elemento importante no modelo metapsicológico de Freud sobre a representação.

Insistir numa retificação sobre o inenarrável da fome abre a possibilidade para que "algumas palavras passem a ser esquecidas e outras compreendidas de maneira diferente" [considerando que] "(...) esse é um modo - quem sabe, talvez o único modo possível - de escutar o não dito" (Agamben, 2008, p.21). Nessas circunstâncias, como bem sinalizam Barbosa e Kupermann (2016), não se trata apenas de observar um limite frente ao indizível; os destinos do irrepresentável articulam-se às possibilidades de escuta: do indizível ao audível.

Assim, retomamos também a tradição psicanalítica, desde Freud, de pensar as incidências da história e dos traumas históricos sobre a vida psíquica dos indivíduos, no que se refere à construção de suas ficções de origem, suas formas de sofrimento e de laços sociais atuais, relacionando os testemunhos das experiências culturais e os elementos da metapsicologia e da clínica psicanalíticas

A verdade histórica sobre os campos de concentração cearenses pode ser considerada um símbolo perdido da experiência da fome e do horror que foram apagados a partir da nossa cultura. O que, todavia, não pode ser esquecido, e menos ainda lembrado, cedo ou tarde faz a sua aparição. Em janeiro de 1994, centenas de ossadas foram encontradas, por ocasião de uma obra de saneamento na cidade de Fortaleza. Historiadores afirmaram a existência, no local, de um cemitério histórico (Lira Neto, 1999; Rios, 2014). A "cripta" (Abraham & Torok, 1995) onde se encapsula o horror, força o desaparecimento dos campos de concentração da nossa história e, mais ainda, esconde o seu cadáver. Trauma e desmentido são duas figuras teóricas que andam de mãos dadas nas formações da clínica e da cultura.

Caminharemos ainda com Freud e seu contemporâneo Sándor Ferenczi neste ato de pesquisa, de modo a pensar o silêncio-tabu imposto à narrativa dessa experiência e suas relações com o desmentido do trauma, a desautorização e a vergonha, três sobrenomes da fome. Freud (1895/1980; 1920/2006) e Ferenczi (1933/1992; 1934/1992) recorreram à figura do trauma para pensar nas experiências-limite ao trabalho da linguagem. Benjamin (1984) nomeou-as como catástrofes e, servindo-se da obra de Charles Baudelaire, indicou como um de seus efeitos subjetivos o choque. De algum modo, perpassa a todos a ideia de uma experiência com o inominável, situação em que o homem é colocado em um umbral de silêncio, ao mesmo tempo em que se vê forçado a dizer. A etimologia latina da palavra umbral coincide com liminares, apontando para duas raízes - limite (limen) e luz (lumen) - indicando o limite, um fim extremo, e suas relações com a luz. Portanto, podemos sugerir que os rastros deixados pelas experiências traumáticas e extremas, a fome uma dentre estas, iluminam gerações que, ao longe, continuam a segui-los, a rastreá-los, como sua herança.

É importante lembrar o paradoxo que nos coloca o conceito de testemunho: narrar o impossível, expondo as fraturas da representação frente ao horror e à catástrofe. Nessas condições, é necessário considerar que os limites da palavra do sobrevivente não correspondem ao limite último do humano, ou seja, não se trata apenas do que permanece inominável, mas daquilo que não pode ser dito, ao não ter o estatuto de algo que existe (Agamben, 1996; Seligmann-Silva, 2000). Como abordar o impensável? Aqui, abriga-se a dimensão sublime da arte e da criação, possibilitando "o deslocamento de uma impossibilidade lógica para uma possibilidade estética" (Agamben, 1996, p.45).

