SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 issue2Object and the other: gives up a pound of meatInvenções intuitivas, a gramática de Elida Tessler: comentário crítico da Exposição Recortar, Copiar, Colar author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.9 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2017

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2017v2p.268 

RESENHA

 

Cruzamentos lógicos no debate sobre as sexualidades

 

 

Mara Selaib

Pós doutora FFLCH USP. Doutora em Psicologia clínica PUC/SP. Mestre em psicologia Social PUC/SP. Psicanalista. Endereço: R. Min. Godói, 1484 - Perdizes, São Paulo - SP. E-mail: selaibe@terra.com.br

 

 

Resenha do livro de Silvia Leonor Alonso... [et al.] (orgs). Corpos, sexualidades, diversidade. São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae: Escuta, 2016. 424p.

Corpos, sexualidades, diversidade é uma coletânea lançada em 2016. Está composta por um conjunto de textos a respeito do tema sexualidade sob a lógica do inconsciente psicanalítico: afirmativo e atemporal, contudo forjado e adensado na história de cada sujeito psíquico. São trabalhos psicanalíticos também na maneira de abrir veredas na direção de outros saberes com os quais buscam dialogar. Nessa medida, a literatura, o cinema, as artes plásticas e a performance, a história, a filosofia, a política e a medicina, as teorias de gênero, as reflexões tecidas em torno dos preconceitos de raça e sexos, das práticas de violências contra as mulheres, das perguntas sobre a feminilidade e a masculinidade estão contidas nas elaborações de cada um dos 30 artigos dispostos em dez mesas temáticas e um debate.

A organização do livro foi feita por quatro psicanalistas membros do Grupo de trabalho e pesquisa O feminino e o imaginário cultural contemporâneo (Silvia Alonso, Danielle Breyton, Helena Albuquerque e Luciana Cartocci). Resulta da III Jornada Temática do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (2015) - idealizada pelo mesmo Grupo, sob a coordenação de Alonso. Sua Conferência de Abertura "Sexualidade: destino ou busca de uma solução" justamente avança uma pergunta lançada há tempos por Joyce McDougall: "(...) não se poderia propor, então, que a totalidade da sexualidade humana consistiria basicamente de neossexualidade?" (1999, p.25). Silvia Alonso dedica-se ao tema que propôs, imbuída de vasta bibliografia, e afirma:

Sexo, gênero e desejo articulam-se para a psicanálise de maneira complexa. Pelo eixo do desejo a sexualidade se conecta com o objeto e com o amor. Nesta rede complexa tenta-se buscar uma solução para o enigma, mas qual? O enigma das origens? Das diferenças? Das excitações e mensagens introduzidas no corpo no mais primário? Dos gêneros? A sexualidade para a psicanálise não está a serviço da reprodução e sim da criatividade, da inventividade do sujeito para encontrar uma solução singular. A singularidade é a marca fundamental da psicanálise. (p.23)

 

 

Assinalar a singularidade retira o traumático de uma visada dramática e o desloca para uma chave trágica: o acontecimento traumático é inescapável e devém irredutível; a humanização implica o trauma da sexualidade infantil desde o início de cada vida recém-nascida. Dele ninguém pode fugir e o que se pode fazer para encaminhar essa condição será sempre uma construção expressiva problemática e problematizante. Para McDougall cada solução será sempre desviante, sempre haverá uma produção única de rota possível para o equilíbrio mais ou menos instável da psicossexualidade humana - e desvio aqui quer dizer que cada um foi impingido a processar um caminho expressivo, criativo, singular para toda gama de conflitos e dificuldades à qual a sexualidade expõe. O que Alonso ressalta é que "Essa forma de pensar talvez nos ajude a escapar das lógicas desigualas" (p.24)

