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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.10 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2018v2p.245 

ARTIGOS LIVRES

 

Memória, traço e escrita

 

Memory, trace and writing

 

Mémoire, trace et écriture

 

 

Joana SouzaI; Denise MauranoII

IDoutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Endereço: Av. Lúcio Meira, 14 Várzea - Teresópolis - RJ. CEP: 25950-000 Telefone: (21) 98702-3877. E-mail: joanapsi@uol.com
IIProfessora Titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutora em Filosofia (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro); Pós-doutorado em Letras (PUC-RJ). Endereço: R. Voluntários da Pátria, 107 - Botafogo, Rio de Janeiro - RJ. CEP: 22270-000. E-mail: dmaurano@corpofreudiano.com.br

 

 


RESUMO

O artigo explora as relações entre a escrita e a memória com o objetivo de evidenciar a importância da hipótese freudiana acerca do traço unário na constituição da memória. Freud mostrou a existência, na memória, de uma "escrita psíquica", que seriam a marcas ou traços deixados no psiquismo pelas palavras ouvidas, por imagens percebidas, que constituem o conjunto de experiências vividas. Lacan, seguindo o rastro de Freud, elaborou o conceito de letra com o objetivo de evidenciar a presença no psiquismo de uma marca que sustenta a relação do sujeito com o desejo.

Palavras-chave: MEMÓRIA; TRAÇO; ESCRITA; PSICANÁLISE.


ABSTRACT

The article explores the relations between writing and memory in order to highlight the importance of the Freudian hypothesis about the unary trait in the constitution of memory. Freud showed the existence in the memory of a "psychic writing" that would be the marks or traces left in the psyche by the words heard, by perceived images that constitute the set of experiences lived. Lacan, following the trail of Freud, elaborated the concept of letter with the purpose of evidencing the presence in the psyche of a mark that sustains the relation of the subject with the desire.

Keywords: MEMORY; TRACE; WRITING; PSYCHOANALYSIS.


RÉSUME

L'article explore la relation entre l'écriture et la mémoire avec l'objectif de mettre en évidence l'importance de l'hypothèse de Freud sur la trace unaire dans la constitution de la mémoire. Freud a montré l'existence dans la mémoire d'une écriture "psychique" qui seraient les marques ou traces laissées dans la psyché par les paroles entendues, par des images perçues, qui constituent l'ensemble des expériences vécues. Lacan, suivant la piste de Freud, a élaboré le concept de lettre dans le but de mettre en évidence la présence dans la psyché d'une marque qui soutient la relation du sujet avec le désir.

Mots-clés: MEMORY; TRACE; ÉCRIT; PSYCHANALYSE.


 

 

A relação entre memória, lembrança e esquecimento é tratada desde a Antiguidade. No princípio dos tempos, a memória era representada por uma divindade: Mnemosyne, deusa grega filha de Urano (céu) e Gaia (terra), irmã de Cronos (tempo) e Okeanós (indeterminado), e presidia uma função poética. Como musa inspiradora do canto épico, Mnemosyne transpõe o limite temporal e, ao mesmo tempo, condensa forças totalmente contraditórias: o tempo e a morte. O poeta, inspirado pelas musas que eram filhas de Mnemosyne, tinha o dom de cantar sobre o passado. Esse passado não era, entretanto, individual, mas primordial, original e heroico, o passado coletivo (Vernant, 2002, p.137).

 

 

Para os gregos, a memória não é a construção de um "pensamento no tempo", mas a evasão para fora dele. Ela não visa elaborar uma história individual na qual se afirmaria a unicidade do eu, mas sim realizar a união da alma com o divino (Vernant, 2002, p. 161).

O pensador helenista Jean Pierre Vernant (2002) em "Mito e pensamento entre os gregos", destaca que o culto a Mnemosyne evidencia um momento da história da civilização grega em que a tradição oral predominava. A "narrativa" era a técnica privilegiada no ato de contar histórias e a rememoração dependia do exaustivo treino de memorização da história, que era transmitida de geração a geração. Vernant sublinha que a sacralização de Mnemosyne, "marca o preço que lhe é dado em uma civilização de tradição puramente oral como foi a civilização grega, entre os séculos XII e VIII, antes da difusão da escrita" (Vernant, 2002, p. 137).

