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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.10 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2018v2p.207 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

O ato analítico no âmbito da saúde mental pública: efeitos e reflexões

 

The Analytical Act in the Field of Public Mental Health: Effects and Reflections

 

L'acte Analytique dans le Domaine de la Santé Mentale Publique: Effets et réflexions

 

 

Ronald de Paula AraújoI

IPsicanalista Membro do Corpo Freudiano, Escola de Psicanálise - Seção Fortaleza; Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará; Psicólogo do Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto.

 

 


RESUMO

Este artigo surge de uma experiência institucional. O papel da Psicanálise na saúde mental é propiciar o nascimento de um espaço para o psicótico fazer o seu trabalho de estabilização. O discurso psiquiátrico dos transtornos não comporta uma tese sobre as psicoses. Confundem-se os diversos quadros clínicos de loucura por falta de uma concepção estrutural que ultrapasse o meramente visível. A indefinição do conceito de Psicose na Psiquiatria vem desde a sua origem. Esta origem problemática também deixou obscura a definição de psicose no seio da própria Psicanálise, até o advento da tese lacaniana da foraclusão do significante do Nome-do-Pai.

Palavras-chave: SAÚDE MENTAL; PSICOSE; PSICANÁLISE; PSIQUIATRIA.


ABSTRACT

This article work arises from an institutional experience. The role of Psychoanalysis in mental health is to provide the birth of a space for the psychotic to do his stabilization work. The psychiatric discourse of mental disorders does not contain a thesis on psychoses. Confused the various clinical pictures of madness for lack of a structural conception that goes beyond the merely visible. The indefinition of the concept of Psychosis in Psychiatry comes from its origin This problematic origin also left obscure the definition of psychosis within psychoanalysis itself, until the advent of Lacan's thesis forcing the signifier of the Name-of-Father.

Keywords: MENTAL HEALTH; PSYCHOSIS; PSYCHOANALYSIS; PSYCHIATRY.


RESUMÉ

Cet article est issu d'une pratique institutionnelle. Le rôle de la psychanalyse dans le domaine de la santé mentale est de créer un espace permettant au psychotique de faire son travail de stabilisation. Le discours psychiatrique des troubles ne contient pas de thèse sur les psychoses. Les différents tableaux cliniques de la folie ne sont pas distingués en raison de l'absence d'une conception structurelle allant au-delà du simple visible. Le manque de définition du concept de psychose en psychiatrie remonte à l'origine de celle-ci. Cette origine problématique a également rendue obscure la définition de la psychose dans la psychanalyse elle-même, jusqu'à l'avènement de la thèse lacanienne sur la forclusion du signifiant du Nom-du-Père.

Mots-clés: SANTE MENTALE; PSYCHOSE; PSYCHANALYSE; PSYCHIATRIE.


 

 

Apesar da Psiquiatria e da Psicanálise possuírem objetos de estudo, metodologias e objetivos diferentes e até mesmo discrepantes, o presente trabalho surge de uma experiência institucional de 9 anos de sustentação do ato analítico em Psicanálise em extensão, numa das unidades de internação masculina do Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, em Fortaleza.

Situando um pouco a importância deste hospital vinculado ao Governo do Estado, o mesmo abriga a maior residência de Psiquiatria do Ceará e a segunda do Brasil em número de residentes, tornando-se lugar de formação de diversos psiquiatras inclusive de outros estados do Nordeste, contando com cerca de 240 leitos distribuídos em 2 unidades masculinas e 2 femininas, assim como uma unidade de desintoxicação voluntária para drogados (UD), dois Hospital Dia, um para adictos e alcóolatras (Elo de Vida), outro para psicóticos, uma emergência 24 horas, um núcleo infantil (NAIA), atendimentos ambulatoriais e clínicos, laboratórios de pesquisa, etc. Após o movimento antimanicomial nas políticas públicas produzido pela Reforma Psiquiátrica Brasileira, com o sufocamento dos hospitais e clínicas particulares de saúde mental que recebiam ajuda do SUS e a implantação insatisfatória dos chamados CAPS nível 3, como também dos leitos psiquiátricos em hospitais gerais, o HSM Prof. Frota Pinto tornou-se praticamente o único local de internação psiquiátrica na rede de saúde mental pública do Estado do Ceará, atraindo casos gravíssimos e, a meu ver, tornando-se um local privilegiado para a pesquisa clínica, como também para sustentação do discurso analítico, seu saber e sua ética, o que, com o tempo e trabalho, geram efeitos que passaremos a refletir aqui.

Freud (1916-17/2007, p. 233), nas Conferências Introdutórias, já aponta a proximidade da Psiquiatria e da Psicanálise da seguinte forma: "[...] é inconcebível uma contradição entre estas duas modalidades de estudo, uma das quais continua a outra"1. Quanto ao enfoque pragmático dos serviços de saúde e a possível crítica da "inoperância" da Psicanálise quanto aos objetivos da Psiquiatria, ou seja, a retirada e/ou controle dos sintomas e crises, Freud (1916-17/2007, p. 234) afirma o direito à investigação pela investigação, e aponta para consequências impossíveis de prever para a presença da Psicanálise no hospital psiquiátrico: "temos o direito, mais ainda, o dever, de cultivar a investigação sem buscar por um efeito útil imediato. Afinal - não sabemos onde nem quando - cada partícula de saber se transporá num poder fazer, também num poder fazer terapêutico". E finaliza: "[...] me concederão que na natureza do trabalho psiquiátrico não há nada que poderia rebelar-se contra a investigação psicanalítica. São então os psiquiatras os que resistem à psicanálise, não a psiquiatria" (Freud, 1916-17/2007, p. 233).

