SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 issue1Freud reader, Lacan readerEthical reverberations of rust in Harun Farocki's cinema author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.11 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2019

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2019v1p.38 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Francesca Woodman: retrato da artista quando mancha

 

Francesca Woodman: portrait of the artist when stained

 

Francesca Woodman: retrato de la artista cuando mancha

 

 

José Maurício LouresI; Sonia BorgesII

IPsicanalista. Mestre e Doutorando em Psicanálise, Saúde e Sociedade (Universidade Veiga de Almeida). Professor convidado do curso de pós-graduação lato sensu em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-Institucional (Universidade Veiga de Almeida). Endereço: R. Ibituruna, 108 - Maracanã, Rio de Janeiro - RJ, 20271-020. Tel.: (21) 99969-9288. E-mail: mauricio.mauriciotl@gmail.com
IIPsicanalista. Doutora em Psicologia da Educação (PUC-SP). Docente dos Programa de Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade (Universidade Veiga de Almeida). E-mail: sxaborges@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo propõe uma reflexão sobre os limites do espaço da representação a partir da arte da fotógrafa americana Francesca Woodman. Abordar os modos de criação nas fotografias dessa artista, com o referencial teórico da psicanálise, permitirá uma discussão acerca do potencial da arte de criar representações capazes de criticar a própria natureza representacional, de modo a colocá-la em crise, rompê-la radicalmente, denunciando a opacidade do sujeito e de seus objetos.

Palavras-chave: FRANCESCA WOODMAN; FOTOGRAFIA; PSICANÁLISE; REPRESENTAÇÃO.


ABSTRACT

This article proposes a reflection on the limits of the space of representation from the art of the American photographer Francesca Woodman. To approach the ways of creation in the photographs of this artist with the theoretical reference of psychoanalysis, will allow a discussion about of the art's potential to create representations capable of criticizing the representational nature itself, in order to put it into crisis, to radically break it down, denouncing the opacity of the subject and his objects.

Keywords: FRANCESCA WOODMAN; PHOTOGRAPHY; PSYCHOANALYSIS; REPRESENTATION.


RESUMEN

Este artículo propone una reflexión sobre los límites del espacio de la representación a partir del arte de la fotógrafa americana Francesca Woodman. Abordar los modos de creación en las fotografías de esa artista con el referencial teórico del psicoanálisis, permitirá una discusión acerca del potencial del arte de crear representaciones capaces de criticar la propia naturaleza representacional, de modo a colocarla en crisis, romperla radicalmente, denunciando la opacidad del sujeto y de sus objetos.

Palabras clave: FRANCESCA WOODMAN; FOTOGRAFÍA; PSICOANÁLISIS; REPRESENTACIÓN.


 

 

Introdução

Francesca Woodman nasceu no final da década de 1950 e começou a travar seus primeiros contatos com a fotografia aos treze anos, quando ganhou uma máquina fotográfica de seu pai. Estima-se que tenha produzido mais de oitocentas imagens até a sua morte precoce, em 1981, aos vinte e dois anos.

Em 2011, o Museu de Arte Moderna de São Francisco realizou a primeira retrospectiva do trabalho de Francesca. Esta exposição foi exibida no ano seguinte, em menor escala, no Museu Guggenheim de Nova Iorque. Desde então, é crescente o interesse pelo trabalho da artista, cujas obras têm sido expostas em museus e galerias pelo mundo.

Embora se tenha encerrado muito precocemente o seu percurso pela arte, Francesca ganhou visibilidade e inspirou outros artistas, como Sophie Calle e Cindy Sherman, conhecidas por seus retratos conceituais. Marie Nipper, curadora de uma retrospectiva das obras de Francesca, realizada no Tate Liverpool, em Londres, no ano de 2018, descreve as fotografias da artista como imagens "íntimas e borradas [...] que captam momentos prolongados no tempo de forma surreal, humorada e dolorosamente honesta" (Nipper, s.d., online, tradução nossa).