Por sua vez, Platão acreditava que a memória estava relacionada com a própria faculdade de conhecer. O saber não é outra coisa senão lembrar-se, é escapar para fora do tempo, enquanto que o esquecimento seria o abandono do conhecimento (Platão, 370 a. C./2007, p. 39). Encontra-se, em Platão, uma oposição à escrita. Para ele, a escrita engendraria nos homens o esquecimento pela falta do exercício da memória. Sua crítica à escrita é apresentada em Fedon (275), a partir da narrativa do mito de Theuth, o deus-íbis de Náucratis, criador do cálculo, da astronomia, da geometria e também das letras. No mito, Theuth apresenta ao Faraó do Egito sua invenção - a escrita - e a define como o melhor remédio para a memória, mas o Faraó rechaça essa ideia, afirmando que a descoberta, na verdade, provocaria nas almas o esquecimento de tudo quanto se aprende, devido à falta de exercício da memória. O faraó entendia que a recordação ocasionada pela escrita teria como fundamento sinais tomados do exterior, o que eliminaria toda espontaneidade da recordação. A escrita, para ele, seria um auxiliar para a recordação e não para a memória, já que a rememoração seria um esforço para reavivar as marcas internas das experiências vividas (Platão, 274b a. c., p.34).

Nesse contexto, é importante verificar que o fato de os gregos darem extremo valor à fala em detrimento da escrita, já denota um traço característico dessa civilização: a valorização da narrativa e a importância da presença do aedo, que com seu canto ou poesia, permite que as imagens carregadas de afetividade sejam restauradas na memória dos ouvintes. Na narrativa, a repetição é o que torna possível a revivescência da experiência. Dessa forma, podemos concluir que ela só possui um sentido se for dirigida ao coletivo.

É possível verificar, que a psicanálise, à semelhança dos gregos, apoia todo seu arcabouço teórico-clínico na oralidade. Foi a partir da escuta das histórias narradas pelas histéricas em sua clínica, que se tornou possível para Freud a construção do campo psicanalítico. Desde o início, Freud se ocupou em demonstrar a importância da linguagem na constituição da memória, o que resultou na descoberta de um poderoso e complexo sistema que possui leis e lógica próprias de funcionamento: o inconsciente. Por outro lado, Freud (1891), no ensaio sobre "As afasias" e na Carta 52 (1895) dirigida a Fliess, mostrou também a presença, na memória, de uma "escrita psíquica", que seriam as marcas ou traços deixados no psiquismo pelas palavras ouvidas, por imagens percebidas que constituem o conjunto de experiências vividas, também chamadas de representações (Vorstellung). A totalidade da relação do homem com essas marcas é o que foi nomeado como lembranças e esquecimentos. Freud, mostrou que toda a estruturação subjetiva se dá a partir da inscrição de traços.

Considerando tais questões, pretendo explorar neste trabalho as relações entre escrita e memória com o objetivo de evidenciar a importância do traço na constituição da memória. A meu ver, a contribuição da psicanálise é fundamental no sentido de indicar-nos um caminho que nos possibilite construir algumas respostas. Como afirma Maurano (2016, p. 208): "a psicanálise não se ocupa com o levantamento de representações coletivas as quais se supõe o poder de sintetizar valores unificadores de certos grupos, produzindo generalidades abstratas que tomam a memória social como memória de representações coletivas, perspectiva privilegiada por Halbwachs." Ao contrário, ela se ocupa "em tentar cernir os modos pelos quais a memória se constrói a partir de uma economia de forças que manifesta a presença de subjetividades, que são expressão da dimensão estrutural de linguagem que nos une enquanto humanos". Dessa forma, podemos afirmar que a especificidade da contribuição da psicanálise para essa discussão está justamente no fato de ela se ocupar com o jogo de forças em questão na constituição da memória, e não na simples descrição dos modos de expressão socioculturais desta. Por essa razão, quero evidenciar a contribuição de Sigmund Freud para o entendimento da memória social, ressaltando a pertinência do conceito freudiano de traço unário, bem como a contribuição do psicanalista francês Jacques Lacan em sua releitura da obra freudiana.

 

A memória enquanto campo de estudo

A memória, como campo de estudos, comporta um universo repleto de mistérios. Ela é o conjunto das relações que estabelecemos durante toda a vida e, por isso, abarca muito mais do que a soma das nossas experiências individuais. No que concerne à memória, tudo o que produzimos socialmente torna-se infinitamente superior ao simples agrupamento de nossas produções individuais. O impacto do social na memória levou o sociólogo francês Maurice Halbwachs, no início do século XX, a se dedicar, sobretudo em seu livro "Les cadres sociaux de la mémoire" (1925/1994), à criação de um novo conceito: a "memória coletiva". Halbwachs toma como ponto de partida as proposições apresentadas pelo sociólogo Émile Durkheim em "Representações individuais e representações coletivas" (1898) para pensar nas possibilidades da sociologia em relação à memória. O conceito de "memória coletiva" surge, então, em contraposição ao conceito de memória individual. A memória coletiva, em Halbwachs, é uma "narrativa que se produz em grupos que remete ao passado. Por isso, é carregada de afetos que conectam o passado, familiar e próximo, com o presente" (Lifschitz, 2015, p. 9). É, portanto, uma memória que se produz a partir do encadeamento das memórias individuais e das experiências compartilhadas em grupo.