Historicamente, a Psicanálise, em seu nascimento, foi aos hospitais psiquiátricos e surgiu da escuta do inconsciente através dos sujeitos que sofriam da epidemia de histeria que assolava o final do século 19. A nossa práxis surgiu exatamente de ouvi-los. Aprendemos com a histeria a sair de uma clínica eminentemente fenomênica para uma clínica estrutural. O analista e a histérica formam o par perfeito do paradigma clínico (Braunstein, 2004) que, de certa forma, teimamos em projetar através do nosso jogo 'transferência e suposição de saber' para outros âmbitos impossíveis de adentrar se seguirmos tal jogo.

 

 

Hoje, nos mesmos hospitais psiquiátricos, encontramos "o inconsciente a céu aberto" da psicose, mas não a mesma psicose que Freud encontrou. Encontramos fenômenos clínicos em várias fases numa internação, com a ação dos psicotrópicos no corpo e o impacto imediato sobre a economia pulsional. Assim, neste novo quadro, o que podemos aprender com o psicótico? "Como o savoir faire do psicótico, em seu trabalho de estabilização, pode ensinar à psicanálise e à clínica ampliada em saúde mental a operarem no manejo dessa clínica?" (Figueiredo, Guerra e Diogo, 2006), eis a questão.

No ambiente de internação, temos também a possibilidade do contato com os familiares que nos parece interessante para a construção do caso, não só no que diz respeito às informações adicionais sobre a realidade comum, como nas anamneses tradicionais onde os acompanhantes falam pelo psicótico, mas, principalmente, pela observação da relação deste último com os parentes mais próximos, ou mesmo a relação do psicótico com a falta total e completa de qualquer apoio familiar, visitações, interesse.

Aqui há também o sentido que a escuta psicanalítica pode oferecer e o retorno efetivo e ativo com a orientação às pessoas leigas sobre a diferença da estrutura psicótica, em termos simples e acessíveis. Tal intervenção têm se mostrado relevante para aqueles que se espantam frente aos surtos muitas vezes tomados como "repentinos", como também começa a instrumentalizá-los o melhor possível para a convivência com a diferença psicótica.

No mais, a nossa postura de não curar, completamente adversa àquele meio, abre uma via extremamente interessante: estamos do lado do sujeito psicótico que apenas quer seguir o seu percurso, ou seja, para nós analistas, ele quer fazer a sua própria análise. Concordamos aqui com Ana Cristina Figueiredo (2006), quando coloca que a transferência e a suposição de saber estão muito mais do lado do analista para o sujeito psicótico que o seu contrário, como quando pensamos a clínica a partir do modelo tradicional da neurose. Assim, compactuamos com esta autora sobre a opinião de que o papel da Psicanálise em extensão na saúde mental é propiciar o nascimento de um lugar institucional que dê o suporte para o psicótico fazer o seu trabalho, afinal "é o sujeito psicótico quem interpreta ou tenta interpretar os signos do real que lhe chegam enquanto enigmas sem decifração" (Figueiredo, et al., 2006, p. 129).

Logicamente, como é de fácil consideração, este papel da Psicanálise no seio do hospital psiquiátrico é causa e efeito de uma política, pois ali encontramos posições bem definidas de poder.

Decerto que o analista é o secretário do psicótico, como disse Lacan, mas gostaria, primeiramente, de descentrar o ato analítico do trabalho direto com o psicótico para estendê-lo também àquilo que cerca o psicótico e que influencia diretamente neste seu percurso: ou seja, durante a internação, a equipe e a família2. Talvez a Psicanálise sirva (se podemos utilizar este verbo aqui), enquanto conhecimento, mais diretamente e ativamente para o apoio às pessoas que ficam transtornadas com o contato com a psicose, os familiares, enfermeiros, funcionários e até mesmo o psiquiatra, do que para o próprio psicótico. Acredito que este último ganhe alguma coisa indiretamente, quando sofre menos injunções, quando as suas ações absurdas ganham algum sentido para a equipe, quando a sua voz e subjetividade se condensa em escritura e vai, "literalmente", para dentro do prontuário, passando a ser lida, inclusive, como um documento burocrático no qual a sua palavra quebra o silêncio da descrição pura e simples dos sintomas, estados de humor, comportamentos, etc.

Sobre isto, temos o seguinte exemplo.

Internado em 19/08/2014, G., com 31 anos, é atendido por mim pela primeira vez um dia após a sua entrada na unidade, ocasionada por um evento heteroagressivo no qual se armou com uma faca, sem ferimentos graves, dentro de um quadro de insônia, delírio, agitação e falta da medicação. Trago a transcrição da minha evolução no prontuário3:

