SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 issue2A criança e seu ludionIn the eyes of psychoanalysis author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.10 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2018v2p.266 

RESENHA

 

Criação, cuidado e (des)autorização na clínica e na formação do analista

 

Creation, caring and (un)authorization of the analyst in psychoanalytic clinic and in psychoanalytic training

 

Creación, cuidado y (des)autorización en la clínica y en la formación del analista

 

 

Priscila Frehse PereiraI; Ligia Maria DurskiII

IPsicanalista, Doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Psicóloga (UFPR). E-mail: priscilafrehse@gmail.com
IIPsicóloga, Doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) Pesquisadora externa do GILDA - Grupo Interdisciplinar em Linguagem, Diferença e Subjetivação (UFPR/CNPq). E-mail: ligiadurski@hotmail.com

 

 

 

Resenha do livro de Daniel Kupermann. Estilos do Cuidado: a psicanálise e o traumático. São Paulo. Zagodoni, 2017. 176 pgs.

A leitura de Estilos do Cuidado: a psicanálise e o traumático incita o psicanalista a questionamentos sobre limites, possibilidades e estilos do psicanalisar hoje. Ao cartografar a dimensão de cuidado que perpassa a constituição e transmissão da teoria e clínica psicanalíticas, Daniel Kupermann apresenta conceitos clínicos e metapsicológicos atrelados à dimensão ética, política e institucional da psicanálise.

De ponta a ponta, a preocupação sobre os possíveis efeitos iatrogênicos da psicanálise faz-se presente, o que se revela, sobretudo, no acento dado aos riscos do excesso interpretativo na escuta de pacientes de estrutura narcísica mais frágil, nos quais a problemática do trauma se torna evidente. Mas, para além da questão diagnóstica, a escrita de Daniel Kupermann apresenta também claramente uma crítica mais abrangente no que diz respeito aos riscos da idealização excessiva do fazer analítico e de possíveis excessos no que se refere a posições de submissão dogmática, tanto na relação analítica, quanto nas relações entre psicanalistas e seus espaços de formação e transmissão.

Nesse sentido, o livro traz uma efetiva contribuição tanto para o psicanalista mais ortodoxo, cuja prática e formação se dão em consultório particular e em instituições de formação clássicas, quanto para o psicanalista cuja atuação se dá em espaços institucionais mais amplos - como a rede pública de saúde, de proteção social, o judiciário - ou ainda para os psicanalistas, sobretudo em um número crescente dos da nova geração, que buscam uma formação plural, circulando por diferentes espaços de formação, entre instituições de psicanálise, grupos de estudo independentes e universidade.

Estilos do cuidado está dividido em três partes e 10 capítulos. A apresentação do livro e o resumo apresentado no início de cada um dos capítulos permitem ao leitor uma visão panorâmica do percurso do autor. Ainda que os capítulos sejam independentes, é possível notar que são perpassados pela construção de um estilo clínico singular, notável no modo como Kupermann articula as produções de Freud, Ferenczi e Winnicott. Estes três, sem dúvida, os principais autores de referência, ainda que Balint, Deleuze, Derrida, Foucault e Lacan sejam autores presentes e que perpassam, de maneira mais ou menos explícita, a construção dos argumentos. Na primeira parte, propriamente clínica, o autor apresenta os princípios para uma ética do cuidado, tendo como principal autor de referência Sándor Ferenczi, mas também Sigmund Freud e Donald Winnicott. Na segunda parte do livro, Kupermann retoma sua discussão sobre o humor, sublimação e os processos de institucionalização da psicanálise, abordadas em suas publicações anteriores (Kupermann, 2003, 2014), para, por fim, na terceira parte, propor um exercício mais livre de escrita e transmissão, retomando articulações teórico-clínicas para falar sobre as origens, a criança e o infantil. Nesta última parte, o autor recorre a manifestações do inconsciente (chistes, associação livre, lapsos) em uma apresentação panorâmica da constituição da clínica freudiana e as especificidades do tratamento psicanalítico de crianças e adolescentes.

Ainda que Ferenczi seja o autor que mais explicitamente fundamenta a articulação teórica de Daniel Kupermann - tanto nos princípios clínicos que apresenta na primeira parte do livro, quanto no próprio estilo crítico e indagador que perpassa a construção de seu texto - também, sua filiação freudiana faz-se evidente. Sobre isso, poderíamos, inclusive, arriscar certo paradoxo, no sentido de alegar que Kupermann seria "ferenczianamente freudiano", uma vez que não só questiona o enrijecimento presente nos processos e políticas da institucionalização da psicanálise, como, também, não se furta a questionar e criticar a teoria freudiana e a tendência ao dogmatismo daqueles que renunciam a uma postura crítica frente ao pai (da psicanálise).