A importância dessas proposições é inegável. Halbwachs escreveu seu nome na história das ciências sociais ao promover um corte que rompeu definitivamente com a concepção estritamente individual da memória que se impôs durante séculos. No decorrer do tempo, contudo, novas contribuições foram acrescentadas por pensadores das mais diversas áreas, no sentido de ampliar essa proposição inicial. Andreas Huyssen (2000), um dos mais importantes pensadores das questões da memória da atualidade, sublinha no livro "Seduzidos pela memória" a emergência da memória como uma preocupação cultural e política central das sociedades ocidentais. Como atesta, há no presente um deslocamento do foco do futuro para o passado, fato que lhe permite pensar em uma necessidade de "recodificação do passado", que se "iniciou depois do modernismo", promovendo um excesso de musealização do mundo (Huyssen, 2000 p. 9, 10, 15).

Tal enfoque na memória fez deslanchar os estudos que acabaram por estabelecer o campo da memória social. A memória social como campo de estudos é um conceito inacabado e, por essa razão, está em permanente construção, o que a torna um campo que possibilita o entrecruzamento, a transposição de saberes, entre diversas disciplinas. Não há, portanto, uma disciplina que possa reivindicar exclusividade no que tange à pesquisa em memória social, o que lhe dá o caráter de ser um campo polissêmico, transversal e, ao mesmo tempo, transdisciplinar (Gondar, 2005).

Como sublinha Gondar (2005), a noção de memória social constitui-se como um importante avanço em relação ao pensamento de Halbwachs, pois compreende não só a formação de memórias sociais e de grupos relativamente estáveis, mas, sobretudo, um campo de lutas e embates entre recordação e esquecimento. Tal embate deve-se à crescente midiatização da cultura, que coloca em destaque a questão da temporalidade, como afirma Huyssen:

As próprias estruturas da memória pública midiatizada ajudam a compreender que, hoje, a nossa cultura secular, obcecada com a memória, tal como ela é, está também de alguma maneira tomada por um medo, um terror mesmo do esquecimento. Este medo do esquecimento articula-se paradigmaticamente em torno das questões do Holocausto, na Europa e nos Estados Unidos, ou dos presos políticos desaparecidos na América Latina (Huyssen, 2000, p. 19)

É neste cenário que a noção de memória social se vai ampliando cada vez mais, como descreve Huyssen (2000, p. 37): "a memória vivida é ativa, viva, incorporada ao social - isto é, em indivíduos, famílias, grupos, nações e regiões... A memória é sempre transitória, notoriamente não confiável e passível de esquecimentos, em suma, ela é humana e social".

 

Memória e escrita: o traço como fundamento

Dentre os pensadores da memória, Nietzsche ganha um lugar privilegiado ao evidenciar a força exercida pelo social em sua produção. De maneira contundente, destaca as relações de força e de poder de uns sobre os outros, já apontando que a memória pode ser tomada como um produto social. Assim sendo, Nietzsche contribui de forma significativa para a construção do conceito de "memória social", o que não significa que tal conceito esteja acabado. Em "Genealogia da moral", Nietzsche indaga:

Como fazer no bicho homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento? [...] Esse antiquíssimo problema, pode-se imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que sua mnemotécnica. "Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória" [...]. (Nietzsche, 1887/2009, p. 46)

Encontrarmos em Nietzsche uma preciosa indicação da presença da marca, ou do traço, como prefiro chamar, na constituição da memória. Para Nietzsche, a memória surge a partir de uma marca gravada a fogo, o que indica a violência do traço e a dor que é infligida ao corpo. A memória nietzschiana é criada; ela deve seu aparecimento a condições sociais, "ela está referida a um campo de lutas e de relações de poder, configurando um contínuo embate entre lembrança e esquecimento" (Gondar & Dodebei, 2005, p. 7).

Maurano, no texto "O mal-estar na memória", em uma referência a Nietzsche, destaca que a dor infligida ao corpo tem por objetivo a memorização do ato que a gerou, dessa forma "a memória se inscreve muito facilmente no corpo com marcas, rugas, linhas de expressão, cicatrizes e sofrimentos" (Maurano, 2016, p. 216). As proposições de Nietzsche a respeito da memória apontam a presença de uma marca "gravada a fogo", indício da presença de um traço que serviria de fundamento para a constituição da memória social.

Na esteira desse movimento, podemos contar também com a contribuição de Sigmund Freud, pois seu olhar a respeito da memória possui extrema relevância para a compreensão dos fenômenos psíquicos envolvidos nessa questão. Desde suas elaborações no final do século XIX até seus últimos textos, a questão da memória ocupou um lugar privilegiado na obra freudiana. Freud pensa na memória como portadora de uma estrutura psíquica, para então destacar seu caráter social, seu dinamismo e suas implicações na cultura. Como salienta Gondar (2008), "teríamos em Freud um dos melhores exemplos de um modo de pensamento no qual a distinção entre memória individual e memória social não se aplica". De fato, em 1921, no texto "Psicologia das massas e análise do Eu", Freud formula uma crítica a respeito da pretensa dicotomia entre a psicologia individual e a psicologia social indicando que raramente a psicologia individual se acha em posição de desprezar a relação com outras pessoas. Dessa maneira, aponta que a psicologia individual é ao mesmo tempo psicologia social (Freud, 1921/2006, p. 81).