Rapport: Chega, e ao observar o meu carimbo em um outro prontuário diz: "- agora as letras são invisíveis?" (sic). Depois que me apresento, peço para falar no que pensa. É resistente, e inteligente. Responde que não pensa em "nada" (sic). [Estimulo-o com o papo das letras invisíveis. Começa a soltar o jogo]. Discurso com disfunções breves que o tornam mais interessante ao responder-me se era a sua 1ª internação. Responde: - "de 95 a 14, 2014" (sic). [Pára de produzir. Apenas fita-me. Baixa os olhos duas vezes. Enquanto isso, fala baixo]. Pergunto se escuta vozes. Diz que "agora não" (sic). Fala que em 2006 "ouvia as aves, o galo e a galinha conversando..." não conseguia entender. Fala que havia "desenhos, uns do bem... Via Jesus Cristo no centro, do lado havia crianças enterradas" (sic). [O mais interessante é que o delírio está bem articulado... o mais impressionante é a complementação do pensamento a partir do que ele projeta no analista como alucinação atual. Um caso riquíssimo]: diz que "eu afirmei com a cabeça", neste momento, ele diz para o celular: "não pode matar" (sic). [O sentido: não pode matar por causa do código, da lei]. Sempre responde que não está pensando em "nada" (sic) se eu faço uma intervenção com esta pergunta. Discorre agora sobre "a verdade" (sic). [O discurso é muito denso, apesar dele falar calmamente]. Disse, após a minha pergunta, que está aqui "por causa de uma confusão de auto-defesa" (sic). Explica: "O som estava alto, tava prejudicando. Chamei o Marcus, o profeta, para a igreja, não quis ir". Disse ter atingido um amigo, "Auri Júnior", e a sua mãe. [Faz pausa para tomar a medicação. Retorna, logo após, configurando uma "transferência psicótica"]. Exclama: - "não faria isso não" (sic). [Pergunto o quê?]. Diz: "- matar", "não pode matar... tá no código" (sic). Volta a calar-se. Sobre as aves, após uma pergunta minha, diz que "nunca as entendeu" (sic). [Entra em duplo com o analista. Espera as minhas perguntas. Tento fazer que fique livre. Pergunto, e peço, que ele responda aquilo que ele acha que eu vou perguntá-lo]. Sorri. Acha bom. Exclama: - "É bom conversar com o senhor" (sic). Antes disse: - "o senhor é bom" (sic).

Desculpo-me aqui por algumas imperfeições e falta de clareza no texto, mas peço o entendimento de que esta escrita acontece exatamente no momento dos atendimentos na unidade de internação, inclusive a utilizo como suporte para a minha escuta. Porém, peço a observação atenta que o que se ouve do paciente é transcrito da forma mais próxima possível, e aquilo que o psicótico traz se confunde com o pensamento clínico do analista, transformando-se numa escrita que quebra a burocracia para os outros membros da equipe que passam a se interessar por aquilo que este "novo louco", ou seja, o analista, escreve. Trouxe este exemplo real de como o prontuário, antes burocrático e distante da fala e das questões singulares ao próprio paciente, pode virar um veículo de inserção deste no mundo que o cerca, ao mesmo tempo que marca a diferença do discurso psicanalítico e o objetivo maior de escuta do inconsciente dentro da instituição.

Uma observação interessante é de que não são poucas as vezes que um atendimento como este é acompanhado por familiares que o psicótico insiste em pedir que permaneçam na sala, como para tornar mais pública a sua fala e as suas elaborações. Este mesmo paciente, em outro momento, teve um de seus atendimentos acompanhado pela mãe, que permaneceu em silêncio durante toda a sessão. Após a finalização da sessão, esta mãe pergunta-me se atendo em outro local e exclama de que nunca tinha visto aquilo, apesar de acompanhar o filho há vários anos nos CAPS em consultas com psicólogos e com psiquiatras. Isto não deixa de ser estimulante.

Continuando a apresentação do caso, G. obtivera alta hospitalar em 12/09/2014, ainda delirante, o que aponta para um avanço no entendimento dos psiquiatras da unidade, de que a psicose não é "curável". Um dia antes da sua alta já agendada e comunicada a ele, atendo o paciente a pedido da mãe, que vem me dizer que ele está "muito nervoso, tremendo-se todo". Pergunto a ela se ele tem condições de vir ao consultório. Como ela diz que o filho não conseguiria vir, digo que vou atendê-lo no seu leito, assim que possível. Para minha surpresa, entre os atendimentos de outros pacientes, G. se apresenta no consultório, trazido pela mãe. Transcrevo a evolução do dia 11/09/2014:

Apresenta-se. Chega chorando dizendo que "não aguenta mais" (sic). Pede: "- Doutor, pelo amor de Deus, me tire daqui, eu não aguento mais!" (sic), e põe a cabeça na mesa. [Pergunto porque está assim, já que tem alta prevista para amanhã, segundo a evolução do médico]. Diz não saber responder. Pergunta-me se eu pensei em chamar a sua mãe "para ajudar" (sic). [Pergunto porque ele acha que eu pensei em chamar a sua mãe (?)]. Diz que é "porque ela tem amor"(sic). Diz que "é uma pessoa do bem", referindo-se a ele. [O discurso é articulado, apesar da característica delirante]. Diz querer ir para os Estados Unidos. Refere-se a outro paciente que interrompera a sessão como "ele também é da nossa turma, é do bem" (sic). [Silêncio]. Diz: "- Tem hora que eu fico olhando assim pra mim,.. não vendo o rosto, mas assim, pra mão, me incomoda... eu não sei porque é..." (sic). "O Sr. é muito bom, gosto muito do senhor". "- Eu tô alegre porque Vladimir, o Putin, está bem, tá vivendo num canto todo de ouro, o Sr. já foi lá?". - "Eu busco força, no senhor, num atendimento médico, no vento, numa palavra... [Repito: no vento, numa palavra...], numa música" (sic). "- O importante é salvar o povo. Tem que 'cuidar'4 eles, pra trabalhar" [Eles quem (?)]. "- O pessoal que luta com a gente, o Laerte, a Dona Paula, o Seu Luizinho, a família Saraiva, o Seu Israel... é um povo que sofre doutor, demais" (sic). "- Se eu perguntasse uma coisa pro senhor, o senhor me responderia, com amor? (sic) [Pergunto sobre o que perguntará (?)]. Diz: "o senhor gostaria de ser o meu pai? É para dar descanso ao meu pai" (sic)... "Ele está lá em C. (nome de sua cidade) (sic). [Mais uma vez, vemos nitidamente a tese da foraclusão do (significante do) Nome-do-pai (Lacan, Sem 3), apresentando-se na psicose]. Olha-me fixamente, em silêncio. Aguardo a sua elaboração. Diz: - "Tira sim". Explica: "Foi uma voz vivo, que me disse agora: '- Ele tira sim, tira o cavanhaque" (sic). [Pergunto sobre a voz, alguma característica (?)]5. Diz que "era de menino, menino masculino" (sic). E mais: - "Pastoro6 mesmo, o senhor, caso alguém queira mexer com o senhor" (sic). [Continua com a sua elaboração sobre as pessoas "do bem"]: - "Thiago é do bem também" (sic). Pergunta, finalmente: - "Doutor, porque é que eu estou aqui?" (sic). [Relanço a sua pergunta a ele]. Diz: - "Foi porque eu parei uma turma da pesada?" (sic) [Complemento para ele: naquela 'confusão de auto-defesa' (?)]. Diz: "- Sim, foi... , mas eles tavam com som alto, faziam a maior baderna... causava dor de cabeça pra minha mãe e queriam enlouquecer a gente... o som é somente da polícia, o som é para o bem... agora se fosse música era bom... quando eu era prefeito lá em C., eu botava a música do pokemón para o povo dormir..." (sic).

