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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.10 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2018v2p.196 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Mitigação da perda na população sênior participante de programas sociais

 

Loss mitigation in the elderly participant of social programs

 

Mitigación de la pérdida en la población mayor participante en programas sociales

 

 

João Pedro GasparI; Carlos Jesus GilII; Maria Fernanda GasparIII; Carlos Mendes RosaIV

IProfessor e Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra. Endereço:Rua do Colégio Novo, s/n, Coimbra, Portugal E-mail: gasparjp@fpce.uc.pt
IIProfessor; Investigador do Instituto de psicologia cognitiva e desenvolvimento humano e social da Universidade de Coimbra. Endereço:Rua do Colégio Novo, s/n, Coimbra, Portugal E-mail: gil3173@gmail.com
IIIPsícóloga e Investigadora do Instituto de psicologia cognitiva e desenvolvimento humano e social da Universidade de Coimbra. Endereço:Rua do Colégio Novo, s/n, Coimbra, Portugal E-mail: fernandagaspar.consulta@gmail.com
IVProfessor Adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Tocantins Endereço: Av. Juraídes de Sena Abreu, s/n - Setor Buritizinho, Arraias - TO. CEP: 77330-000 carlosmendesrosa@gmail.com

 

 


RESUMO

A perda causa dor, a maior ou menor intensidade da mesma dependerá sempre do indivíduo que a sofre. Sem uma aceitação, por parte da vítima, as fases agudas do sofrimento surgirão com elevada frequência, ao ponto de se colarem, de deixarem de ser fases para passarem a ser um estado permanente. A palavra apaziguadora, o gesto gentil e pleno de humor, os ouvidos prontos a escutar - recursos disponíveis no acolhimento residencial sênior -, constituirão uma poderosa solução sinérgica capaz de atenuar o sofrimento inevitável. Com este artigo, pretendemos demonstrar isso mesmo.

Palavras-chave: ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL; PERDA; MORTE.


ABSTRACT

The loss causes pain, and its higher or lower intensity always depends on the individual who feels it. Without acceptation by the victim, the acute phases of suffering will appear with high frequency, eventually becoming attached and turning into a permanent status instead of phases. The pacifying word, the gentle and humorous gesture, the listening ears - available resources in senior residential care -, constitute a powerful and synergistic solution, capable of attenuate the inevitable suffering. With this article we aim to demonstrate it.

Keywords: RESIDENTIAL CARE; LOSS; DEATH.


RESUMEN

La pérdida causa dolor, la mayor o menor intensidadde la misma dependerá siempre del sujeto que la sufra. Sim una aceptación, por parte da la víctima, las fases más agudas del sufrimiento surgirán con elevada frecuencia, de forma a pegarse, dejando de ser fases para pasar a ser un estado permanente.
La palabra apaciguadora, el gesto gentil y pleno de humor, los oídos listos a escuchar - recursos disponibles en la acogida residencial de la población mayor -, constituyendo una poderosa solución sinérgica capaz de aminorar el sufrimiento inevitable. Con este artículo pretendemos mostrar eso.

Palabras Clave: ACOGIDA INSTITUCIONAL; PÉRDIDA; MUERTE.


 

 

"Um dia... pronto! Me acabo.

Pois seja o que tem de ser.

Morrer: Que me importa?

O diabo é deixar de viver"

(Mário Quintana)

 

Introdução

A filosofia já foi considerada, no passado, a aprendizagem da morte. Para Sócrates, filósofo era aquele que sabia morrer. Mais tarde, Kierkegaard explorou a perspetiva "existencial", descrevendo a morte como algo que para cada um de nós é certo, mas cuja hora é bem incerta.

Centrando-nos na Europa Ocidental e no último milénio, a familiaridade com a morte - chegando a ser um acontecimento público, no início da Idade Média - retirava-lhe algum dramatismo e emoções excessivas. Nessa época, ao pressenti-la, o moribundo recolhia-se, normalmente acompanhado por parentes, amigos e vizinhos, pedindo perdão pelas falhas e legando os seus bens.