A tentativa de enfrentamento das "lógicas desigualadas" descende, como é sabido, de uma notável linhagem. Apenas com o propósito de retomar historicamente um aspecto interessante desse ponto, devemos recordar que nos anos 1880 - apenas 19 anos após a remoção da pena de morte por sodomia e ainda sob o risco da condenação a trabalhos forçados pelo crime - John Addington Symonds (um radical, gay da classe média britânica, e acadêmico) defendeu publicamente, em obras escritas (ainda que restrito a um grupo de artistas e intelectuais), a afirmação da homossexualidade. O filósofo e poeta Edward Carpenter despontou, na mesma Inglaterra, como seguidor das ideias de Symonds, após a morte deste. Carpenter se dedicou longamente à educação sexual. Defendia a explicitação das maneiras como o sexo e o gênero exerciam a função de oprimir as mulheres que não podiam gozar de liberdade sexual e econômica. Em 1908 publicou The Intermediate Sex como parte de sua luta contra a discriminação em relação à orientação sexual. Essa obra alimentou os movimentos LGBT durante o século 20. Aliás, a mesma Londres abrigou o profícuo Bloomsbury Group, composto por escritores, artistas, poetas e pensadores que defendiam e praticavam amplamente a liberdade sexual, combatiam as discriminações de gênero e de sexualidades e criavam obras que contribuíram decisivamente para mudanças nas produções subjetivas a partir de então. Carpenter circulava entre eles. E, como é bem conhecido, desse grupo faziam parte Leonard e Virginia Woolf - proprietários da pequena editora Hogarth Press que traduziu as obras de Freud.

Mas como no curso da História pouco mais de uma centena de anos não é tanto assim, vemo-nos, nestas primeiras décadas do século 21, diante da premência em seguir sustentando e buscando as lógicas não discriminatórias, com o fino cuidado em afirmar a acuidade psicanalítica mediante os cruzamentos lógicos desse amplo debate sobre a sexualidade. Tal atitude de pensamento, marcadamente presente na coletânea, encontra-se na fundação da própria psicanálise e não pode ser descuidada sob o risco de descaracterizar seus propósitos. No Debate, cujo disparador foi o filme De gravata e unha vermelha, dirigido por Miriam Chnaiderman, ela alerta:

Mergulhar nesse mundo das novas sexualidades implica abandonar qualquer posição essencialista. O que não é nada fácil. Poder se mover num mundo onde o binarismo de gênero foi rompido implica uma abertura para outras linguagens e os percursos teóricos passam a ser movediços. (p.402)

Esse cuidado realiza-se em vários níveis nos artigos dessa obra. Apenas para configurar uma pequena ideia do que ali se encontra, vejamos essas passagens de textos capazes, no conjunto do livro, de mediar instigantes desafios a cada leitor. Ana Maria Sigal, em "Ainda psicanálise no campo da sexuação!", sublinha:

Metabolizar significa desconstruir e reconstruir produzindo um novo conhecimento. Esse processo é tão radical que nos leva a reconsiderar elementos centrais da teoria psicanalítica - como o lugar da primazia do falo e da inveja do pênis - a serem reposicionados, tanto em seus conteúdos quanto no discurso à luz dos aportes da teoria de gênero, sem um valor axiológico de supremacia hierárquica e, sim, como elementos que introduzem diferença. Essa nova reconsideração dos elementos em jogo no Édipo não anula a necessidade de manter o complexo de Édipo como um elemento fundamental de passagem na linha da sexuação e das identificações secundárias. (p.140)

Mais adiante, Maria Aparecida Kfouri Aidar interroga-se em "Mulheres e supereu, ainda":

Para a psicanálise, com genitalidade em jogo ou não, qualquer escolha que a pessoa faça é sexualidade, portanto há aqui um ponto universal que permanece: as escolhas sexuais são dadas pela pulsão e pela alteridade. Essa diversidade não anula e não deveria esconder a diferença básica entre homem e mulher, tampouco negar o que se convenciona chamar de masculino e feminino. O que vemos hoje, não seriam inúmeras composições disso? O que é um supereu feminino ou masculino? Que tipo de supereu tem um transexual? Sexual e socialmente, o que tem distinguido homens e mulheres? (p. 257)

Sendo que, em páginas anteriores, Nayra C. P. Ganhito interpela com o texto "A incógnita masculina":

Mas o relativo silenciamento do tema emergente da masculinidade - como que retirado do interesse pelo campo da diversidade - não implica o risco de deixar as questões feminino/masculino e das relações entre homens e mulheres fechado em um campo perpetuado da diferença excludente, situado em um aquém da diversidade 'positivada' reivindicada e admitida para as neossexualidades? (p.154)