Coerente com a traumatogênese ferencziana, um fio condutor que parece atravessar o pensamento de Daniel Kupermann quer seja em suas reflexões sobre a prática clínica, quer seja nos panoramas que o autor oferece sobre o campo da formação e da institucionalização da Psicanálise, é seu entendimento sobre a questão da desautorização (Verleugnung), frequentemente traduzida no campo psicanalítico por desmentido ou ainda por descrédito. Inspirado na traumatogênese ferencziana que, em linhas gerais, aponta o trauma subjacente à própria constituição do aparelho psíquico no sentido do excesso pulsional não simbolizado, Kupermann sublinha os efeitos nefastos do segundo tempo do trauma - o tempo da "desautorização".

A desautorização teria o efeito de um retraumatismo, por assim dizer, que aconteceria no momento da tentativa de enunciação do trauma: caso o testemunho não seja recebido e acolhido pela presença sensível de um Outro confiável que funcione como ferramenta de validação e suporte para o processo de elaboração da experiência traumática, o que ocorre é a perpetuação do "silenciamento de vozes capazes de contribuir para a elaboração psíquica dos episódios sofridos [e isso] tenderia a eternizar os mecanismos de desautorização traumática" (p.53). Nesse sentido, o que estaria em jogo no segundo tempo do trauma é algo da ordem de uma desapropriação subjetiva que resulta em um comprometimento da convicção das próprias percepções, uma anestesia da afetividade, a incapacidade de resistência aos imperativos e ideais vigentes e um bloqueio do pensamento crítico.

Kupermann parece bastante sensível ao caráter patogênico da desautorização, uma vez que esta tem a potência de subjugação e descrédito daquele que eventualmente se arriscaria a testemunhar um evento traumático, impedindo o necessário processo de elaboração da dor e do adoecimento, bem como a produção de sentido das experiências desestruturantes. Essa especificidade, ainda que apareça mais explicitamente no terceiro capítulo A "desautorização" em Ferenczi: do trauma sexual ao trauma social, parece-nos perpassar a construção das três partes do livro, como pretendemos sublinhar a seguir.

No campo da prática clínica, o questionamento dos efeitos da desautorização parece incidir diretamente nos princípios éticos destacados por Kupermann no primeiro capítulo, a saber: a hospitalidade, a empatia e a saúde do analista. Ao ser colocado (e colocar-se) em um lugar de autoridade, o analista pode operar como promotor de traumatismos, em vez de possibilitar o trabalho de elaboração e testemunho. Assim, a dissimetria e a hierarquia na relação entre analista e analisante pode adquirir contornos superegoicos e resultar em fator impeditivo da criação de sentido das experiências traumáticas inenarráveis. É, portanto, quando o analista consegue relativizar hierarquias e estar-com o paciente, respeitando sua condição de estrangeiro, como duas crianças que brincam, acessando a própria condição de desamparo e compartilhando a condição primordial e irredutível de infans que habita o humano, que ambos - analista e analisante - constituem uma comunidade de destino e de amizade para o compartilhamento de um viver criativo, o que viabiliza a emergência de processos criativos (e de elaboração) em análise. Tal circunstância se faz possível caso o analista esteja advertido dos princípios éticos de sua práxis e atento a modalidades de intervenção clínica que consideram a elasticidade da clínica e o brincar como horizonte clínico, tal como Kupermann as apresenta no segundo capítulo e retoma nos dois últimos capítulos do livro, em que trata do final de análise com crianças e adolescentes.

Ao resgatar o caso clínico freudiano conhecido como o "Homem dos Lobos", Kupermann reitera sua preocupação com os efeitos de um analista/ambiente que tenda a manter uma situação de mestria na relação (contra)transferencial, posto que tal circunstância manteria o paciente em uma situação excessiva de submissão e dependência, funcionando mais como uma reatualização da situação traumática, do que a tentativa de promoção de uma via de elaboração desta.

Especialmente na Parte 2 - Psicanálise, Instituições e Cultura, ao revisitar seus trabalhos sobre o humor, Kupermann parece também sublinhar o potencial patogênico da desautorização no campo da transmissão e da institucionalização da psicanálise. Além da pertinência de tal problemática no campo da prática clínica, portanto, a desautorização operaria, ainda, efeitos iatrogênicos no interior da própria formação em psicanálise.