Um ponto que, particularmente, me interessa na abordagem freudiana sobrea constituição da memória, diz respeito às suas considerações acerca do surgimento do eu humano. No ensaio intitulado "Sobre o narcisismo: uma introdução" (1914/2006), Freud afirmará que o eu humano constitui-se a partir da experiência de encontro com o outro. Destaca que é a identificação com a imagem e com a palavra do Outro, aquilo que faz com que o eu promova o recalque das pulsões autoeróticas instituindo, assim, a divisão radical que caracteriza o sujeito humano (Souza, 2014, p. 30). Com essas proposições, Freud aponta o caráter de alienação ao desejo do Outro que a constituição do psiquismo humano comporta e, com isso, ultrapassa toda a barreira que separa o individual do social.

A descrição freudiana a respeito da memória fundamenta-se na hipótese da existência de uma "escrita psíquica", o que nos faz pensar na estreita relação entre escrita e memória. Em um de seus primeiros trabalhos, sobre as "Afasias" (1891/2014), mostrou que a memória é constituída por representações (Vorstellung), ou seja, pelas marcas ou traços deixados no psiquismo pelas palavras ouvidas, por imagens percebidas que constituem o conjunto de experiências vividas. Para Freud, a representação abarca tudo que é inscrito no psiquismo a partir da experiência de encontro com o semelhante. O campo representativo é responsável pela produção de sentido, o que indica que é em relação a esse campo que a realidade pode ser assimilada pelo sujeito. A representação palavra (Wortvorstellung), no texto sobre as Afasias, é composta pelos elementos acústico, motor (fala e escrita) e visual (leitura), e as representações de objeto ou "associações de objeto", como ele as chama, por elementos visuais, táteis e acústicos. Afirma Freud: "A representação-palavra está ligada à representação-objeto a partir não de todos os seus componentes, mas apenas através da imagem acústica" (Freud, 1891 [1977]/2014, p. 71). O que Freud coloca em evidência é que a representação-palavra, para significar algo, necessita do enlace à representação-objeto o que revela a importância da linguagem na constituição da memória, bem como o caráter social inerente ao encontro com o semelhante no início da vida.

Em 1895, no texto "Projeto para uma psicologia científica", utilizando uma linguagem fisiológica e descritiva, Freud apresenta um modelo hipotético de um aparelho de memória marcado por trilhamentos (caminhos) que teriam a função de escoar a energia psíquica. Fazendo avançar suas pesquisas a respeito da constituição da memória, levantará a hipótese de que o ser humano - em virtude de sua prematuração tanto física quanto psicológica - traz como marca estrutural o desamparado primordial. O desamparo primordial é o que revela a incapacidade do sujeito humano de garantir sua sobrevivência sem o auxílio de um semelhante. Ele está, portanto, marcado por sua dependência em relação ao outro.

Freud levanta a hipótese de que o nascimento é uma experiência marcada pelo desamparo oriundo do aumento de excitação no psiquismo que é sentida no corpo. Essa excitação, por sua vez, só pode ser eliminada por meio do que ele chamou de "experiência de satisfação", que é a primeira marca feita no psiquismo e que permitirá a constituição da memória, a aprendizagem e a consequente aquisição da linguagem. Esse momento configura-se pela entrada em cena de outro ser humano que intervém com seus cuidados, apaziguando o desamparo (aumento de excitação) experimentado pelo organismo, o que é sentido como um alívio da tensão. É, pois, a eliminação da tensão que provoca no organismo a sensação de prazer que caracteriza a primeira experiência de satisfação, tal como indica Freud:

O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é atraída para o estado em que se encontra a criança, mediante a condução de descarga pela via de alteração interna. Essa descarga adquire, assim a importantíssima função secundária de comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. [...] A totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que tem consequências mais radicais no desenvolvimento das funções do indivíduo. (Freud, 1895/2006, p. 370)

Verifica-se que Freud levanta a hipótese de que a experiência primitiva de satisfação constituirá o primeiro traço mnêmico (representação) inscrito na memória. Dessa forma, podemos afirmar que a descrição freudiana acerca da constituição da memória evidencia que esta se constitui a partir de traços mnêmicos, ou seja, de marcas deixadas pela experiência de encontro com o semelhante. Outro ponto que é destacado no "Projeto" é a presença de uma tendência do psiquismo de reeditar essa primeira marca de prazer proporcionada pela experiência de satisfação. Como afirma Maurano, "o psiquismo enquanto um aparelho avança para frente e insiste para trás pelas fixações nas fontes de prazer originais, ou seja, insiste nas marcas, nos traços de memória deixados por essas experiências", inaugurando um movimento pulsante motivado pelo desejo (Maurano, 2016 p. 217).

