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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.10 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2018v1p.122 

RESENHA

 

Histórias de vida da Mangueira

 

 

Benyounès BellagnechI; Tradução: François LégerII

IEditor Geral da revista Les IrrAIductibles, Universidade Paris 8. Diretor da Coleção « Transductions » Universidade Paris 8. Endereço: 2 Rue de la Liberté, 93526 Saint-Denis, França. E-mail: benyounes3@wanadoo.fr
IIProfessor de francês da Aliança Francesa e do Liceu Molière (Rio de Janeiro). E-mail: francoisleger7@hotmail.com

 

 

 

Resenha do livro de Lucia Ozorio. La favela de Mangueira et ses histoires de viés en commun. Travailler avec les périphéries. Paris. Edition Diffusion. 2017. 210 pgs

A primeira leitura de um trabalho de pesquisa nos leva a descobrir o que o autor quer transmitir ao leitor em termos de conhecimento, estilo, método de pesquisa, informação. O leitor é assim confrontado com a vontade do autor: tentativa de sedução, buscando aprovação e adesão. No entanto, quando o leitor deve dar conta de sua leitura do livro - o que é meu caso - ele deve mobilizar todos os meios à disposição para fornecer uma interpretação - o mais próximo possível do conteúdo do livro em questão.

Primeiro, quero enfatizar que, com a autora Lúcia Ozorio, compartilhamos o que chamamos de comunidade de referências, o que é uma vantagem tanto para ler, como para compreender como compartilhar com outros leitores nossas propostas e idéias. No entanto, embora este tipo de comunidade facilite a comunicação, não se opõe à particularidade e singularidade de cada autor-pesquisador, e esse é o aspecto que vou tentar relevar nesta minha leitura.

O livro A favela da Mangueira e suas histórias de vida em comum, trabalhando com as periferias é apresentado em duas partes: a primeira que podemos qualificar como teórica, com um rico e diversificado dispositivo conceitual e multi-referencial; uma segunda parte dedicada ao que eu chamo de atores da pesquisa e a suas histórias ilustradas com muitas fotos. Esta é apenas uma primeira impressão, porque as duas partes não são apenas sucessivas ou paralelas. Existe, de fato, um vínculo dialético entre teoria e prática, entre as duas partes, um vínculo reforçado pelo envolvimento do pesquisador em seu campo de pesquisa.

No entanto, deve-se notar que o que me estimulou para trabalhar com as favelas foi a condição destas de serem periféricas. Uma estética da existência, com modos de vida tão particulares, formas únicas de resistência à segregação, brotam desses espaços constituindo uma comunidade singular com sua cultura que marca sua diferença na cidade (p. 20).

Afastando-se da pesquisa clássica que consiste em abordar de modo distanciado de seu campo, com suas teorias e métodos aprendidos em bancos acadêmicos e aplicados cegamente em qualquer terreno, Lúcia Ozório procede de modo bastante diferente. Lá onde o pesquisador clássico como dizia com frequência René Lourau, pensa nos pobres com a mão estendida para o Estado e para o Capital, Lúcia Ozorio, na sua implicação nos adverte desde o início que sua pesquisa não obedece a nenhuma ordem; sua pesquisa é um tipo de auto-encomenda, parte de

um processo de pesquisa iniciado há anos: "Comecei a trabalhar como pesquisadora em Mangueira em 2003 e continuei até 2014" (p20). Trata-se de um trabalho de pesquisa que se increve num proceso muito mais antigo de pesquisa começado em 1990 com a comunidade também conhecida como favela do Parque Royal. .

Tive também a oportunidade de me expressar sobre a questão das periferias no prefácio de um outro livro de Lúcia Ozorio sobre este trabalho com o Parque Royal: Pensar as periferias, uma experiência brasileira. Se o caráter universal da contradição centro-periferia é confirmado pelo saber instituído que considera as periferias apenas como resíduos da história e do progresso, fontes de inquietação, violência e pobreza com suas parcelas de epidemias, doenças, insalubridade; o saber anti-institucional tenta mostrar outra face e outra realidade das periferias, contextualizando-as numa luta político - histórica. Onde o saber instituído se esforça para se afastar das periferias e empurrá-las às margens da sociedade, Lúcia Ozório coloca essas periferias no centro da pesquisa e da política. Para fazer isso, se inspira na noção de biopolítica de Michel Foucault analisada por Antonio Negri.