Muitos corpos eram enterrados nos pátios das igrejas - que também eram palco de festas populares e feiras, levando à coexistência, no mesmo espaço, de mortos e vivos. Até meados do século XIII eram mesmo permitidos jogos, danças e feiras nos cemitérios, mas a proximidade entre mortos e vivos começou a incomodar. As sepulturas, anónimas em muitos casos, passaram a ser identificadas por inscrições, efígies e retratos, mostrando a importância de preservar a identidade mesmo após a morte.

Ariès evoca que, a partir do século XVIII, a morte assumiu um sentido mais dramático, como uma fatalidade que arrancava o Homem do seu quotidiano e da sua família. Passou-se para uma fase de luto exagerado, em que a família passou a ser central, em detrimento do falecido. Mais tarde, a morte do próprio era desvalorizada em função da morte do outro, com as famílias a ocultarem o verdadeiro estado de saúde de entes moribundos.

No último século, a medicina mudou a representação social da morte, morrendo-se cada vez menos em casa, entre parentes, antes no hospital, sozinho.

Segundo o antropólogo britânico Geoffrey Gorer, em seu ensaio acerca do que chamou de Pornografia da Morte, atualmente a morte e o luto são tratados com o mesmo pudor com que os impulsos sexuais eram tratados há um século atrás.

Noutras culturas, a tentativa de relativização da perda é igualmente persistente. No Tibete, por exemplo, conta uma lenda que quando uma mulher viu o seu filho, ainda bebé, adoecer e morrer nos seus braços, sem que ela pudesse fazer nada, saiu pelas ruas em desespero, implorando que alguém a ajudasse a encontrar um remédio que pudesse curar a morte do filho.

Como ninguém podia ajudá-la, a mulher procurou um mestre budista, colocou o corpo da criança a seus pés e explicou-lhe a profunda tristeza que sentia. O mestre respondeu que havia uma solução para a sua dor. Ela deveria voltar à cidade e trazer uma semente de mostarda, nascida numa casa onde nunca tivesse ocorrido uma perda.

A mulher partiu, esperançosa, em busca da semente. Foi de casa em casa. Mas sempre a ouvir as mesmas respostas: "Muita gente já morreu nesta casa"; "Desculpe, já houve morte em nossa família"; "Aqui nós já perdemos um bebé também." Depois de percorrer a cidade inteira sem conseguir a semente de mostarda pedida pelo mestre, a mulher compreendeu a lição. Voltou e disse: "O sofrimento cegou-me a ponto de eu imaginar que era a única pessoa que sofria nas mãos da morte".

 

Ser velho no Ciclo Vital

Tanto o individuo como a família passam por estádios de desenvolvimento que os conduzem ao crescimento e à transição para um novo nível necessário e importante no ciclo vital. Há uma expectativa social de que todas as pessoas cumpram com êxito as tarefas em cada um dos estádios. O que acontece frequentemente é a sociedade alienar-se do facto de a pessoa idosa, na última parte do ciclo vital, ter tarefas de desenvolvimento a cumprir, de forma a ser feliz e a ter qualidade de vida. É, portanto, significativo que sejam cumpridas todas as tarefas e que, para tal, o idoso disponha do apoio da família, da sociedade e dos profissionais que actuam na área. Terá desta forma uma velhice bem-sucedida usufruindo do prazer de ser e de viver, encarando a morte como a última tarefa a realizar com sucesso.

A Teoria Psicossocial do Desenvolvimento (Erikson, E. & Erikson, J., 1998), considera que o desenvolvimento resulta da interacção de factores individuais e culturais, e que se processa ao longo de oito estádios onde cada um deles representa momentos críticos no desenvolvimento ao nível da maturidade cognitiva, crescimento físico, e da adaptação e integração impostas pelas permanentes exigências sociais. Em cada um desses estádios existe um conflito normativo perante o qual o indivíduo tem que optar por uma de duas posições antagónicas - momento de crise. É no último estádio - Integridade versus Desespero -, que para Erikson é a partir dos 65 anos, que os indivíduos mais velhos precisam de analisar as suas vidas e aceitá-las para que lhes seja mais tranquilo mitigar a aproximação da morte. Os sujeitos que ao fazerem esta análise não encontram motivos para sentirem orgulho nem satisfação, tenderão ao desespero ao reconhecerem que o seu tempo passou e que já não têm oportunidades para concretizar novos projectos e alcançar novas metas. Erikson defende que a pessoa não deve chegar a esta fase da vida com a angústia de que "deveria ter feito" mais ou "poderia ter sido" melhor. A certeza de que viveu uma vida profícua trará uma melhor aceitação da morte que, imperiosamente, se avizinha. Porém, Erikson reconhece que é inevitável um pouco de desespero. Diz este autor que as pessoas têm necessidade de se lamentar não só pelos próprios infortúnios e oportunidades perdidas, mas também pela "vulnerabilidade e transição da vida".