A fixação nas marcas de prazer e a consequente evitação do desprazer que, em último caso, seria o retorno da situação de desamparo, é o que condiciona o recalcamento, uma defesa psíquica constitutiva da própria estrutura psíquica do sujeito oriunda de um cisão, "um corte que nega a entrada na consciência ao representante psíquico da pulsão" (Maurano, 2016, p. 218). Freud pensa no recalque como um não querer saber, uma forma peculiar de esquecimento que, paradoxalmente, funciona também como uma maneira de conservação, de manutenção das marcas de desejo primitivas.

Na carta 52 (1896/2006), enviada ao seu amigo, o médico otorrino Wilhelm Fliess, Freud descreve a memória como um aparelho que se forma por "estratificação" em que o "material presente em forma de traços da memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias..." (Freud, 1896/2006, p. 281). Indica assim, que o traço que constitui a memória tem a capacidade de se alterar a partir de retranscrições periódicas derivadas das experiências, entretanto permanece o mesmo.

Luiz Alfredo Garcia Rosa (2004), em "Introdução a metapsicologia freudiana", estabelece uma interessante relação entre a memória e a escrita, ao afirmar que, na verdade, o que Freud tenta mostrar é a existência no psiquismo de "uma topologia dos traços", o que fica muito evidente na Carta 52, pois nela "o traço começa a tornar-se escritura", tendo em vista a utilização por Freud dos termos "signo", "inscrição" e transcrição".

 

 

Nessa carta, o que vemos é o abandono do modelo neurológico e o surgimento de um primeiro modelo abstrato da memória capaz de representar graficamente a sequência temporal de inscrições e retranscrições, permitindo-nos vislumbrar algo da história de um sujeito, como que escrita em um livro.

Em "A interpretação dos sonhos" (1900/2006) vamos encontrar a expressões traço, inscrição, cifra, hieróglifo, rébus, rastro, textura, dentre outros, o que nos remete a associação entre inconsciente, escrita e memória. Freud, ao comparar o sonho a uma escrita hieroglífica, apresenta pela primeira vez sua metáfora a respeito da escrita. Ele recorre ao hieróglifo para mostrar que a escrita do sonho é uma escrita não fonética, ou seja, figurativa que, no entanto, deve ser lida em seu valor significante e não no seu valor pictórico, como afirma:

O conteúdo do sonho, por outro lado, é expresso, por assim dizer, numa escrita pictográfica cujos caracteres têm de ser individualmente transpostos para a linguagem dos pensamentos do sonho. Se tentássemos ler esses caracteres segundo seu valor pictórico, e não de acordo com sua relação simbólica, seríamos claramente induzidos ao erro. (...) O sonho é um quebra-cabeças pictográfico desse tipo, e nossos antecessores no campo da interpretação dos sonhos cometeram o erro de tratar o rébus como uma composição pictórica, e como tal, ela lhes pareceu absurda e sem valor. (Freud, 1900/2006 p. 303-304)

É importante frisar, que Freud faz uso de noções que constituem a própria teoria da escrita quando afirma que alguns elementos presentes no sonho funcionam como "determinantes" empregados na escrita hieroglífica, que não visam a ser pronunciados, servindo meramente para elucidar outros sinais" (Freud, 1900/2006 p. 347). Na teoria da escrita, os determinativos são hieróglifos, ou seja, imagens não fonéticas que dão informações extras sobre o significado das palavras, distinguem palavras homófonas, além de servir de divisores de palavras. Desta forma, insistirá que a interpretação do sonho é, na verdade, um trabalho de "decifração".

Fica evidente que Freud concebe o aparelho psíquico como um aparelho de memória, cuja constituição está atrelada à linguagem, não sendo possível uma existir sem a outra. A memória para a psicanálise é um conjunto de traços que constituem o inconsciente, não permanecendo restrita apenas às suas funções de lembrança e de esquecimento. Aliás, na visada freudiana, o esquecimento é uma forma salutar de lidar com as fixações, pois "permite a retomada do fluxo da existência", o que evidencia que nós humanos operamos sempre a partir das "marcas e dos traços que deixam em nós" (Maurano, 2016, p. 216).

É nessa esteira que outro grande pensador das questões da memória surge, o psicanalista francês Jacques Lacan, cujo ensino foi profícuo no sentido de possibilitar um retorno aos textos freudianos, estabelecendo um diálogo destes com a linguística de Ferdinand de Saussure, com a antropologia de Claude Lévi-Strauss, além de incorporar à psicanálise os estudos da lógica e da matemática, criando uma topologia que fosse própria a esse campo.

