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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.9 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2017

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2017v2p.272 

ARTES

 

Invenções intuitivas, a gramática de Elida Tessler: comentário crítico da Exposição Recortar, Copiar, Colar*

 

 

Donaldo Schüler

Doutor em Letras e Livre-Docente pela UFRGS. Ensaista, (Teoria do romance, Narciso errante, Na conquista do Brasil, Heráclito e seu (dis)curso (Coleção L&PM Pocket), Origens do discurso democrático (Coleção L&PM Pocket)) e Escritor (A mulher afortunada, Faustino, Pedro de Malasartes, Império cabocloe "Joyce era louco?") Tradutor de Finnegans Wake (Ateliê Editorial), trabalho ganhador do Jabuti de 2004 e Prêmio APCA de 2003. Endereço: Av. Paulo Gama, 110 - Farroupilha, Porto Alegre - RS

 

 


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A palavra se faz carne

Ampliemos reflexões linguísticas, a gramática de Elida Tessler é intuitiva, lembra a mão da criança estendida para apanhar a lua. Schelling e Schopenhauer buscavam na intuição o eterno, ao passo que Elida, atraída pela duração, ingressa na intuição bergsoniana, pratica o fluir: acontecer interior, elã vital, vontade de ser e de viver, jorro de invenções que provocam a imaginação, a reflexão. Os franceses distinguem mot e parole. Recordemos o varal de outros tempos; no varal, a palavra seca, vira mot para reaparecer como palavra viva (parole) nos olhos e no sangue do espectador. Reduzido a zero, o sentido renasce de contexto a contexto. A palavra se faz carne, mas, antes de fazer-se carne, a palavra, despida de revestimentos, vira osso. Devolvida à sua origem hebraica - língua em que davar (palavra e coisa) absorve mot e parole - verbetes retumbam em novo lance, tombam em arremessos de longo alcance, num relance. Objetos (mots) falam, toalhas penduradas dizem coisas feitas e a fazer.

 

Tempo

Elida vê o tempo de muitos lados: tempo acontecendo, tempo acontecido, tempo por acontecer, tempo irrealizado, irrealizável. No presente, lugar de preservação e de invenção, nada se perde, a cada instante, a cada instalação, com a participação de todos, a obra se renova. Chá de banco é lugar de espera, fala que poderá acontecer, incerta como tudo o que está por vir. Falas tapam o silêncio da espera. Inacabada deverá ser a fala imaginada, meta inalcançável como as constelações. Além de todas as falas, a soma das falas; além da soma, o abismo, palavras tapam buracos. A luta é com Proust em busca do tempo perdido. A palavra "tempo" é procurada num labirinto de milhares de palavras, trabalho de detetive, de operário. A busca leva a mesas de café, a bistrôs, por meses. O "tempo" de Proust retorna em sua materialidade verbal (mot), perdido num universo de imagens, de evocações, de ideias, oceano de palavras, sete volumes de ficção truncada. Elida captura o tempo, cerca-o na palavra, coisa entre coisas: atores, marcos. Elida quebra o tempo em tempos, desmonta e remonta em Porto Alegre, em São Paulo, em Dublin, em toda parte. Temporal - esquizofrenia de palavras que tremulam isoladas - é obra exibida a esquizofrênicos, temporal é tempestade e o que passa, é tempestade que passa; por violento que seja, o temporal é transitório, temporal é o que se desprende da terra, o que retorna à terra. A passagem carrega o evento e o momento, o instante que venta, inventa. A palavra tremula bordada, exposta a chuvas e trovoadas. O tempo, mais forte que tudo, é inexorável, abala hierarquias. O humano fulgura no gesto heroico, trágico. A mão que resgata os frascos não restaura o passado (fabricação da beleza), proclama o desgaste, o insucesso do instituto de beleza. Elida expõe o malogro, a verdade está no inútil, a desordem é o destino da ordem. O tempo, mistério para Tomas Mann, é corpóreo nas mãos de Elida.