[Bem, inicio o final dos atendimentos. Oriento-o a buscar o CAPS de C. e sempre falar como ele falou aqui. Ele se referiu à Dra. P., psiquiatra, que o atende em Fortaleza]. Fala, pergunta se eu acho que ele é uma pessoa do bem, ou do mal (?). Disse não ter culpa, de "estar inocente" dos "atritos", conforme "o estatuto" (sic). Mais adiante, em outro contexto, diz: - "quero saber tudo da verdade" (sic). [Pergunto se isso é possível (?)]. Diz que "sim, é possível" (sic).

Diz: - "Tem que ter 'caça', pra proteger o senhor. Obrigado pela tecnologia apreciada7 [caça aqui é 'avião de guerra'] (sic). Despede-se desejando "força e amor" ao analista.

HD: Psicótico [Esquizo-paranóide] - ESTABILIZADO

Observa-se a elaboração, pelo próprio sujeito, dos fatos que o levaram à internação, elaboração esta que segue a sua particular relação com a linguagem e o seu estado delirante. Este exemplo sugere o quanto pode ser interessante ao psicótico a presença do analista no hospital psiquiátrico, como ele se utiliza do analista e o quanto é interessante, por este fato mesmo, a extensão do discurso psicanalítico para a saúde mental pública, a nossa intimidade com o inconsciente e a nossa capacidade de escutar e trabalhar com os significantes e não com os significados.

Sem tecer muito mais comentários sobre o atendimento, porque acredito que ele fala por si mesmo, utilizo-o aqui para levantar uma questão de base que vejo como extremamente importante, pois é a ponte para a possível interlocução com a Psiquiatria - caminho para a Psicanálise entrar na saúde mental: o discurso psiquiátrico dos transtornos não comporta uma tese sobre a etiologia das psicoses, e esta falta é a base para a sua imprecisão diagnóstica.

Mesmo que haja alguma preocupação com a anamnese dos casos, e quando é superada a tendência dos psiquiatras renderem-se à neurologia com a busca desesperada de causas no Real do cérebro, o simples fato da psiquiatria hoje não se apoiar numa clínica estrutural e não desenvolver um pensamento clínico que busque seus invariantes, torna os diagnósticos, baseados na observação comportamental e fenomênica, vagos e imprecisos, e fruto de uma projeção por parte daquele que assiste aos fenômenos.

Mesmo porque, quase sempre, os diagnósticos são feitos emergencialmente e, dali mesmo, o tratamento se inicia por observação de causa e efeitos frente a cada prescrição de medicação. Gostaria que ficasse bem claro o que critico aqui: o discurso dos transtornos não é a Psiquiatria, apesar de que a formação psiquiátrica hoje esteja se limitando a ele. Isto porque, dentro do discurso dos transtornos abole-se completamente a pesquisa sobre a etiologia das psicoses, ou dos próprios transtornos, como queiram, e retira-se o sujeito da questão.

O problema da indefinição do conceito de Psicose na Psiquiatria, que é a causa dos problemas de indefinição diagnóstica atual, vem desde a sua origem e atravessa todo o seu desenvolvimento histórico. Conforme defenderemos, tal problema não está resolvido, quando fenomenicamente se confundem os diversos quadros clínicos da loucura por falta de uma concepção estrutural que ultrapasse o meramente visível. Esta é a situação que desemboca na indefinição atual do conceito e no abandono da preocupação etiológica por parte da grande maioria dos psiquiatras de hoje.

Esta origem, já problemática, também deixou obscura a definição de psicose no seio da própria Psicanálise, até o advento da tese da foraclusão do significante do Nome-do-Pai, desenvolvida por Lacan durante o Seminário 3, de 1955/56, e formalizada em 1957, no escrito "De uma questão preliminar para todo tratamento possível da psicose"8, que forjou uma concepção de psicose própria da Psicanálise, sem influência da clínica psiquiátrica (Maleval, 2012).

Aqui nos vemos na obrigação de fazer um prolongamento, extremamente necessário e urgente, apresentando, sumariamente, a pesquisa de Jean-Claude Maleval (2012), no texto "En busca del concepto de psicoses" publicado em seu livro Locuras histéricas y psicoses disociativas, por ser a mesma bastante elucidativa, no que diz respeito ao que se entende [ou não se entende] por Psicose hoje, e que veio deixar mais claro todo o trabalho que estamos desenvolvendo.