A subversão promovida por Lacan foi justamente a de evocar a existência de uma ordem simbólica que coloca o sujeito em uma relação direta com sua própria fala, visto que antes mesmo de nascer, o sujeito é inserido em um mundo simbólico, ou seja, em mundo constituído por uma ordem simbólica. A linguagem simbólica insere o homem na cultura, ao mesmo tempo em que inaugura um modo diferente de relação com a própria realidade. O sujeito - ao ser inserido nessa ordem simbólica que existe antes mesmo de ele nascer - ocupa um lugar no sistema de relações, fato extremamente importante para cernir a importância da linguagem na constituição da memória social (Souza, 2014, p. 92).

Em "Função e campo da fala e da linguagem" (1953), Lacan destaca a importância do desejo na constituição do sujeito. Na ordem simbólica, o desejo é aquilo que permite que o vivente seja investido libidinalmente pelo outro responsável por introduzi-lo no universo humano. Em outras palavras, para que o ser vivente habite o universo humano, faz-se necessário que ele seja essencialmente desejado e reconhecido pelo outro. A ordem simbólica mostra que o homem, por estar inserido na linguagem, desvinculou-se de qualquer ordem natural regida por instintos, passando a ser regido por uma lei que estabelece a interdição do incesto, ao mesmo tempo que organiza e estrutura as relações e escolhas de objeto, criando as condições necessárias para que as relações sociais tenham alguma estabilidade.

A leitura que Lacan faz da obra freudiana foi eficaz em mostrar que o paradoxo que se depreende do pensamento freudiano diz respeito à noção de realidade, pois, enquanto o campo científico vê a realidade como um conjunto de dados imutáveis, um conjunto pronto, que pode ser apreendido através da observação rigorosa e onde a percepção não é colocada em questão em seu papel de apreendê-la, Freud a concebe como sendo psíquica, razão pela qual designa tudo o que abarca a relação do sujeito com o desejo inconsciente. Nessa senda, a partir do ensino lacaniano, a realidade é construída a partir da relação entre três registros que se entrelaçam: o Real, o simbólico e o imaginário. Para esse pensador, a forma como esses três registros interagem e se sobrepõem uns aos outros é o que vai possibilitar que o sujeito tenha alguma estabilidade em suas relações com o mundo.

No seminário sobre a Identificação, Lacan privilegia a noção de traço único tomado da segunda forma de identificação descrita por Freud no texto "Psicologia das massas e análise do eu" (1921). Entretanto, promove uma torção na medida em que constrói com base na noção de einziger Zug, um neologismo transformando o único (Zug) em unário, conferindo-lhe um caráter estrutural. Ele utiliza a hipótese do traço unário para se referir a um momento mítico "onde em algum lugar, para o sujeito tudo se marca" (Lacan, 1960-61/inédito, p. 91).

O traço unário se refere a existência do "Um primordial" constituído no lugar de uma falta, de um apagamento originário. É uma marca que, passando obrigatoriamente por um ponto de apagamento, sublinha a existência de uma diferença a cada repetição. Ele é o significante não de uma presença, mas de uma ausência, afirma Lacan no seminário "A identificação". A diferença é suportada pelo traço e sua repetição revela o sujeito na medida em que ele acaba por se incluir na contagem das repetições de seus atos. O sujeito da psicanálise é dividido, barrado, faltoso e desejante, só podendo advir do inconsciente.

Lacan, ao conceituar o traço unário freudiano, promove uma torção na medida em que passa de uma abordagem da identificação pelo viés do imaginário para outra, simbólica, tendo em vista que o traço é responsável por instituir a lógica do significante, cujo papel é marcar, a cada uma de suas voltas, uma diferença. É por essa razão que o sujeito na psicanálise está referido à linguagem, ou seja, à possibilidade de se fazer uso da palavra. O sujeito, portanto, é o sujeito do inconsciente, o que significa o mesmo que dizer que ele se manifesta pela via das formações do inconsciente, como indica Freud.

O sujeito, deste modo, deve ser tomado em sua dimensão de vazio, o que é o mesmo que afirmar que ele não vem ao mundo a não ser pela intervenção da palavra que procede do campo do Outro. Por essa razão, o sujeito sempre estará referido a uma alteridade radical. O inconsciente, como um conceito fundamental da psicanálise, encontra-se justamente entre o sujeito e o Outro. Por conseguinte, como afirma Maurano, o sujeito não se opõe ao social, ao contrário, apresenta-se como uma dobra deste (Maurano, 2016, p. 208).

Fazendo avançar a questão do traço unário freudiano, Lacan introduzirá a noção de letra mostrando sua relação com o sujeito. A letra, no seminário sobre a identificação, é definida como rasura de um traço anterior que foi apagado mediante a operação do recalque originário, constituindo-se como suporte material do significante.