 

A experiência concentracionista cearense

A prática dos currais humanos, como também eram conhecidos os campos de concentração, já havia servido ao isolamento dos retirantes de 1877-1878, quando a seca trouxe para capital, então com 30.000 habitantes, cerca de 100.000 homens. Essa seca ficará para a história do estado como uma emblemática catástrofe humana. Naqueles dias, a fome e as pestes, em especial a varíola, chegaram a matar na capital, em um só dia, nada menos que 1004 pessoas. Dez de dezembro de 1878 ficou conhecido como o "Dia dos Mil Mortos" (Lira Neto, 1999). Em setembro daquele ano, o valor total de mortos já contabilizava, na capital, mais de 24.849 mil. Os doentes, quando sobreviviam, eram removidos pela força policial para os abarracamentos afastados do centro da cidade; urrando de dor com suas feridas, eram conduzidos pelas ruas em redes de panos grossos por homens pagos à base de ração de carne seca, farinha e pinga. Sertanejos trôpegos caminhavam por mais de três quilômetros carregando os corpos de velhos, crianças, homens e mulheres seminus. Corpos se amontoavam pela cidade e ao longo de todo o trajeto da estrada de ferro (Figura 1), "a dignidade ofendida não era a da vida, mas da morte" (Agamben, 2008, p.77).

 

 

Os cadáveres em série - numa espécie de expropriação da morte - conflui com os sentidos de abjeção. O que causa nojo e asco, ao invés de introjetado, segue os caminhos da incorporação. Ferenczi (1933) destacará a incorporação do objeto, a culpa e a identificação com o agressor como três dos destinos para o que não pode ser introjetado a partir do trauma. Mais adiante, sugerimos pensar a vergonha como um afeto relativo a essa identificação.

Na biografia do escritor e médico sanitarista Rodolfo Teófilo, o sociólogo Lira Neto (1999) descrevera a vergonha sentida por este com o transporte público dos moribundos. Teófilo deu seu testemunho sobre os horrores das secas em suas obras "A fome" (1890/1979) e "Secas do Ceará" (Segunda metade do século XIX) (1901). O campo que serviu ao isolamento dos retirantes da seca de 1915, também duramente criticado na pena do escritor, foi descrito como um espaço de 500 metros, com mais de 7000 homens encurralados. Raquel de Queiroz também descreve a massa humana de velhos, homens, mulheres em seus mulambos, crianças com "petrificadas feições numa careta de choro, parados e sem voz" (Queiroz, 1930/1990, p.102) que sobreviviam encurralados.

Em 1932, a despeito das denúncias sobre os horrores de 1915, novos campos foram demarcados para supostamente defender a cidade de uma possível invasão dos famintos. Sob a rubrica de uma nova saúde pública, as justificativas para a abertura dos campos estavam agora associadas aos argumentos científicos, baseados em um higienismo que andava de braços dados com as reformas da Belle Époque fortalezense (Rios, 2014; Neves, 1995).

Os campos eram construídos em lugares estratégicos, próximos às ferrovias em que aportavam retirantes do interior, com o objetivo de uma ação rápida para impedir o acesso aos bairros mais ricos de Fortaleza (Rios, 2014; Neves, 1995). Os dois cativeiros da capital também serviram, na ocasião, de vitrines para demonstrar a eficiência do poder público em governar e tratar a pobreza, com as vestes de um moderno projeto humanitário. Assim, os abarracamentos - como também eram conhecidos os campos - "chegaram a fazer parte do roteiro turístico da 'Noiva do Sol' [como era apelidada Fortaleza], conquistando elogios e doações de visitantes que viajavam no luxuoso navio Touring Club" (Rios, 2014, p.92).

 

 

 

 

Vemos aqui reforçada a tese de Agamben (2008) de que os campos de concentração (ele se referia aos campos da Segunda Guerra Mundial na Europa) podem ser pensados como paradigmas biopolíticos da modernidade, haja vista que, no campo, entram em jogo forças e estratégias de dominação da vida onde a governabilidade se associa à vigilância e ao controle das populações que representam riscos, em nome da segurança territorial.

Por muitas décadas do século XX, as violações e os horrores daqueles anos sobreviveram apenas nas narrativas literárias e jornalísticas. O silêncio em torno destes traumáticos fatos históricos sustenta-se em torno de uma espécie de "desmentido" na cultura. A história oficial do estado só muito recentemente começou a revelar esses acontecimentos. O psicanalista Bertrand Piret (2007) sugere que nas situações traumatogênicas, nas quais o que está em jogo é o abandono de outros homens pela comunidade, só se pode compreender a transmissão do traumatismo a partir da vergonha que este provoca no traumatizado.