Aqui cabe um aporte psicanalítico para nos mostrar que somos seres incompletos por natureza. De sorte que sempre teremos em nosso horizonte algo que desejamos ter ou fazer e, forçosamente, não possuímos ou pudemos realizar. É da ordem do psiquismo humano, desde o primeiro momento em que subvertemos a necessidade fisiológica e a transformamos em demanda (quase sempre de amor) estarmos insatisfeitos com a nossa condição de seres faltantes (Lacan, 1954).

Robert Peck (1968) expande a teoria do desenvolvimento psicossocial de Erikson e descreve três ajustes psicológicos que considera importantes para a fase final da vida:

- Definição mais ampla do ego VS preocupação com papéis de trabalho - São aqueles indivíduos que definiram as suas vidas pelo trabalho, direccionando o seu tempo à conquista de méritos profissionais pessoais;

- Superioridade do corpo VS preocupação com o corpo - São os indivíduos para quem o bem-estar físico é essencial para serem felizes. Poderão ficar mergulhados no desespero com a chegada da velhice e, com ela, o aparecimento de dores e de limitações físicas. Segundo Peck, é necessário que as pessoas desenvolvam ao longo da vida aptidões mentais e sociais que vão aumentando com a idade.

- Superioridade do ego VS preocupação com o ego - Certamente o mais penoso e mais importante ajuste para o idoso é a inquietude com a vicinalidade da morte. O reconhecimento do significado imperecível de tudo o que fizeram, ajudará a superar a preocupação com o ego e a continuarem a contribuir para o bem-estar próprio e dos outros.

Um modelo psicológico pioneiro, precursor de ideias mais contemporâneas, como a teoria do curso de vida, surge através de Charlotte Bühler (1990), que defende que a vida da pessoa está em constante alteração devido a factores biológicos, psicológicos e sociais. Bühler procurou definir as várias fases do desenvolvimento humano, desde o nascimento até à morte, e concluiu que cada fase é caracterizada por mudanças em termos de acontecimentos, atitudes e realizações no decorrer do ciclo de vida. Nesta teoria, o desenvolvimento humano processa-se por fases que abrangem todo o ciclo vital, conjugando a idade cronológica com processos que marcam momentos de expansão (infância), culminância (vida adulta) e contração (velhice), sendo o amadurecimento psicológico orientado e organizado por objectivos ao longo de todo o percurso.

Por volta dos 65 anos inicia-se a quinta e última destas fases, que é marcada, consoante os indivíduos, por um período de calma após a vida ativa e a que corresponde, também, uma decadência física, o mesmo acontecendo coma agilidade mental. Neste momento é nítida a consciência de que já não há condições para a realização de grandes objectivos pessoais e, por isso, muitas vezes o idoso reformula-os e confina-os a um plano mais tangível e imediato. Os estudos desta autora mostraram que o sentimento de não se ter alcançado e cumprido de forma satisfatória os objectivos, será um factor mais relevante que o declínio físico, no desencadear de problemas de adaptação na velhice.

A reorganização do relacionamento do idoso com o tempo define-se por uma redução do futuro, isto é, contrariamente ao jovem, o idoso transporta uma longa vida já vivida e expectativas muito limitadas para serem vividas. Explica-se, assim, a concentração por vezes exacerbada no passado e uma notória desesperança nos projectos existenciais futuros.

A sensação de perda das pessoas a quem se ama, da beleza, do vigor, da saúde e da utilidade gera no idoso a imagem do "espelho quebrado". O final da vida é um momento em que o respeito pela privacidade e pela dignidade é imperativo. A institucionalização aumenta nos idosos o sentimento de alienação e obriga-os a entregarem a outros o controlo da sua vida e da sua morte, o que fere a sua autoestima e fragmenta a sua identidade. Tornam-se pessoas anónimas, idosos entre outros idosos.