Lacan, introduz a noção de letra no texto "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud", como ponto de partida para a escrita do nó borromeano constituído pelos registros Real-Simbólico-Imaginário. A princípio, a letra designa, essencialmente, a estrutura da linguagem na medida em que o sujeito está nela implicado. Vejamos o que Lacan introduz a respeito do sentido da letra:

Mas essa letra, como se há de tomá-la aqui? Muito simplesmente, ao pé da letra. Designamos por letra este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem. Essa definição simples supõe que a linguagem não se confunda com as diversas funções somáticas e psíquicas que desservem no sujeito falante. Pela razão primeira de que a linguagem, com sua estrutura, pré-existe à entrada de cada sujeito num momento de desenvolvimento mental. Note-se que as afasias, causadas por lesões puramente anatômicas nos aparelhos cerebrais que conferem a essas funções seu centro mental, revelam, no conjunto, distribuir seus déficits segundo as duas vertentes do efeito significante do que aqui chamamos de letra, na criação da significação. Indicação que se esclarecerá pelo que virá a seguir. Também o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome próprio. (Lacan, 1957/1998, p. 498)

A ideia de "tomar a letra ao pé da letra", como uma literalização do sujeito, pode ser entendida de duas formas: primeiro, a linguagem, como uma estrutura, "pré-existe à entrada que cada um ali faz num momento de seu desenvolvimento mental", o que explica o fato de Lacan referir-se à afasia, cuja causa se acha fundamentalmente determinada pela estrutura da linguagem. A instância parece indicar aqui a própria estrutura. Em segundo, essa literalização pode ser explicada pelo fato de o sujeito tomar emprestado à estrutura da linguagem o "suporte material de seu discurso", aqui designado como letra. A letra, como "suporte material", evidencia o que Lacan chama de "materialidade do significante", ou seja, sua localização, seu lugar. A linguagem, portanto, é designada como sendo material.

A relação entre o sujeito e a letra pode ser concebida na medida em que o sujeito só entra na ordem social quando está implicado num discurso por sua vez suportado, ou seja, quando ele próprio é determinado pela instância dessa materialidade singular que Lacan chama de letra. Não se pode, entretanto, conceber a materialidade da letra como sendo substancial, pois ela é matéria, porém não é substância (Nancy & Labarthe, 1991, p. 38).

Verifica-se, pois, que Lacan propõe uma nova teoria do sujeito a partir da ciência da letra, isto é, uma teoria do sujeito sem qualquer relação com a antropologia ou com a psicologia. A constituição do sujeito não se fundamenta sobre a anterioridade da comunidade ou da sociedade, mas sim sobre a anterioridade da linguagem, o que significa dizer que o sujeito lacaniano confunde-se com a primitividade radical da letra. O sujeito lacaniano, portanto, não é observável, não possui uma substância, mas sim uma materialidade que se deduz da letra. Por ser um sujeito que fala, não se pode confundir com o sujeito do conhecimento, cujo suporte é o pensamento, pois o pensamento não comporta mais do que uma fantasia. No Seminário 9 - A identificação Lacan destaca que "... nada suporta a ideia tradicional filosófica de um sujeito, a não ser a existência do significante e de seus efeitos" (Lacan, 1960-61/inédito p. 14).

É importante ressaltar que, no ensino de Lacan, a constituição da subjetividade é correlata de uma perda, um apagamento, sendo a apropriação pelo sujeito dos significantes oriundos do campo do Outro, o que produz esse apagamento. O recalcamento - ou o esquecimento originário - é, como indica Lacan, o apagamento do traço, sendo que a marca que fica constitui o que ele chamou de "letra". É impossível aqui não fazer uma remissão às considerações freudianas acerca do Bloco Mágico, uma superfície que recebe impressões passíveis de serem apagadas, mas que conserva as marcas da força exercida pela mão que porta o estilete.

A letra é tributária da passagem da imagem pelo significante, uma imagem apagada, um traço, uma rasura que se transforma em escrita na medida em que é apropriada pela linguagem. "A escrita como material, como bagagem", diz Lacan, "esperava para ser fonetizada, e é na medida em que ela é vocalizada (...) que a escrita aprende se posso dizer assim, a funcionar como escrita" (Lacan, 1960-61/inédito, p. 91).

Lacan entende que a fala é o que abre caminho para a escrita, ou seja, é a palavra que escreve pela primeira vez o que nunca esteve ali, pois por mais que se pense que o inconsciente é um reservatório de representações recalcadas, ele, na verdade, é um real, um vazio que a palavra constitui. De fato, a palavra comporta uma escrita. Assim, o aforismo lacaniano de que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", pode muito bem se referir a uma linguagem escrita (Machado, 2000, p. 19).