 

 

As "imagens íntimas", muitas vezes chamadas de autobiográficas, são assim caracterizadas principalmente por serem, em sua maioria, autorretratos. Francesca considera o autorretrato uma maneira conveniente de fotografar o corpo, já que não dependeria de mais ninguém. Ainda assim, em muitos trabalhos, exibe suas amigas e modelos, mas adverte que estas sempre representam a ela própria. Quem, afinal, é o sujeito de suas fotografias? Ela mesma ou essas figuras instáveis, indeterminadas, que se negam ao conhecimento? Poderíamos afirmar que suas fotografias desvelam uma resistência à identidade; uma negação das qualidades do Eu enquanto imagem idealizada que busca representar o sujeito?

A arte de Francesca Woodman convoca-nos a refletir sobre o espaço da representação, do qual ela, ao se fazer mancha, se subtrai, problematizando o estatuto da presença e da ausência do objeto no campo visual. Suas fotografias mostram a perda, a dissolução, a desaparição da imagem. É nesse ponto no qual o objeto sai da cena fantasística e a imagem idealizada se decompõe e retorna como estranha, não decodificada, que a negatividade pode vir à superfície do fotograma sob a forma de objeto. Francesca parece ter encontrado nos usos estéticos do informe e da despersonalização um meio privilegiado de formalização, transformando o impossível de representar em uma espécie de fotografias do impossível.

 

Da realidade visível à presença invisível do objeto

A Renascença deixou como herança para a civilização ocidental, por mais de quatro séculos, o sistema de representação plástica do espaço em que se baseiam as criações artísticas desse período. Trata-se da perspectiva central - também denominada linear, geométrica ou albertiana -, um sistema fundado em leis científicas de construção do espaço que tentava dar conta de uma reprodução fiel da realidade visível, uma visão da natureza mais próxima daquela que o olho humano obtém.

Leon Battista Alberti (1404-1472) foi quem, naquele período, escreveu o primeiro manual sistematizado de perspectiva, em 1435. No estudo, estabelece que, no desenho e na pintura, as coisas vistas podem ser reduzidas a superfícies bidimensionais que figuram na tela a tridimensionalidade do motivo representado. A técnica consiste na circunscrição de um ponto de fuga para onde convergem as linhas imaginárias da composição, a partir do qual o artista cria planos metricamente calculados para que a profundidade de campo seja fielmente alcançada.

Nos três ensaios que compõem sua obra, Alberti (1435/2014) apresenta técnicas de composição, enquadramento, iluminação e cor que visam à criação da "bela forma", inclusive no que se refere à figuração do corpo humano. Para este autor, o quadro é a interseção da pirâmide visual, como um vidro translúcido de uma janela de onde se vê o mudo figurável.

A câmera fotográfica, ao se impor no lugar do desenho e da pintura no que diz respeito à aproximação mimética da realidade, surge como um recurso para a fixação do instante visto. Mas que preço tem essa fixação do instante para a fotografia? "Toda a representação do século XIX hesita sobre a resposta a essa pergunta", diz-nos Amount (2004, p. 92). E continua: "O instante é precioso por não ser passível de repetição e de imitação, pelo fato de encarnar o mistério do tempo" (Amount, 2004, p. 92). A imprevisibilidade do instante torna essa intencionalidade, de registrá-lo de modo fiel à realidade visível, insuficiente, não bastando, então, para fundar o realismo. E "quanto mais a arte pictórica parece confiar no instante, mais precisará reivindicar em alto e bom som o caráter artístico de seu projeto" (Amount, 2004, p. 92).

É nesse sentido que podemos situar a peculiaridade das criações de Francesca Woodman, que fixam não o instante visto, mas o "não visto". A artista cria ambiguidades entre figura e fundo; texturas, luzes e movimentos impõem-se em suas fotografias e inviabilizam total ou parcialmente a inteligibilidade dos motivos; produz imagens complexas e estilhaçadas, em que as linhas imaginárias da composição já não assumem papel unificador. Conforme afirma Francesca em suas anotações, seu objetivo com a arte é "mostrar aquilo que as pessoas não podem ver". Ao apresentar o corpo como objeto elusivo, indeterminado e instável, que se nega a ser uma imagem completa, corpo dissolvido e despedaçado que nos remete à situação primordial de fragmentação, Francesca desvela o que parece resistir à visibilidade, uma imagem que foge à compreensão imediata - e, assim, nos convida a uma reflexão mais ampla.