 

Custa sempre, mas custa menos

A palavra morte, só por si e pela certeza que encerra, a de que todos a alcançaremos, paradoxalmente sem a procurar - não será ela a alcançar-nos -, já transporta um peso imenso, uma carga pestilenta.

É geralmente aceite que mesmo a mais mental e racionalmente cuidada das pessoas, se ama mesmo, se é amigo de facto, jamais está preparada para a perda irreparável, para o afastamento eterno. A ausência far-se-á sentir, de forma mais intensa, ou de modo mais mitigado, ao longo do tempo. A vida e os constantes eventos que a todo o momento nos apresenta, fará eclipsar por períodos aquela memória, porém, de quando em quando, uma revisita... e com ela a saudade triste, a triste, que também a há alegre, mas essa não cabe na mente humana nesses lúgubres momentos. Para Albert Camus, existe no ser humano um sentimento de revolta e de absurdo perante a inevitável finitude "uma existência metafisicamente absurda" (Camus, 1942).

Freud (1915) também nos dirá que nossa sociedade não sabe lidar com a inexorabilidade da morte, de sorte que nosso psiquismo não possui nenhuma representação que possa dar conta desse fato. Talvez por essa razão tenhamos uma proliferação cada vez maior de explicações míticas e religiosas para a finitude. É a necessidade de criar subterfugios que possam nos ajudar a aceitar (ou não ter que pensar em) nossa condição de mortal.

Verifica-se um choque entre o desejo que cada homem tem em durar, durar muito, e a evidência da morte, por vezes prematura. O choque é tanto maior quanto mais profundo for o pensamento acerca de, pois com ele aumenta a clareza do inelutável, da guerra - batalha quando muito - que não valerá a pena empreender. Até ao momento em que verifica o absurdo com que tem que conviver, o homem racional, mental, calculista, vive em função do futuro. Afirmamos mesmo que sob a ditadura deste, negligenciando não raro o presente. Objetivos, metas, finalidades, sempre com a intenção de que mais tarde é que será, será o alcance da meta, uma meta que levará, pensa, ao pódio maior, uma vida plena e longa, merecida pelo trabalho realizado nos incontáveis presentes preteridos. Não pretendemos com isto dizer que não os viveu, não, o homem vive o efêmero presente, sim, labora no tempo, sim, contudo o seu desiderato encontra-se calculadamente no futuro. E este modo de vida é intrinsecamente intenso até ao momento da epifania: a certeza de que é finito, o seu tempo; um tempo por vezes curto demais, testemunha-o, por todo o orbe e com elevada frequência. Depois da revelação, a sua forma de estar na vida muda, não tanto como seria suposto perspetivar, mas muda. O absurdo que vê na temporalidade que caracteriza a sua permanência na Terra toma por vezes proporções gigantescas, daí a revolta. Porém, e lembrando Nietzsche, quando olhamos demasiado para um abismo, o abismo olha para nós. Todavia, "reagir à condição de mortal é manter-se pleno de humanidade, posto que a consciência da condição humana é, também, a consciência do envelhecimento e uma natural reação ao mesmo"(Vilhena, Novaes & Rosa, 2014). O homem, tanto quanto se sabe, é, no reino animal, um solitário, em termos de consciência da morte.

Ainda assim, e segundo Freud, é impossível imaginar a nossa própria morte e, se tentamos fazê-lo, percebemos que ainda estamos presentes como espectadores. Pois como criaturas civilizadas, tendemos a ignorar a morte como parte da vida."Uma convenção inexplícita faz tratar com reservas a morte do próximo. Enfatizamos sempre o acaso: acidente, infecção, etc., num esforço de subtrair o caráter necessário da morte. Essa desatenção empobrece a vida" (Freud, 1916).Por isso, a psicanálise pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê na sua própria morte, no inconsciente cada um de nós está convencido da sua própria imortalidade.