 

Fome e vergonha

A literatura brasileira que testemunhou a fome revelou também a ferida moral deixada por esta experiência. Seu correspondente afetivo expressa-se na vergonha daqueles que dela padeciam (e padecem). Rachel de Queiroz (1930/1993) nos relata no seu épico de estreia, "O Quinze", a retirada de Mocinha, Chico Bento e sua meninada gemendo de fome pelas estradas do sertão cearense, ao som alternado das alpercatas de couro com o "Tô tum fome! Dá tumê" (Queiroz, 1930/1993, p.48). A narradora recorta a cena em que o pai se interrompe diante de um quintalejo, onde um homem tirava leite de sua vaca, e nos relata a seguinte cena:

Chico Bento estendeu seu olhar faminto para a lata onde o leite subia, branco e fofo como um capucho...

E a mão servil, acostumada à sujeição do trabalho, estendeu-se maquinalmente num pedido... mas a língua ainda orgulhosa endureceu na boca e não articulou a palavra humilhante.

A vergonha da atitude nova o cobriu todo; o gesto esboçado se retraiu, passadas nervosas o afastaram.

Sentiu a cara ardendoe um engasgo angustioso na garganta.

Mas dentro da sua turbação lhe zunia ainda os ouvidos:"Mãe, dá tumê..." (Queiroz, 1930/1993, p.49, grifos nossos).

Esta é a vergonha do justo ante a culpa de outrem, poderia interpretar Agamben (1996). Em sua proposição sobre este afeto político, o filósofo italiano retoma a tese de Levinas (1935 citado por Agamben, 1996) sobre a impossibilidade de nos evadirmos quando ficamos entregues a algo de que não conseguimos nos desfazer, por exemplo, o amor, a nudez, as nossas necessidades fisiológicas. Diante do inassumível, a vergonha do sujeito não tem outro conteúdo senão a própria dessubjetivação, convertendo-se em testemunho do próprio desconcerto. Como diz o filósofo, porém, a vergonha guarda um paradoxo: é dessubjetivação e, simultaneamente, a afirmação de uma posição do sujeito no limite de sua dignidade e do respeito de si. Se a mão de Chico Bento estendeu-se confirmando sua servidão, a língua orgulhosa guardou-se. Era o começo da viagem, e a margem do irrenunciável permaneceu naquele homem, dando lugar a sua angústia, sua turbação. Neste ponto de êxodo, ainda era possível não abrir mão "de uma margem irrenunciável" de sua humanidade. A sua vergonha relaciona-se ao saber daquele "que conhece o vazio (...), deixando que no vazio de nossos olhares tenham lugar o amor e a palavra" (Agamben, 1996, p.1).

Os ecos da transmissão do que foi negado sobre o estatuto da fome como experiência individual e histórica, em consequência de atos políticos que suprimem a testemunha, noticiam na cultura o mal-estar que não pode ser apagado dos gestos, expressão da unidade mínima das matrizes culturais do inconsciente.

Os ditos "bons costumes", no Ceará, aconselham pudor e prudência frente ao alimento: "sempre deixar um pouco de comida, jamais raspar o prato", "não demonstrar nas ocasiões públicas um gosto demasiado pelo comer", "não demonstrar pressa em terminar a refeição". É comum observar uma espécie de pudor entre os funcionários da casa enquanto se alimentam; os gestos que demonstram fome são considerados feios, obscenos. Parafraseando novamente o filósofo italiano, indagamos na atualidade da clínica psicanalítica: o que resta dessa experiência?