 


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Condição humana

Falas inacabadas define a condição humana. Falas de vários tempos, sem princípio nem fim, acumulam-se em camadas cronológicas, geográficas, geológicas; silenciadas, soam em outros falantes. O corpo fala em lágrimas de criança que deixam marcas em superfícies brancas, o golpe de asas desenha no tecido da memória numa corrente amarelada que se curva como águas de outono. O café atravessa o coador e o consumidor, num e noutro continente o líquido passa, mancha, recorda. Lembranças de momentos vividos, dentro e fora se espelham, aproximam-se, fundem-se, imagens imprecisas recordam inusitadas cartografias de superfícies visitadas, borradas pela distância no tempo e no espaço, o tempo corrói o percorrido, o tocado, o absorvido.

Ulisses, no mundo dos mortos, ao envolver nos braços a imagem da mãe, abraça sombras, Elida revive a mãe - Ida (ida, partida) - nas meias de náilon, a sombra venerada ronda o colorido, transforma a veste em pele, em vida, Inda ecoa na Odisseia de Homero. Stephen Dedalus, no passeio matinal pela orla marítima, coberta de cascalhos, observa os passos, vem-lhe à mente reflexões em outra língua, nacheinander (sucessivas), nebeneinader (simultâneas); o som distante, a imagem ausente desembocam no lugar em que os pés se movimentam, o sentido ritma no andar; sem além, o vazio aponta um sentido que se esvai, a língua estranha, o distanciamento, a palavra extraída da origem (mãe) dispõe-se a tudo, sem limites, em horizontes prováveis. Os horizontes prováveis migram a uma fita métrica, guardada num estojo. Em lugar de números, alinham-se verbos no infinitivo, retirados de um livro de Haroldo de Campos. A fita métrica, lembrança do trabalho de Ida, a mãe, mede partes do corpo: pulsos, braços, pernas, cintura, peito. Os verbos projetam o corpo a rumos infinitos. Passa-passará. Passa-se a ferro para alisar o pano; se as mãos de quem maneja o ferro se distraem, marcas mais ou menos profundas assinalam divagações. Pessoas distraídas ocupam-se com outras coisas - são tantas! Mãos vitalizam coisas; panos sofrem, gritam, choram. Lágrimas de criança são coisas mínimas ou acontecimentos fundadores, fundamentais? Conflitos com o ambiente, com o mundo explodem em lágrimas. Lágrimas recolhidas pontilham aflições ao longo do caminho. Lágrimas individualizadas requerem respostas precisas. Em Doador, objetos doados se doam na dor: despertador, ralador, espremedor, prendedor, grampeador, marcador, abridor, tomador, calculador, aquecedor... Objetos vêm e somem; fora de uso, ingressam na arte; em lugar do usuário, o doador, o doar não se desgasta no uso; redimidos do uso, objetos vivem no doar, no doer, na dor; a ausência aviva a dor. Em Manicure, o belo se liquefaz em produto de beleza, desaba em lixo, em nada. O gesto de redimir os frascos, em dispô-los ao acaso, acompanha a impossibilidade de deter o desgaste. Em A vida somente à margem, desfilam palavras em mente: infelizmente, imediatamente, relativamente, terrivelmente, profundamente, corajosamente... O que se diz mente ( Lacan: Qu´on dit ment.), condimenta (Lacan: condiment). "Profundamente" mente por negar a soberania da superfície, a superfície mente por esconder o profundo, palavras povoam a mente, mentam na mente, mentem na mente e na fala, palavras vivem à margem, nascem e morrem na corrente da vida.

 


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"Carta ao Pai, 2017"

Elida cita Carta ao pai, obra que Franz Kafka humaniza o Chefe da Horda freudiano. O pai do narrador se expõe gigantesco, musculoso ao menino franzino; prepotente, humilha mesmo quando elogia. Se diz: "você pode fazer o que quiser", dá ironicamente a entender que o filho inútl nunca será capaz de igualá-lo. A mãe, submissa à empáfia do marido, socorre amorosamente o filho arrasado, o pai ferino subordina assim até gestos de afeto. A tirania paterna envenena toda a vida familiar, irmãos e irmãs vegetam sob a mesma tirania. A artista, em Elida Tessler, num gesto de rebeldia desmonta meticulosamente uma máquina de escrever, instrumento de trabalho do pai, fixa as peças, 617, ossos de um ser raro, com precisão palenteológica nos ímãs presos a uma mesa de ferro. Em movimentos de insurreição dadaísta, a artista se rebela de todo confinamento, venha do passado ou de outras circunstâncias: engrenagens, cálculos, números, tempo. Inventando um mundo livre de subordinações, Elida faz girar as 44 hastes da máquina de escrever em 22 relógios; convertidas em ponteiros, as hastes, à maneira de pernas de bailarinas, ritmam o espaço e a vida.