Se a incidência do significante é o que abre esse caminho, a possibilidade de questionar o que resulta de seus efeitos só pode ser feita a partir da escrita. Entende-se que a escrita como um encadeamento das letras, cuja função é a de instaurar a cadeia significante. A letra, portanto, tem a função de servir de suporte para os significantes. Isso significa dizer que a fala está ancorada na escrita, tal como Lacan afirma: "...a fala sempre ultrapassa o falante, o falante é um falado [...] se a escrita pode servir para alguma coisa, é justamente na medida em que é diferente da fala - da fala que pode se apoiar nela..." (Lacan, 1971/2009, p. 73, 75). O primeiro significante constitui-se como a primeira marca: "O traço unário, o próprio sujeito se situa nele e, inicialmente, ele se marca como tatuagem, primeiro dos significantes" (Lacan, 1964/1973, p. 138).

Lacan faz-nos ver que a incidência da linguagem no organismo marca a constituição da subjetividade. A relação entre o sujeito e a letra pode ser concebida na medida em que o sujeito só entra na ordem social quando está implicado num discurso por sua vez suportado, ou seja, quando ele próprio é determinado pela instância dessa materialidade singular que Lacan chama de letra. Não se pode, entretanto, conceber a materialidade da letra como sendo substancial, pois ela é matéria, porém não é substância (Nancy & Labarthe, 1991, p. 38).

 

Considerações finais

Na esteira de Nietzsche e Freud, veremos que, desde a Antiguidade, a produção de marcas é utilizada pelos homens como estratégia privilegiada para inscrever sua existência no mundo. Através das marcas, o homem faz-se perpetuar. Ele escreve sua história, ao mesmo tempo em que constrói sua memória. Por esse viés, talvez possamos pensar que, assim como o fato está para a história, o traço esteja para a memória. Os registros textuais, as fotografias, a construção de monumentos e, até mesmo, o gesto dos grafiteiros, ao espalhar sua marca pelos prédios e viadutos da cidade, são exemplos que evidenciam a propensão do homem a deixar marcas, rastros por onde passa.

Como sublinha Andreas Huyssen (2000), vivemos um momento no qual a apropriação e a preservação das memórias passadas coloca em cena uma enorme preocupação relacionada ao esquecimento. Não posso, contudo, deixar de perceber que a conservação dos traços e das marcas não implica necessariamente uma fixidez que impede a sociedade de avançar.

Passado, presente e futuro mesclam-se em grandes metrópoles, onde imponentes prédios históricos povoam a paisagem urbana ao lado de maravilhas arquitetônicas da modernidade. Londres, capital da Inglaterra, pode ser tomada como exemplo da convivência entre o que diz respeito a um momento passado da história daquela nação e o novo, que surge a partir do gesto criativo dos que a habitam no presente.

A beleza imponente do parlamento inglês com seu famoso Big Ben compartilha o cenário com a arquitetura moderna, cujos prédios se erguem com suas fachadas envidraçadas, dentre os quais se destaca de forma impressionante uma torre no formato de um projétil que aponta para o céu. A belíssima Tower Bridge compartilha a paisagem do Rio Tâmisa com a London Eye, a maior roda-gigante do mundo.

Outro exemplo que pode ser tomado é o recém-inaugurado Museu do Amanhã, do Rio de Janeiro, obra magnífica na qual o passado, o presente e o futuro se entrelaçam por meio do uso de equipamentos multimídia que projetam informações sobre os grandes inventores do passado, de forma que os visitantes possam interagir com as imagens. A própria ideia de museu como um lugar em que são depositados objetos do passado, precisa ser ressignificada em nossos dias. O Museu, na atualidade, é um espaço de convivência entre o passado, o presente e o futuro, fato que evidencia que a conservação dos traços e das marcas, caminha lado a lado com a produção do novo.

Walter Benjamim, um dos principais pensadores do campo da memória social, acreditava que a modernidade lança suas bases sobre ruínas, "sobre restos de construções antigas", ruínas essas que, quando "ressignificadas, podem trazer novos sentidos de experiência". Como salienta Regina Abreu no artigo "Memória social: itinerários poéticos-conceituais", a relevância do pensamento de Benjamim está no caráter utópico de seu projeto que imaginava "novas formas de existir a partir de fragmentos que permitam refletir sobre os elos espaço-temporais". A autora afirma ainda que, o "movimento proposto por ele é a transmutação de ruínas em alegorias, em que os sujeitos se apropriem do sentido de suas próprias existências" (Abreu, 2016, p. 48).

Tais considerações ressaltam que a memória possui uma estrutura na qual passado, presente e futuro amalgamados se estendem um sobre o outro, formando uma tessitura que rompe definitivamente com a ideia de linearidade do tempo. A linguagem é uma das mais importantes funções da memória. É essa trama composta por traços e marcas memoriais o que possibilita que o sujeito exerça sua força no mundo.

 

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Recebido em: 07/05/2018
Aprovado em: 01/08/2018

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