Logo de início, Maleval nos traz que o conceito surge pela primeira vez em 1845, forjado por um barão vienense, da tradição dos "psiquistas" alemães, chamado Ernst Von Feuchtersleben, no seu Manual de psychologie médicale. A psicose surge ali como um tipo de neurose, conceito anteriormente forjado pelo escocês William Cullen, em 1777. Portanto, a Psicose, de origem, não se diferencia da Neurose. Esta distinção foi se construindo durante todo o século XIX. Maleval ainda afirma que a "principal originalidade [de Von Feuchtersleben] consistiu em introduzir o termo "psicose" para designar a alienação mental, ali onde antes se utilizava o velho conceito de 'vesania', proveniente da Antiga Roma, que irá perdurar até bastante tarde na psiquiatria francesa"9.

Pinel sofreu influência de Cullen e, por sua vez, influenciou Von Feuchtersleben. Seu quarto grupo das neuroses mantém o velho conceito de vesania que:

[...] agrupa [a] hipocondria, o sonambulismo e mais curiosamente a hidrofobia a tudo o que atualmente se está de acordo em subsumir no conceito de psicose - a mania, a melancolia, a demência e o idiotismo são vesanias. [...] Estes quadros se diferenciaram pouco a pouco, ao longo do Século XIX graças à sutileza descritiva dos alienistas, para dar origem à maioria dos quadros clínicos que nós conhecemos.

[...]

A partir de Cullen, Pinel e Feuchtersleben, até um período bastante avançado do século XIX, as psicoses não apareceram opostas às neuroses, mais subsumidas nas primeiras. Seria, portanto, inexato pensar que estes dois conceitos tenham sido desde sua introdução os termos organizadores da reflexão psiquiátrica e precursores dos dois pólos que distinguimos atualmente. (Maleval, 2012, p. 258)

No mesmo ano que Von Feuchtersleben introduziu o novo conceito, W. Griesinger publica um manual de psiquiatria "que teve grande repercussão e assegurou a supremacia dos Somatiker sobre os Psychiker", ou seja, apesar da etiologia neurótica original ligada ao conceito de psicose, "este conceito se difundiu em um contexto histórico em que as concepções organicistas da enfermidade mental se converteram em dominantes" (Maleval, 2012, p. 259)

Houve, então, uma extensão posterior do conceito apoiada no prestígio da Psiquiatria Alemã, englobando "a maior parte das manifestações psíquicas patológicas". No Tratado de Kraepelin, por exemplo, o emprego do termo psicose tendia a fazer-se específico e a "vincular-se de modo bastante direto com uma etiologia orgânica" (Maleval, 2012, p. 260). Correlativamente, a Neurose perdeu seu lugar preponderante no seio da Psiquiatria, um século depois de Pinel: "na 6ª edição do tratado de Kraepelin, em 1899, as 'neuroses gerais' já não constituíam mais que um dos treze grupos de enfermidades mentais" (p. 260).

Maleval aponta como fato desencadeante de toda esta mudança de status, tanto quanto da própria etiologia do conceito de Psicose, as descobertas da anatomia patológica durante o século XIX, em particular a descoberta da "paralisia geral", de Bayle, a ponto de Michel Foucault escrever que:

No Século XIX a paralisia geral era a 'boa loucura' no mesmo sentido que se fala de 'boa forma'. A grande estrutura que ordena toda a percepção da loucura se encontra exatamente representada pela análise dos sintomas psiquiátricos da sífilis nervosa. A falta, sua condenação, seu reconhecimento, manifestadas tanto como ocultadas em uma objetividade orgânica: essa era a expressão mais acertada do que o século XIX entendia e queria entender por loucura (Foucault, in 'História da Loucura na idade clássica', apud Maleval, 2012, p. 260).

Assim, ao final do século XIX, houve quem duvidasse da existência mesmo das Neuroses, e a palavra passou a designar "o oculto da patologia", os transtornos que não se compreendiam, por não poder encontrar-lhes uma localização orgânica precisa.

Esta foi a situação que Freud encontrou quando criou a Psicanálise a partir da escuta das histéricas. Portanto, foi graças a Freud e à Psicanálise que as neuroses foram resgatadas como quadro patológico na nosografia psiquiátrica, assegurando uma influência cada vez mais crescente da Psicanálise no meio desta.

De qualquer forma, Maleval conclui: "em consequência, surge que, contrariamente ao que sustenta a opinião contemporânea, seu fundamento [a distinção de Neurose e Psicose] não é clínico, mas etiológico" (Maleval, 2012, p. 261). Ficou sedimentada, então, a oposição entre "nervosos" (neuróticos) X "cerebrais" (psicóticos).

Vemos que a falta de distinção fundamentada dos quadros patológicos em saúde mental vem de origem, o que leva à situação de milhares de neuróticos delirantes serem diagnosticados como psicóticos, principalmente como esquizofrênicos, em especial nos EUA (Maleval, 2012).

Esta situação indefinida de distinção clínica entre Neurose e Psicose também convergiu para o seio da Psicanálise, como dissemos.

Inicialmente, Freud tratou de expandir a Neurose. Em 1897, em cartas a Fliess, escreveu: "Agora me dou conta de que as três neuroses - a histeria, a neurose obsessiva e a paranoia - implicam os mesmos elementos (e a mesma etiologia)" e "em 1907 falava da paranóia como de uma neurose" (Freud apud Maleval, 2012, p. 262/263) Já em 1915 chama a maior parte das vesanias de "neuroses [ou psiconeuroses] narcísicas", e só vem a aceitar o termo psiquiátrico 'Psicose'11, explicitamente, nos textos de 1924, quando a Psicanálise já havia encontrado o seu espaço de influência na Psiquiatria e Freud pôde "baixar a guarda", digamos assim.