Um ano antes (1915a) escreveu sobre um episódio em que caminha ao lado de um amigo poeta e ouve suas lamentações acerca da transitoriedade da beleza neste mundo, onde, segundo este, tudo que é belo terá seu fim um dia. A partir deste diálogo escreve um texto, quase poético, estendendo as reflexões sobre o tema da transitoriedade para outros aspectos da vida humana. Segundo o inventor da psicanálise valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo, assim sendo, é exatamente porque a nossa vida é transitória que esta pode conter tanta beleza e importância; pelo simples fato que ela passa. Nesse sentido, pouco vale ficar pensando sobre a finitude da existência, ao contrário, mais interessante é guardar para si essa inexorável certeza e tentar lançar a sorte no aproveitamento de cada momento que ainda nos resta. Aqui podemos nos servir do delicado poema de Mário Quintana sobre sua consciência da morte e das argruras da vida "Todos estes que aí estão; Atravancando o meu caminho, Eles passarão. Eu passarinho!".

Bem, se não fizermos uso da lógica pura, se não recorrermos ao silogismo, é certo que podemos sempre dizer que não sabemos se vamos morrer, pois outros, como nós, já morreram, mas nós não... e um facto é algo que não se desmente enquanto tal. Porém, tal apenas acontece com uma enorme e benévola força de vontade da nossa mente! À guisa de reforço da tese que defende ser o homem o único animal com consciência da morte, e a sofrer, portanto, com isso, lembramos que Schopenhauer acreditava que os animais - não humanos, leia-se! - apenas conhecem o presente, não possuindo experiência das dimensões temporais do futuro e do passado.

Os animais não sentem propriamente sequer a morte: só poderiam conhecê-la quando ela se apresenta; mas então, eles já deixaram de ser. Desse modo, a vida dos animais é um prolongado presente. Sem reflexão, eles vivem nele e nele sucumbem inteiramente. (Schopenhauer, 1844).

Ainda:

O animal só conhece a morte na morte: o homem, com a sua consciência, a cada hora se aproxima mais da sua morte, e isso torna a vida por vezes árdua até para aquele que ainda não reconheceu no todo da vida (...) esse carácter de permanente destruição. Principalmente por causa disso o homem tem filosofias e religiões. (Schopenhauer, 1819).

Freud (1915b) também nos ajuda a compreender esse horror à morte, na vertente clínica, ao afirmar que o inconsciente não possui representação alguma do que seria morrer, ou deixar de existir. A ideia da morte remonta às angústias impossíveis de significar que o bebê experimenta nos primeiros meses do seu desenvolvimento. O autor toca no tema mais uma vez em sua análise das sociedades, ao mostrar que um dos maiores medos do ser humano é ver o seu próprio corpo definhar e lhe trazer a infelicidade e o sofrimento.

Esta realidade que tanto medo produz em cada ser humano é, no pensamento de Schopenhauer, " A musa da filosofia." É ela, a morte - enquanto termo de cada um, e finitude de seres a quem se quer muito, portanto enquanto causa da perda de todos -, a razão da sua existência. O facto de o homem ser o único ser a saber, por antecipação, que um dia morrerá, faz dele o único animal metafísico. Sem a consciência da sua morte, socorrendo-nos novamente de Schopenhauer, nunca teria filosofado. Foi a sua condição existencial que lhe induziu essa necessidade.

 

 

O Homem sofre, para além do presente, também com as dimensões do passado e do futuro. É um ser gregário por natureza. E é-o porque tem mesmo que o ser. Não apenas porque não conseguiria materialmente sobreviver de outra forma que não a social, mas também pela enorme necessidade que sempre sente de partilhar, com fins de mitigação da dor, estas realidades transcendentais perturbadoras: a morte como inevitabilidade; o sentido da vida - este torna-se mesmo uma questão maior, uma procura fulcral. Nasce a filosofia, segundo Giacóia Júnior (2005), do espanto causado pelo destino incontornável da morte. Nasce a filosofia, e as respostas, sempre suscetíveis de confronto, começam a surgir. As inquietações, os desassossegos, esses persistem.

Então, o certo é que a ideia da morte, a nossa ou a de alguém que nos é querido, continua a provocar medos terríveis. E quanto mais sós enfrentarmos aquela ideia, ou o fato consumado da perda de alguém, maior é o sofrimento sentido.