 

A clínica com crianças desnutridas: rosto e simbolização primária

Ao longo de uma década de trabalho em uma instituição do terceiro setor em Fortaleza, que atende crianças diagnosticadas com desnutrição e marcadas pela experiência de privação do alimento em suas famílias, encontramos, do lado das crianças, uma espécie de inibição da função da fala (até três anos, ainda não fazem frases, pronunciam palavras soltas) e do brincar, com o predomínio de uma linguagem gestual. Do lado das mães, cansaço, silêncio, rostos vazios, rígidos, desvitalizados em suas aparências, e narrativas estancadas por afetos que fizeram supor - dentro de um quando mais geral de impassibilidade - a presença de uma vergonha de si mesmas. Pareciam destruídas nas suas capacidades de fazerem escolhas, de sentir vontades. Juntos (mãe e criança) cristalizavam histórias de privação e de perdas, atualizando um passado que imobiliza o presente. De que formas as experiências silenciadas na cultura retornavam nos modos de figurabilidade do mal-estar e nas formas de sofrimento dessas mães e crianças?

A fome relaciona-se factualmente à privação do alimento; mas enquanto uma experiência subjetiva pode simbolizar, por exemplo, formas arcaicas de separação de uma origem - perda de uma relação umbilical com o corpo do outro que deixa a marca de seu ponto de partida (parturição). A nostalgia talássica de uma terra de origem reenvia-nos ao insondável, ao umbigo polissêmico da palavra.

Como já sinalizou Ana Kiffer (2010; 2011), a lógica de continuidade entre a fome e a palavra deve ser problematizada se consideramos a relação entre fome e abjeção. Isto significa dizer que, por um lado, podemos apostar em uma continuidade, "afetado pela fome o homem fala: forçosamente" (a autora retoma aqui o trabalho do filósofo francês Jerome Thélot); por outro lado, se a fome se mostra da ordem do abjeto, do que deve ser forçosamente excluído, associa-se ao silêncio, rompendo a continuidade com a palavra.

Nas condições em que os gestos dos sujeitos são violados pelo silêncio e pela indiferença, impõem-se o isolamento e a vulnerabilidade, fazendo confluir os sentidos da fome e da violência. Podemos compreender, assim, o que representa para o bebê humano uma ação bem sucedida, ou seja, empreender um movimento em direção ao outro e obter, com isto, a modificação da realidade. Se, como enfatiza Arendt (1958/1999), a ação pertence ao âmbito político dos negócios humanos, a sua negação estaria relacionada à violência e à deterioração do político, à negação da palavra, enquanto ponto fundamental do reconhecimento de nossa condição humana.

É necessário, todavia, que na linguagem haja lugar para o testemunho "de algo de que não se pode testemunhar", apenas assim, diz-nos Agamben (2008), "o falante poderá experimentar algo semelhante a uma exigência de falar" (Agamben, 2008, p.72). Em outras palavras, é necessário, como sinaliza Gagnebin (2008), incluir na transmissão algo incerto: "transmitir algo que pertence ao sofrimento humano, mas cujo nome é desconhecido. Algo que faz implodir as definições de dignidade humana e as coerências discursivas" (Gagnebin, 2008, p.15). Na vida dessas mulheres e crianças, as experiências com a fome se acompanham de uma destruição sistemática da crença em si, introduzindo o desamparo e a ameaça de morte no coração da vida. Muito embora não possamos generalizar, a partir desta clínica, é possível apontar que, com significativa frequência, a passagem do real do corpo desnutrido do filho ("couro e osso") ao cuidado com o mesmo é obstruída pela impossibilidade de simbolização de um real traumático, silenciado entre seus semelhantes.

Lacan (1949/1998) e Winnicott (1967/1975) compreenderam a função especular (e especulativa) do rosto materno na fundação de um nome próprio, a partir de uma experiência onde há crença na transmissão e na tradutibilidade da experiência com o Outro. Em 1949, o eixo especular proposto por Lacan indicava a necessidade de um terceiro na função do reconhecimento da mãe e do bebê. Winnicott, em 1967, relendo esse texto indica um mais adiante na função de reconhecimento e pressupõe o rosto da mãe como espelho, indicando aí a radicalidade desta experiência com a alteridade, ou seja, no reconhecimento, faz-se necessária a presença alteritária que, todavia, deve comparecer com seu ponto de opacidade.