Dando a importância que as periferias têm na cena social, a autora explica como os modos de vida dos seus habitantes se inscrevem numa experiência existencial. Não se trata unicamente de uma experiência individual como poderiam sugeri-lo as histórias de vida pessoais ou biográficas, trata-se notadamente de experiências coletivas vividas em comum.

Esta pesquisa biográfica comunitária é um momento especial de experimentação. Todos nós que participamos deste processo, incluindo aqueles que são biografados, compartilhamos uma comunidade de destino, como diria Jacques Loew (1959), o que possibilita a compreensão da condição humana expressa nas narrativas" (p. 20).

A autora acrescenta:

Neste processo biográfico vivido com Mangueira, os participantes compartilham uma espécie de experimentação: a comunicação que pode dar elementos aqueles que acham difíceis as conexões entre as práticas coletivas e as experiências individuais. Como Michel Foucault responde a Ducio Trombadori, embora a experiência seja qualquer coisa que fazemos sozinhos, ela só pode ser feita se escapar à pura subjetividade e os outros podem atravessá-la, cruzá-la. Uma particularidade desse processo em Mangueira é a potência das fontes populares de narração de histórias de vidas, a matéria-prima deste trabalho (p 40).

Assim se fazendo, a experiência se torna coletiva e as histórias em comum dos atores dão lugar a uma força de vida política, qualificada pela pesquisadora, de uma comunidade de destino que reúne pesquisadores e outros atores através das histórias da vida.

Houve um tempo em que o conceito de comunidade me incomodava como leitor francês que sou: na cultura republicana jacobina, a noção de comunidade muitas vezes se refere ao comunitarismo - que é um fecchamento em si mesmo e em uma identidade cultural, religiosa, territorial ou linguística. Desde esta perspectiva evocar comunidade representa um perigo para o Estado que só reconhece os indivíduos - cidadãos, isolados uns dos outros, falando a mesma língua, tendo a mesma cultura e habitando o mesmo território e todos sob o controle de um Estado central. Assim as comunidades estão sob o poder do instituído através de instituições do Estado ou subordinadas a este. Uma comunidade que tenta se afirmar ou apresentar suas particularidades seria "perigosa" em relação à sociedade. Do ponto de vista político, esta perspectiva anima muitas propagandas ideológicas de direita e de extrema-direita na França em particular e na Europa em geral. Opondo-se a esta compreensão, podemos considerar que Lúcia Ozório faz uma ruptura conceitual com a visão ideológica dominante - que é um obstáculo à pesquisa sobre a problemática da comunidade -, usando o conceito de comunidade em um sentido dinâmico e histórico, colaborando com diferentes grupos de diferentes nacionalidades que trabalham com a questão das histórias da vida em comum da comunidade.

As histórias de vida comunitária são uma estratégia de abertura entre experiências que ajuda a compreender um comum-experiencial-intercultural que trabalha o cotidiano da Mangueira e que atravessa o processo de narração de histórias de vida de seus habitantes. O que realmente falta na prática política é a preocupação com o cotidiano e a riqueza da experiência que traz (p. 40).

Na verdade, a comunidade, que para alguns é uma fonte de inquietações e perigo, torna-se, no contexto deste trabalho de pesquisa, um domínio de vida, criação e encantamento do mundo. Este trabalho coletivo abre uma perspectiva e horizontes de vida e pesquisa longe da visão pessimista mencionada acima.

O cotidiano de Mangueira é o lugar político desta história, que afirma outra forma de tempo, a história do tempo presente. As pessoas de Mangueira com suas histórias de vidas constroem uma história de um tempo, presente, aberto a uma prática comum como práxis aberta da existência (M. Certeau, 1990, A. Negri, 2006, L. Ozorio, 2008, 2016) (p. 40).

Em comparação com o trabalho de pesquisa no Parque Royal, a pesquisa com Mangueira introduz a noção de dispositivo, que aparece com frequencia no texto. Note-se que, no âmbito do Grupo de Análise Institucional de Paris 8, ao qual Lúcia Ozório pertence, dois números da revista Les IrrAIductibles1 foram dedicados à questão dos dispositivos. Relevamos na pesquisa de Lúcia Ozório duas aplicações desta noção: o dispositivo como um conjunto de elementos materiais e humanos usados pelo pesquisador para realizar suas pesquisas em um determinado campo; o dispositivo com um segundo significado, mais global, abrangendo tudo o que é colocado à disposição pela comunidade na biopolítica, isto é, na sua realização existencial.