A partilha sentida é, aliás, uma forma eficaz para a imprescindível ajuda: a família mais ou menos próxima; o grupo alargado de vizinhos e amigos, de membros da comunidade... A palavra apaziguadora, o gesto gentil e pleno de humor, os ouvidos prontos a escutar - tudo em alternância, sim, com momentos de austera e aturada reflexão, se o indivíduo quer e pode -, com o fim de atenuar o sofrimento inevitável. É neste contexto que, a nosso ver, constituem uma excelente solução as instituições sociais dirigidas à população sénior.

A conceção humana de felicidade encontra-se baseada em dois tipos de premissas: uma de natureza extrínseca, outra de natureza intrínseca. Quanto à premissa que baseia a felicidade em fatores extrínsecos, temos que o indivíduo a procura fora de si, contando encontrá-la em eventos externos à sua própria pessoa (Delumeau, 1997). Irá procurá-la no meio que habita, ou mesmo fora deste. Quando a mobilidade não é a melhor, por vezes longe disso - o que acontece com enorme frequência com a população que melhor cabe neste estudo -, o grupo próximo, um clube, uma Instituição de Acolhimento e/ou convívio serão ótimas soluções.

No que concerne à conceção de felicidade relacionada com a natureza intrínseca, Seligman (2009), entra na Psicologia Positiva para explicar o fenómeno. Embora não negue a influência de eventos externos, defende o conceito de bem-estar subjetivo, levando em conta, aqui, uma avaliação cognitiva, bem como uma outra afetiva que um indivíduo faz acerca da sua própria vida. Segundo esta perspetiva, é a partir do próprio esforço que o indivíduo consegue o seu bem-estar. De notar que mesmo aqui a ajuda externa, do meio, do grupo não é despicienda.

Outra corrente do pensamento psicológico que entende a elaboração das perdas como responsabilidade do próprio sujeito é a psicanálise. Segundo Freud (1915b), em seu célebre estudo sobre o luto, a pessoa não abandona uma posição de investimento afetivo (libidinal) sem que um substituto lhe acene no horizonte; e por se tratar de um investimento construído ao longo de uma história, que pode ser mais ou menos longa e intensa dependendo do caso, essa troca afetiva não pode ocorrer sem que haja um doloroso processo de aceitação e vivência da coisa perdida, a qual agora lança sua sombra sobre o eu enlutado.

A sombra do objeto amado e perdido que recai sobre o eu convoca-o a direcionar a maior parte de seus afetos e pensamentos (quando não todos eles) para o objeto perdido, com o intuito de mantê-lo próximo de si, ainda que seja só por mais algum tempo. A libido objetal que se direcionava para o mundo externo é revertida para o eu como forma de dar a mesma novo sentido, pela via das novas identificações que se formarão a partir de então. Identificações essas que têm por função desinvestir cada lembrança e cada afeto relacionados ao objeto faltante.

Esse processo, afirma Freud, é tão difícil quanto reposicionar um grande exército durante uma batalha. Um trabalho que leva tempo, desgata, faz sofrer e, no entanto, é absolutamente necessário. Apesar de nossa atual sociedade não parecer disposta a conceder tal período de luto a seus indivíduos, propalando uma falsa concepção de superioridade do humano em relação a suas perdas.

O efeito do discurso vigente — modulado pela lógica social do tempo útil que objetos, utensílios eletrônicos e pessoas devem ter, como se tudo tivesse um prazo de validade mais curto na sociedade moderna — tem profundo impacto na economia psíquica dos pacientes velhos, ao ponto dos mesmos afirmarem estar sofrendo de velhice. O termo velhice assume valor de significante, redefinindo a forma de o sujeito conceber a si mesmo e ao seu próprio sofrimento (Vilhena, Novaes e Rosa, 2014b).