Nos textos de 1924, "Neurose e Psicose" e "A perda da realidade na neurose e na psicose", Freud apresenta distinções, porém não sem os problemas de indiferenciação destes dois conceitos. Em resumo, nestes dois textos, onde o segundo procura complementar o primeiro, Freud distingue primeiramente a Neurose como um conflito entre o Isso e o Eu, enquanto que a Psicose seria um conflito entre o Eu e o mundo externo. No segundo texto, Freud propõe que em ambos os quadros há a perda da realidade, porém na neurose haveria um "não querer saber" nada sobre esta parte da realidade perdida, um recalcamento, enquanto que na psicose haveria uma fase de substituição desta parte da realidade perdida por uma outra, que seria o delírio (Freud, 1924/2007).

Ora, segundo Maleval (2012), com o qual aqui concordamos, a primeira distinção de conflito entre o Isso e o Eu, ou entre o Eu e o mundo externo, não diferencia, a contento, neurose e psicose, já que ambos os conflitos entre as instâncias psíquicas podem estar na origem dos dois quadros, como a clínica o demonstra: ou uma pulsão do Isso, ou um fato da realidade, ou ambos, podem ser o gatilho de uma neurose, ou de uma psicose. Lembremos Schreber, que aponta o pensamento - "deve ser bom ser mulher e sofrer o ato da cópula" - ou seja, uma pulsão originada no Isso, que deu o motif de todo o delírio realmente deflagrado no encontro de Schreber com um lugar simbólico, com "Um-pai", por ele não suportado devido a não simbolização (representação) do significante do Nome-do-Pai, então foracluído do simbólico, como propõe a tese lacaniana, a partir de sua nomeação como Presidente no Tribunal de Apelação em Dresden.

Por outro lado, o argumento de uma substituição de realidade como diferença entre a psicose e a neurose é uma concepção psiquiátrica (Maleval, 2012), que depende do fenomênico. Sabemos de quadros graves de neurose onde há delírios não dissociativos, alucinações auditivas e estados de torpor que poderiam entrar nesta classificação de "substituição" de uma realidade por outra. Como um dos exemplos clássicos, o fato do Homem dos Ratos, um neurótico obsessivo, achar que seu pai poderia passar pelo "suplício dos ratos" se uma dívida não fosse paga, quando este pai já havia falecido há vários anos poderia ser entendido hoje, muito bem, como uma psicose, por qualquer psiquiatra, por estar "fora" da realidade tida como comum. Enfim, o problema de indefinição dos dois quadros clínicos persistiu, apesar do esforço de Freud, e das pistas que ele legou e que Lacan soube garimpar.

Segundo Maleval (2012), então, Freud não conseguiu definir o que distinguiria, clinicamente, os dois conceitos clínicos, fato que ele mesmo vem a admitir no 'Esboço de Psicanálise', de 1938. Isto porque ele herdou todo o problema de indefinição apontado no campo da Psiquiatria durante todo o século XIX, que procuramos trazer os pontos mais cruciais. Convém pontuar que, apesar do objetivo maior não alcançado, Freud traz o termo 'Psicose' para a Psicanálise alterando a sua etiologia eminentemente orgânica, subvertendo o sentido do termo tal qual estava sedimentado na Psiquiatria após as descobertas da anatomia patológica e do modelo da paralisia geral, defendendo uma etiologia psicogenética para as antigas vesanias.

Como dissemos, isto ocorreu depois de uma longa resistência aos termos da Psiquiatria, em particular, à 'demência precoce', de Kraepelin, criticada por Freud por "não ser nem uma demência, nem ser precoce" (Maleval, 2012), assim como sua conhecida divergência ao conceito de 'esquizofrenia', de Bleuler, que Freud preferia chamar de 'parafrenia'12.

Ao tentar introduzir o conceito de "neurose narcísica" como mais uma tentativa de impor sua nosografia no seio da Psiquiatria, Freud encontrou "um conceito de psicose bem implantado", no sentido de que as velhas correntes antagonistas, dos que defendiam uma etiologia psicogenética contra os que defendiam uma etiologia orgânica, já haviam tido "que renunciar a pretender englobar-se reciprocamente, de maneira que se impôs uma transação. Assim nasceu a divisão da patologia mental em neurose e psicose como resultado de uma relação de forças entre duas concepções etiológicas" (Maleval, 2012, p. 263)

Todo este esforço de pesquisa histórica do conceito de Psicose na Psiquiatria trazido a nós por Maleval, assim como suas consequências no campo da própria Psicanálise, é tomado pelo autor para frisar a importância da tese de Lacan sobre a foraclusão do significante do Nome-do-Pai como "a mais heurística" que temos na atualidade. Lacan define a Psicose estruturalmente, e não só fenomenicamente, tratando-se, portanto, de uma tese eminentemente psicanalítica que, a nosso ver, poderia muito bem ser levada em consideração pelos psiquiatras que ainda se encontram perdidos na clínica dos fenômenos e na sua indefinição do que seria neurose e psicose, o que pode levar a um diagnóstico impreciso, principalmente o de tomar neuróticos graves como esquizofrênicos.