No contexto de seus estudos sobre o humor, o autor sublinha que o fenômeno humorístico advoga a favor de uma relação peculiar entre ego e superego: aqui, invés de sádica e tirânica, encontra-se uma faceta superegoica benevolente e tranquilizadora. Assim, Kupermann defende que a metapsicologia do humor se oferece, na obra freudiana, como um paradigma do processo de criação sublimatória:

Há, de fato, importantes pontos de convergência entre sublimação e humor: ambos implicam processos que se situam na fronteira entre a defesa frente à angústia promovida pelos excessos pulsionais e o movimento criador; encontram suas fontes originárias no brincar infantil; indicam uma afirmação do sujeito e de suas experiências de prazer e de alegria apesar do reconhecimento dos limites impostos a qualquer triunfo onipotente; e, finalmente, produzem uma modalidade de laço social baseado não na repressão pulsional, mas no compartilhamento afetivo (KUPERMANN, 2017, p. 79).

Estaria, portanto, no estudo da metapsicologia do humor, uma via para pensar o trabalho de desidealização necessário à própria fruição da capacidade criativa humana - trabalho este que viabilizaria certa libertação dos grilhões de uma posição excessivamente submissa a figuras de autoridade, possibilitando o estabelecimento de modos inéditos de sociabilidade um pouco mais livres do anseio humano por onipotência e onisciência.

O campo da formação em psicanálise não estaria, logicamente, livre desses mesmos efeitos iatrogênicos vinculados por idealizações enrijecedoras e pela aderência excessiva a ideais normativos e a figuras de autoridade, que teriam uma função protetora e de regulação da vida social.

Na história da psicanálise, especialmente no que se refere ao seu processo de institucionalização, Kupermann destaca, no capítulo 6, a questão da análise didática - a análise obrigatória à qual o candidato a psicanalista se deve submeter - como uma ferramenta formativa participante das regras de formação instituídas pela IPA (International Psychoanalisis Association) e que pressuporia, em sua origem, a difusão da psicanálise regulada, legitimada e herdada de e para analistas "puro sangue", por assim dizer.

Mesmo a dissidência de Lacan com a IPA que possibilitou uma importante e divergente vertente formativa com a criação do dispositivo do passe e do autorizar-se psicanalista, é observada por Kupermann com certa desconfiança. Diante do excesso de submissão, hierarquia e (ab)usos de poder veiculados na formação em Psicanálise, quer seja no âmbito das diferentes escolas e instituições psicanalíticas, como no âmbito da Universidade, Kupermann propõe pensar em uma subversão da ordem, por assim dizer, em direção a uma perspectiva nômade que tensione os modelos formativos hegemônicos tradicionais no sentido de evitar a (re)produção de psicanalistas excessivamente obedientes, acríticos e inaptos à consideração da diferença e da alteridade.

Kupermann parece propor, assim, em consonância com sua crítica aos efeitos patogênicos da desautorização, uma espécie de elogio à adolescência, uma vez que está no trabalho de desidealização que perpassa o intenso trabalho psíquico da adolescência que se pode pensar a reedição e criação de novos laços sociais. Neste sentido, está na Parte 3 - Retorno às Origens e ao Originário, uma importante conclusão dos apontamentos do autor: a importância do devir criança e do devir adolescente para a emergência de processos criativos. A emergência da criatividade é considerada aqui não apenas na relação analista/analisante, mas na do próprio analista com seus autores de diálogo, com suas instituições de referência, com sua própria produção de saber, em sua análise pessoal, e com os analistas que escolhe como supervisor clínico.

Assim, ao desdobrar os riscos desautorização, Kupermann aponta caminhos a partir dos quais o autorizar-se analista pode fazer-se com cuidado, evitando a adesão submissa e ao mesmo tempo sem ilusão de garantias, levando em conta a solidão e o desamparo. O brincar compartilhado, o rir com o outro e o não saber como condição para criação são, assim, "bom índice de desapego dos emblemas fálicos" (p. 151), e apontam para a emergência da possibilidade de um gaio saber, não apenas em análise, mas também na formação do analista. O que se revela na seguinte indagação: "como formar para uma prática que se baseia na transmissão de um gaio saber, esse saber alegre que não se sabe?" (p. 152) Questão ousada e crítica, dada a predominância da angústia como tema no campo psicanalítico. Mas que outra posição se poderia esperar de um autor com uma verve ferencziana tão evidente?

 

Referências

Ferenczi, S. (2011) Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes. Tradução de Álvaro Cabral.         [ Links ]

Kupermann, D. (2003) Ousar rir: humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Kupermann, D. (2014) Transferências cruzadas - uma história da psicanálise e suas instituições. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 05/12/2017
Aprovado em: 25/04/2018

Creative Commons License