 

Sangue

O Fausto de Goethe, em um pacto com o demônio, assina o documento verbal com o sangue das próprias veias, troca a vida eterna por alguns momentos de prazer. O romance, Meu nome é vermelho, de Orhan Pamuk termina com esguichos de sangue que se erguem cintilantes no corpo do demônio branco. Elida Tessler embebe a pena nessa substância rubra para riscar as últimas letras da narrativa. Terminado o papel, os riscos avançam no espaço vazio; registrados em cinco gravuras metálicas, riscos que não significam nada, riscos que são significantes (mots) buscam imprevistas significações (paroles). Meu nome ainda é vermelho, título da obra, retém "Inda" (Ida), a mãe que se fez sombra dissolve-se em nada, lugar em que a vida se refaz.

 


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Mistério

Em Ist orbita, orbitam palavras proferidas à urbe e ao orbe; descentradas, vagam como os versos cantados por Orfeu para recuperar Eurídice, perdida no invisível ( hades); captadas por aparelhos, palavras soam misteriosas. Elida as encerra numa enciclopédia de páginas negras. Os consulentes, munidos de luvas, aproximam-se cautelosos para surpreenderem poemas escondidos por muitos e muitos espaços escuros (hades). O mistério já estava em Claviculário, obra distribuída em estojos que guardam chaves individualizadas por nomes buscados em T.S.Eliot, em Guimarães Rosa, em James Joyce... O segredo e o desvendamento concentram-se no mesmo instrumento, faces do real, a realidade que nos originou e nos limita. A vida é feita de lances de um homem que não sabia jogar, não sabe, nunca saberá: aposta, ganha, perde. Ganhos e perdas movem o jogo da vida, ameaçada, finda, recomeçada.

 

 

Invenção

Elida penetra em Dialética da duração de Gaston Bachelard, mergulha para desmontar. O dadaísmo, arremesso ao acaso, sobe à consciência. Destaca as palavras que indicam a passagem do tempo. De acontecimento cósmico, de categoria subjetiva, o tempo multiforme assume a posição de autor, marca substâncias que passam, movimenta o fixo em ritmos duma vida a outras vidas: vívidas, vividas, visíveis, invisíveis, mortas. Dubling apanha a ação, o movimento na ficção de Joyce. Garrafas arrolhadas guardam palavras, garrafas evocam líquido e vida em James Joyce e Elida Tessler. O deserto consome, em Desertões, vidas, sonhos, livros; cômoros de areia arredondam-se em horizontes móveis de quem passa, de quem passará, de quem já passou. A voz soa no deserto em vidas secas, desertas, deserdadas, lupas agarram anotações marginais, sinais de quem se deteve e partiu. Intuitiva é a gramática da arte, exploração, normas fugidias, indefiníveis, busca persistente, gramática de horizontes prováveis, aproximação e distanciamento de errantes. Palavras, gravadas em prendedores de roupa pendem. Recolhidas, ao acaso, de inúmeros escreventes, de muitos lugares, em várias línguas, misturam níveis de lembranças, esperanças, desejos, desesperos. A proximidade apresenta-se caótica como a das multidões de rostos apagados no movimento de multidões. Vasos comunicantes? A comunicação é só material. Os fios conectam solidões. Em lugar da imitação, a aproximação, o distanciamento, a colaboração, a celebração.

 

 

Recebido em: 25/08/2017
Aprovado em: 10/09/2017

 

 

* Galeria de Bolsa de Arte. São Paulo, 2017.

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