No caso em questão podemos dizer que quando esta perda se dá em contexto institucional de programas sociais para seniores, a dor da ausência é menor, pois existe como que um diluir da mesma por toda a comunidade. Para o facto contribui também a realidade de uma contínua entrada de novos companheiros, de novos elementos da família alargada. É como que uma qualquer Lei da Compensação: partem uns, chegam outros - sem que isto signifique que os que chegam irão ocupar o lugar dos que partem. Depois, quando um ou outro se lembra do amigo ou da amiga que já partiram, há sempre este ou aquele que lembra o bom legado que deixou a quantos com ele/ela conviveram, o sentimento de um dever cumprido, e isto também ajuda a mitigar o elemento mórbido da saudade. Quando se trata de alguém que não se enquadra bem naquela caracterização, alguém cujo testamento não interessará a ninguém, as pessoas hão-de sempre conseguir uma lembrança que vale a pena; e quando esta não é de todo encontrada, então dirão: também estava a sofrer tanto que até foi bom ter partido. Todos estes diálogos, sempre mais intensos e mais frequentes em contextos institucionais do que em família, ajudam imenso à relativização da perda, mais, levam mesmo, não raro, à benévola compreensão da realidade que é a finitude.

Há ainda que levar em conta, nesta mitigação da dor causada pela perda, que é apanágio de ambientes de comunidades alargadas, que a compreensão/aceitação, ou não, da morte se encontra absolutamente ligada à crença religiosa de cada pessoa, ou à ausência de crença. Quem crê acredita sempre numa vida para além desta, logo relativiza com alguma facilidade, ou, no mínimo, com menor dificuldade do que quem não crê, em termos de uma religiosidade verdadeiramente espiritual e divina. Ora, em comunidades vastas e heterogéneas, se não todos, pelo menos alguns, quase sempre a maioria - até porque a idade, estamos em crer, traz consigo, a espiritualidade -, são religiosos, crentes em divindades, nomeadamente numa suprema, Deus. Ora, também aqui a mitigação da dor da perda é mais fácil do que em ambientes mais restritos, pois haverá sempre o senhor Y e a senhora X que lembrarão a vida que há-de vir, e que essa sim, é que verdadeiramente conta, pois será eterna. É ajuda de monta para quem crê, melhor que qualquer medicamento direcionado à mente.

Depois, quando quem sofre uma perda vive em contexto familiar mais facilmente se lembra das rotinas que tinha com quem partiu, mais sofre, portanto, com a ausência. Em comunidade alargada já estas rotinas não são tão sentidas, pois outras, ou as mesmas com outros terão lugar, relativizando aquelas.

 

Considerações finais

Quando somos atingidos por uma perda próxima, compreende-se uma tendência para um certo retiro, eventualmente procurando alcançar um estado de entendimento, paz e aceitação - no fundo, aceitar aquilo que não pode ser mudado, como defende Kubler-Ross (1998).

O certo é que a ideia da morte, a nossa ou a de alguém que nos é querido, continua a povoar de medos terríveis a nossa mente. E, sim, se momentos de isolamento que propiciem uma reflexão, um choro mesmo, um carpir são necessários, menos verdade não é que quanto mais solitariamente enfrentarmos aquela ideia, ou o facto consumado da perda de alguém, maior é o sofrimento sentido. O fator grupo ajuda a criar uma carapaça; a revolta e o absurdo evocados por Camus em relação à finitude, serão, pensamos, mais facilmente mitigados em comunidade.

Em casos onde a intergeracionalidade se pratique - idosos e crianças partilham o mesmo espaço e atividades (Jardim de Infância/Creche e Centros de Dia/Lares) -, a relativização da perda tenderá a ser ainda maior, até pela "envolvência da renovação" que as crianças atestam.

Mas será esta relativização positiva? Não terá o luto o seu lugar?

Nas Instituições a morte é um tabu, há como que uma "conspiração do silêncio" relativamente ao morrer. Norbert Elias (2001) é um dos autores que apontam tais modos pelos quais se instalam os sentimentos de constrangimento, medo e embaraço em relação a tudo que lembre a finitude da vida biológica; dando especial relevo ao isolamento dos velhos e moribundos em asilos, hospitais e clínicas de saúde. Os "vivos" querem distância dos velhos e dos moribundos. Torna-se imperiosa a reflexão sobre a educação para a morte, para que o idoso viva uma vida com mais significado, tenha um envelhecimento mais digno e uma morte mais tranquila.

 

 

Dizem que é preciso aprender a viver. Também é preciso aprender a morrer, com os amigos que não voltam e amanhã serão/seremos igualmente cinza e pó!

 

Referências

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Recebido em: 08/02/2018
Aprovado em: 30/05/2018

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