Em outras palavras, no espelho, a criança encontra seu duplo, em imagem; no rosto da mãe, a criança deverá encontrar a presença de um ponto de opacidade, condição para que o infans constitua a sua capacidade de falar, traduzir, estar junto e separar-se. Mais tarde, o psicanalista René Roussillon (2010) afirmou: "Entre mãe e bebê, o vetor do encontro, o que condiciona o prazer da relação e talvez até a composição psíquica do prazer (...) é o processo pelo qual Um e Outro dos dois parceiros se constituem como espelho e, portanto, como duplo do outro" (Roussillon, 2010, p.46). Nesse sentido, para que a ilusão imagética de totalidade se instale, é necessária a solidificação de uma base importante relativa ao reconhecimento dos gestos como significativos e das matrizes simbólicas de uma cultura. Roussillon (2010) nomeia como coreografia do encontro essa troca cinestésica entre a mãe e o bebê. Mais recentemente Peter Sloterdijk (2016), ao retomar criticamente a proposição lacaniana do espelho, sugere a importância de se considerarem como fundamentais os jogos de "ressonâncias vocais, táteis, interfaciais e emocionais" (Sloterdijk, 2016, p.482) presentes nas relações primárias e nos processos de identificação mais precoces.

Deleuze e Guattari (1996) sugerem uma relação entre a aprendizagem de uma língua e as tonalidades significantes indexadas no rosto do outro significativo, pois o rosto é um espaço de tonalidades afetivas, de indicação e sinalização. Como tal, o rosto nos orienta à escuta, convoca-nos à fala.

Nesse sentido, quando o rosto (re)vela a vergonha do Outro, incorporada pela identificação com o agressor e silenciada pela culpa, poderão surgir impasses nas operações simbólicas primárias e nos modos de representar as perdas. Como sugerido anteriormente, em alguns casos, tais obstáculos estão sinalizados nas formas de sofrimento dos bebês e de suas mães, ambos marcados ou pela factualidade da privação do alimento ou pelo fantasma de retorno desta experiência. O tabu da fome - seu silenciamento - pode operar de modo distinto para cada uma dessas mães e crianças. O eixo da especularidade revela, no entanto, impasses significativos. Nesse contexto, muitas mães referem dificuldades de cuidar de um bebê "sem peso" e com isso obter prazer com esta relação. Estudos sobre as formas de apego relacionam a instauração de um trabalho psíquico da criança com a sensibilidade da mãe para reconhecer e interpretar os gestos do seu bebê. Assim, a dimensão do rosto materno é um indicador importante para pensarmos a relação entre a vergonha [do Outro], da qual a mãe é portadora e os impasses nas operações simbólicas primárias.

Considerando as relações entre as identificações primárias do bebê e de sua mãe com a disponibilidade sensível desta, como a experiência da fome e o horror dela correlato podem influenciar suas sensibilidades tonais - o tônus relacionado à sua capacidade de sustentar fisicamente o bebê no colo, o tom da sua voz sustentando a potência de sua enunciação e o seus afetos expressos em seu rosto? Conforme assinala ainda Roussillon (2010), há todo um "cortejo de sensações" (Roussillon, 2010, p.8) - que será fundamental para a sintonia afetiva, ou, em outras palavras, fundamental para que a pulsão adquira o valor de uma mensagem.

Na instituição, o silencio das mães e a vergonha impressa em seus rostos indagavam a reponsabilidade do analista e colocavam-nos diante de uma questão: como poderíamos propor um trabalho de elaboração pessoal de uma experiência cuja inscrição como fato histórico ainda continuava negada?

Koltai (2011) lembra-nos de que, nos casos em que os traços da inscrição simbólica do horror de uma experiência não puderam ser reconhecidos como fato social e político, o analista não pode deixar de "relacionar a história individual com a História do mundo" (Koltai, 2011, p.147). Se assim não se conduz, "abandona o analisando em uma solidão que, em vez de ajudá-lo a construir sua singularidade, cria nele um sentimento ilusório e tóxico de estar condenado a uma solidão de exceção" (Koltai, 2011, p.147). O trabalho analítico na Instituição precisa considerar os limites do testemunhável, ao mesmo tempo em que resgata, através de uma ética do cuidado, aquilo que fora silenciado no intercurso de muitas gerações.

 

Referências

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Recebido em: 25/12/2016
Aprovado em: 28/03/2017

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