Embora dotada de uma impressionante bagagem conceitual e metodológica, e inspirações em Georges Lapassade - com quem teve a oportunidade de trabalhar - que deu especial importância ao trabalho de campo como fonte e propósito da pesquisa, Lúcia Ozório coloca em relação ao seu campo de trabalho mais perguntas do que certezas. Quando do seu primeiro dia em Mangueira, chamou-lhe a atenção as crianças que soltavam pipas no alto do morro. Este encontro lhe permite trabalhar a problemática da comunicação e a abertura da favela em relação a outros bairros da cidade e do mundo. Assim, o caminho de pesquisa que será traçado é sugerido por Mangueira. Perguntado sobre como lidar com questões de pesquisa sobre a favela, Celso dos Reis responde:

O mundo precisa conhecer as histórias das pessoas daqui. Há aqueles que pensam que as únicas atividades em Mangueira são o tráfico de drogas e a escola de samba. No meio de tudo isso, há a comunidade que ninguém conhece. Nós vamos fazer Papos de Roda (p. 57).

Assim, o caminho da pesquisa se precisa e o dispositivo das histórias de vida em comum é definido.

Sua implicação como pesquisadora se concretiza com sua integração no Papo de Roda, participando das reuniões como membro de pleno direito, participando das discussões, gravando as histórias da vida em comum, tirando fotos dos atores da pesquisa que são os habitantes de Mangueira. "A foto é reivindicada como um aliado de suas histórias de vida" (p. 77). Os lugares de encontro são as casas que se tornam lugares comunitários, o tempo do encontro. Esse modo de fazer estes lugares de encontro reflete a abertura da comunidade da Mangueira e a oportunidade de compartilhar não apenas suas histórias de vida, mas suas próprias vidas em comum. Lúcia Ozório mostra que a casa em Mangueira é um analisador que se refere a uma forma de autogestão do habitat, como confirmam as histórias que evocam a construção e história das casas onde os Papos de Rodas se realizam.

Lendo os fragmentos das histórias de vida em comum dos moradores de Mangueira, deparamo-nos com um saber comunitário rico, aberto, multi-referencial, multicultural, intergeracional, saber difícil de ser reproduzido nestas notas de leitura que ora escrevo. Na verdade, este dispositivo histórias de vida em comum revela a diversidade de histórias de cada um dos participantes, que são de origens diversas. Citemos Mama Africa, que se refere à "importação" de escravos pelos colonizadores portugueses, escravos cujos descendentes podem ser encontrados, muitos, bem mais tarde vivendo nas favelas. Portanto, não se trata apenas de um deslocamento de seres humanos, mas também de modos de existência e culturas: o samba é o exemplo mais conhecido do continente africano; mas não devemos esquecer outras práticas, religiosas, médicas, culinárias etc. Esta rica memória é ressuscitada nas histórias de vida em comum dos participantes dos Papos de Roda. Outros participantes nestes evocam suas origens de diferentes regiões do Brasil, regiões que não são menos ricas em material cultural e artístico. Este magma de pertenças e referências históricas, essa diversidade cria entre os habitantes uma riqueza cultural que é inestimável a nossos olhos. A música, a dança, a poesia e outras expressões artísticas criam laços de amor e solidariedade entre as pessoas de Mangueira que dão às suas vidas, no cotidiano, uma força de amor e esperança na sua capacidade de criar uma vida comum, longe dos clichês do saber instituído sobre as favelas.

Este livro de Lúcia Ozório não se contenta em trabalhar a biopolítica ém Mangueira, mas abre oportunidades de pesquisa em todo o mundo sobre as questões relativas às histórias de vida em comum e sobre as comunidades.

 

Referências

Ozorio, L. Pensando nas periferias, uma experiência brasileira, para um novo tipo de política pública de construção do comum. Coll. Pesquisa latino-americana. Paris: L'Harmattan, 2014.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 05/12/2017
Aprovado em: 25/04/2018

 

 

1 IrrAductibles n º 6, Dispositivos I, IrrAductibles n º 7, Dispositivos II, 2004, 2005.

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