O conceito de foraclusão do significante do Nome do Pai, central na tese de Lacan, foi "em sua origem inteiramente deduzível de uma investigação sobre os textos de Freud e de Schreber orientada pela dialética hegeliana, a linguística estrutural e os primeiros trabalhos de Lévi-Strauss" (Maleval, 2009, p. 65). Lacan o faz "em um período no qual está descobrindo que a psicose recai especificamente no Nome do Pai" (p. 65), ou seja, não é em qualquer significante, mas no significante que possuiria um valor ordenador de todo o psiquismo, aquele que ficaria no lugar da falta no Outro, ou no lugar do significante da falta no Outro, S(A barrado), porém fora do próprio campo do Outro, pois o próprio Outro é não representável em sua totalidade, numa relação de "extimidade" ao conjunto dos significantes (Maleval, 2009). Essa falta de um significante que representaria todo o conjunto dos significantes é estruturante para o psiquismo humano, como, por exemplo, o conjunto vazio é, por definição, também elemento de todo e qualquer conjunto na teoria dos conjuntos matemática, porém não poderia representar o conjunto de todos os conjuntos, principalmente enquanto elemento deste13. Daí o matema S(A) surgir sempre barrado, na álgebra lacaniana, surgir sempre como faltoso. Para o psicótico, nos momentos de crise, este Outro comparece sem barra, como absoluto, por falta deste furo.

O significante do Nome-do-pai que, segundo Maleval (2009), se confunde com o próprio S(A) barrado, simbolizaria o desejo da mãe (DM), tornando possível este furo, esta distância, um lugar vazio onde todos os outros significantes do conjunto pudessem "se mover" e entrar em relação uns com os outros, fazendo metáforas, acréscimos de sentido, a partir deste "eixo vazio", digamos assim. É, grosso modo aqui, toda esta operação que está foracluída no sujeito psicótico a partir do momento que este significante do Nome-do-Pai ordenador é convocado a operar e não está lá, tornando os fenômenos de linguagem do psicótico tão particularmente característicos desta estrutura psíquica.

Ora, "em sua raiz, a foraclusão lacaniana faz referência ao jurídico" (Maleval, 2009, p. 66), ou seja, à lei, e não é por acaso: trata-se exatamente de uma função que não opera no psicótico, nos momentos de crise, mas que também pode ser examinada nos momentos fora das crises, através de seu discurso. Maleval aponta ainda que "entre os sentidos do verbo verwerfen, um pertence ao vocabulário jurídico e significa "recusar", incluindo uma ideia de rechaço por desconformidade com às disposições legais" (Maleval, 2009, p. 66)14.

Diante das dificuldades apontadas, mesmo assim observamos o interesse realmente clínico cada vez mais crescente de residentes e psiquiatras que possuem honestidade intelectual frente a cada caso e até chegam a compartilhar a sua angústia frente ao Real da psicose e à sua própria castração quanto ao juramento de Hipócrates. Aí temos um fato particularmente interessante, a meu ver, a nosso favor: a Psicanálise de orientação lacaniana tanto não interpreta o delírio (posição muito comum que põe ao ridículo a Psicanálise anglo-saxônica), como também, naquele meio, simplesmente é hoje a única disciplina que possui uma tese sobre esta particular estrutura psíquica e isto gera consequências e deslocamentos quanto ao lugar do saber, tanto como discurso do mestre, quanto como discurso universitário (Figueiredo, et al., 2006).

Decerto que também concordamos com Ana Cristina Figueiredo (2006) de que não se trata do psicanalista tomar lugar de S1, o lugar do mestre em seu discurso, ou o de S2, o do saber, como no discurso universitário, dentro do hospital psiquiátrico. Não, não se trata disso, em hipótese nenhuma. Isto seria um contrassenso quanto ao discurso do analista e quanto à ética da Psicanálise. Sustentamos, exatamente, semblante de a, ou seja, sustentamos a falha no saber que o contato com o inconsciente propicia. Mesmo que os discursos lá instituídos nos convoquem a "funcionar" conforme as suas lógicas preestabelecidas, a sustentação do ato analítico na Psicanálise em extensão na saúde mental é, sobretudo, uma postura subversiva, pois arrisca e põe em cheque a própria autoridade do analista, que a instituição hospitalar poderia exigir. Suportamos a destruição da imago paterna, inclusive obtemos através das nossas análises esta estranha capacidade de implodir a nossa própria imagem, que nada mais é que a identificação e alienação vinda do outro, tão almejada pelas psicoterapias...

É isto que nos faz cair, mas cair bem, para alcançar saltos mais longos e condições para os percursos dos sujeitos em suas particulares experiências com o inconsciente. Somos este vazio necessário, "o estranho [íntimo] no ninho".

 

Notas

1. Todos as citações em espanhol são de livre tradução.

2. A AMP e a EBP, escolas millerianas, adotam o que eles chamam de "prática entre vários" como substituto da chamada "interdisciplinaridade" no ambiente psiquiátrico, onde o paradigma, de uma forma geral, seria instrumentalizar toda a equipe para funcionar como um Outro não consistente para o psicótico, e permitir o seu percurso. Entendo esta não consistência do Outro como não reforçar um Outro imaginarizado, fixo e rígido, assim como o Outro no Real que se apresenta como absoluto sem o significante da falta no Outro (S(A) barrado), próprio da psicose.

3. Favor observar que quando abro colchetes falo em meu nome, na tentativa de diferenciar a fala do psicótico (entre aspas), o texto do prontuário para a equipe (sem nenhuma indicação) e as minhas elaborações (entre colchetes).

4. Palavra não muito bem transcrita devido à forma de registro do prontuário por foto.

5. Explico a frase em colchete: Perguntar sobre as características da voz, ou o que o psicótico pensa sobre elas, o que ele acha que é, quem são, porque acontece, se é uma voz de mulher, de homem, de criança, enfim, tenho notado que estas perguntas fazem o psicótico trabalhar e se interessar em produzir fala, endereçando-se ao Outro, o analista, como um confidente de suas experiências, e assim, começa a se propor a responder e a elaborar, sofisticando cada vez mais o sentido que virá apaziguar, com o tempo, a sua condição por estrutura.