Essas linhas de pesquisa são percorridas, interpenetram-se e se desdobram em múltiplos interrogantes em outros textos. Note-se esse fato, por exemplo, em relação à questão anteriormente já citada a propósito da masculinidade. Em "Corpo judeu, corpo mulher: Freud, o antissemitismo e o nazismo", de Renata Udler Cromberg, a autora procede a uma "análise do discurso de quatro nazistas" numa situação na qual ocorre "um certo levantamento do mecanismo de defesa da recusa da realidade" e eles, afinal, reconhecem que mulheres e crianças judias foram mortas nos campos de extermínio. A autora discute, a partir dos discursos desses carrascos, a virilidade como perversão e a masculinidade definida pela coragem de se recusar a práticas violentas. Lemos em seu texto: "É urgente uma análise da virilidade socialmente construída, uma das formas principais do mal na sociedade." (p.84) E, mais adiante, encontramos em "Diferenças dos sexos, diferença sexual, gênero e inconsciente", de Nelson da Silva Junior, justamente uma análise dos fundamentos conceituais do termo masculinidade em relação ao termo verdade, estabelecendo, portanto, um diálogo interessante com textos anteriormente citados. Escreve aquele autor:

Na origem da filosofia, assim como na origem da masculinidade, o que se encontra é um mesmo princípio de exceção. (...) é o que funda, em ambos os casos, um princípio de identidade. (...) Nesse intricado jogo de equivalências, onde o pivô central é a palavra inalterável, isto é, definitivamente idêntica a si própria, é a masculinidade que acaba por se equivaler à humanidade falante da verdade. (...) Tal sintaxe tem demonstrado não mais nos convir... (p. 163)

Há, pois, várias ressonâncias entre textos. E elas são, certamente, construídas/encontradas pelo leitor quando se debruça sobre o livro a partir de seus próprios desassossegos psicanalíticos.

Confluem ainda trabalhos com franco caráter clínico. Eles apontam para aspectos das vidas das mulheres abordando temas tais como a maternidade, a gravidez na adolescência, a menopausa, o envelhecimento, a memória, o matricídio. As mesas Efeitos do materno, Reviravoltas da feminilidade, Corpo da mulher: resistência e suporte e Caminhos do desamparo apresentam situações clínicas acompanhadas de generosas reflexões e permitem a apreensão de estilos e modos de pensar o exercício da psicanálise - motor diário que justifica esse saber.

Numa combinatória articulada, o leitor encontra - transversalizando todo o conteúdo do livro, sem exceção, e delineada com fineza - a dimensão da cultura que implica posições éticas, estéticas e políticas. Especificamente na mesa que abre o livro, A estética e as novas sexualidades, e no Debate, que o encerra, deparamo-nos com a presença real do corpo na arte e na vida promovendo outros modos do acontecer e de pensar a respeito dos processos de subjetivação. Nos três textos incluídos nessa mesa, somos conduzidos pela performance, pela body art, pela live art. E atravessando a leitura até o final de corpos, sexualidades, diversidades encontramos, no debate, um trabalho elaborativo de José Miguel Wisnik que escapa das "lógicas desigualadas" e, com a leveza de um artista, descreve outra lógica:

(...) [o] embate político-ideológico envolve lógicas. Lógicas que não são apenas lógicas de pensamento, de abstração. São lógicas que envolvem a identidade e a alteridade, (p.408)

(...) essas questões de identidade e alteridade supõem também a transformação do corpo ou aceitação ou não do corpo e há uma intervenção química, hormonal, cirúrgica que dá a esse caráter 'trans' uma outra dimensão. Esse aspecto (...) se radicaliza na lógica da diferença que é: olhar toda identidade com a vertigem daquilo que é 'trans'. (p. 411)

Justamente esse olhar marca a contribuição trazida pelo lançamento de corpos, sexualidades, diversidade.

 

Referências

Carpenter, E. (2007). The intermediate sex. UK: Echo Library. (Original work published 1908)        [ Links ]

Gilbert, S.M. (1993). Introdução - Orlando: Virginia Woolf's Vita Nuova. Em V. Woolf (Ed.), Orlando (pp XI - XXXIX). London: Penguin Books.         [ Links ]

McDougall, J.(1999). Teoria sexual e psicanálise. Em PR Ceccarelli (Ed.) Diferenças sexuais (pp 11-26). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 08/08/2017
Aprovado em: 09/10/2017

Creative Commons License