6. 'Pastoro' aqui é o presente do indicativo do verbo "pastorar", muito comum no Nordeste, que significa tomar conta, cuidar, mas também vigiar. Pastorar é o ato de vigiar e tomar conta de ovelhas, do gado, etc, quando os mesmos estão pastando no campo.

7. Interessantíssima forma de chamar a Psicanálise com a qual teve contato no hospital, e agradecer o atendimento como uma "tecnologia apreciada".

8. Em Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.. 1998. Segundo Maleval (2009), o conceito continuou a se desenvolver durante todo o ensino de Lacan, mesmo que não tenha sido formalizado explicitamente como o foi no escrito supracitado. Sofreu alterações e influências decisivas, particularmente durante os últimos seminários, após a constatação da inconsistência estrutural do Outro, a noção de Nomes-do-pai, a teoria do gozo (Sem. XX), a topologia dos nós (Sem. XXI a XXIII), havendo, ainda, avanços e descobramentos do conceito de foraclusão pelos discípulos de Lacan, a partir da década de 80.

9. No Século I d.c., Celso distinguiu a "vesania", enfermidade mental geral e crônica, do "frenesi", agudo e febril.

10. Qualquer coincidência com a esperança nas neurociências e na neurologia de localização orgânica dos quadros clínicos, a meu ver, é mera semelhança. A história parece se repetir, quando algo do Real retorna sempre ao mesmo lugar, antes pela anatomia patológica, hoje pelos experimentos com ressonâncias por imagem, estudo dos neurotransmissores, decodificação genética etc.

11. Neste momento, o termo 'Psicose' já estava carregado de toda a semântica e problemas de origem e desenvolvimento que estamos mencionando, apontados no trabalho de Maleval.

12. Em 'O Inconsciente', de 1915.

13. Cf. o Paradoxo de Russell.

14. A questão sobre o termo 'foraclusão' na acepção jurídica nos parece difícil, por ser de um outro campo. O próprio Maleval, no texto aqui referido o aproxima da 'prescrição', que seria uma perda de direito, de mover uma ação em prol deste direito, assim como Joel Dör traduz foraclusão pelo termo jurídico 'prescrição'. Na minha opinião, esta tradução do termo verwerfen, no jurídico alemão, como uma "desconformidade com as disposições legais", está mais próxima da nossa "preclusão", no direito brasileiro. A preclusão não é a perda ou perecimento de um direito por lapso temporal, apesar de que esta se confunda com a 'prescrição' que seria "a extinção da eficácia de determinada pretensão, ou seja, extinção de uma ação ajuizável, em virtude da inércia de seu titular durante um certo lapso temporal" (Fonte: Netto, W. P. D. Em Breves considerações acerca da preclusão. Disponível em: http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/4462/Breves-consideracoes-acerca-da-preclusao. Acesso em 12.05.2017 . Grifo nosso).

A preclusão se trataria mais de uma perda de um ato processual numa ação já constituída, ou seja, uma "extinção de direitos processuais" (Marinoni, L. G.. Manual do Processo de Conhecimento), cit., p. 665 apud Netto). Ela pode se efetuar em 4 tipos: a preclusão temporal (perda do valor do ato impetrado intempestivamente), a preclusão lógica ("a extinção da faculdade de praticar um determinado ato processual em virtude da não compatibilidade de um ato com outro já realizado" (Marinoni, L. G. apud Netto), a preclusão consumativa ("a extinção da faculdade de praticar um determinado ato processual em virtude de já haver ocorrido a oportunidade para tanto" (Marinoni, L. G. apud Netto)), e ainda uma quarta, bastante controversa, que seria a preclusão pro iudicato ("a extinção de um poder do próprio juiz" (Marinoni, L. G. apud Netto).

Esta discussão dos termos jurídicos é interessante para nós, a meu ver, porque, como vemos clinicamente, fazendo uma analogia do sujeito psicótico com um processo, o psicótico está na linguagem, ele fala como qualquer um, ou seja, o processo, a ação, existe, não prescreveu. Porém, há um ato nesta "ação" que não pôde ser impetrado, há um ato "precluso", não válido, juridicamente, ou seja, não válido simbolicamente, que não pode entrar em referência/ligação/associação com os outros atos no mesmo processo, que seria, para nós, outros significantes, seguindo a nossa analogia. Este ato "precluso" é, muito precisamente, o significante que toma valor de significante do Nome-do-Pai, que está "foracluído do simbólico", ou seja, fora do "processo/psicótico" e retorna no Real. Assim, defendemos aqui que a aproximação/tradução do termo forclusion do direito francês para o direito brasileiro seria o conceito jurídico de "preclusão", e não o de "prescrição", que é a perda total do direito de ação, e não apenas a não validade, a não eficácia, de um ato processual numa ação já constituída.

 

Referências

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Figueiredo, A.C., Guerra, A. & Diogo, D. (2006). A prática entre vários: uma aplicação da psicanálise ao trabalho em equipe na atenção psicossocial. Em Bastos, A. (Org). Psicanalisar Hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.         [ Links ]

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Maleval, J.-C. (2009). La Forclusión del Nombre del Padre: el concepto y su clínica - 1ª Ed. 1ª reimp. - Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Maleval, J.-C. (2012). Locuras Histéricas y Psicoses Disociativas - 1ª Ed. 6ª reimp. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 08/06/2018
Aprovado em: 01/09/2018

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