 

A imagem do corpo e o corpo da imagem

Freud, em sua "Introdução ao Narcisismo", artigo de 1914, já nos mostrara que uma unidade comparável ao Eu não poderia existir no sujeito desde o início. A gênese do Eu dependeria de identificações que possibilitam a subjetivação da materialidade do corpo. É daí que parte Lacan para a construção de sua teoria do estádio do espelho, que permite relacionar a ocorrência dos efeitos psíquicos de despedaçamento do corpo à fragmentação originária.

Com sua teorização sobre o estádio do espelho, Lacan, ao longo de seu ensino, observa que o corpo tem três dimensões: real, simbólica e imaginária. No início, ao retomar a noção freudiana de narcisismo, Lacan esclarece o registro do imaginário pela ênfase dada à alienação da criança na imagem do semelhante e pelo que aí se precipita de uma Gestalt antecipatória do corpo próprio. Ressalta, ainda, que na experiência do espelho, a função do significante é fundamental, já que o que vemos no espelho é uma ilusão, imagem ideal que, pautada nos ditos do Outro, faz unidade do corpo e funciona como um modelo constitutivo, cuja pregnância introduz um falso domínio. Após formular o conceito de objeto a, em seu Seminário, livro 10: a angústia, Lacan (1962-1963/2005) acrescentou que o que está em jogo na satisfação especular é o entrecruzamento de olhares, que cobre a falta fálica e dá ao sujeito a ilusão de ter encontrado seu eu-ideal. Aliás, no escrito "Subversão do sujeito e dialética do desejo", ele já havia introduzido a metáfora da imagem do corpo como vestimenta (habillage) do objeto. "É a esse objeto inapreensível no espelho que a imagem especular dá sua vestimenta" (Lacan, 1960/1998, p. 832), funcionando como suporte do desejo na fantasia, não sendo "visível naquilo que se constitui para o homem a imagem de seu desejo" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 51).

Não podemos esquecer que, conforme nos ensina Lacan (1962-1963/2005), para que haja desejo, não apenas em sua face de falta, mas de apetência que visa algo, é preciso, também, haver um resto de empuxo não redutível à demanda que se endereça ao Outro. Lacan situa esse "empuxo da libido" na fratura entre dois termos: a e (- phi). O objeto a é o que do empuxo vai se investir na imagem e (- phi), resto do empuxo que não entra no imaginário, é a parte subtraída, uma reserva libidinal que não se investe no nível da imagem. Tanto a quanto (- phi) situam-se no nível da função do desejo e ambos não têm imagem, não se situam no tempo e no espaço.

Nenhuma fotografia possível?

Embora ambos careçam de imagem, cada um terá uma relação muito particular com esta. (- phi) não tem nada a ver com a mutilação - isso se vê, tem um peso imaginário -, por outro lado, o objeto a entra no imaginário, onde, contudo, não se vê - um ponto cego -, parte da libido que torna a imagem atraente - tratando-se da experiência do espelho, a própria imagem do corpo (Soler, 2012).

O objeto a, vazio, mas preenchido por suas encarnações fantasmáticas, dá à imagem "ar de presa" (Lacan, 1960/1998, p. 832). A imagem veste o objeto a e seu prestigio vem disso que ela envelopa. Ao velar o objeto a, a imagem o oculta, o dissimula, o encobre. Quando esse recobrimento falha e é possível entrever o objeto, há o efeito de Unheimliche, a angústia que se produz quando algo aparece lá onde nada deve aparecer, lá onde (- phi) não aparece. Na angústia, o que aparece não é o objeto a, mas algo que ele evoca.

Ademais, em seu Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/2008), Lacan aborda o objeto a em sua incidência de olhar, que não deve ser confundido mais com o visível, pois se trata de um objeto inapreensível. Há também, no entanto, algo de inquietante, de ameaçador nesse objeto se ele não for constantemente "desarmado". A imagem anteparo (fantasia, quadro, cena, sonho, outro especular) é uma maneira pela qual o sujeito pode domar o olhar, uma operação simbólica que, ao captar o olhar pulsante e domesticá-lo em uma imagem, é capaz de aplacar tanto o apetite do olho que busca pelo objeto perdido, quanto o olhar invasivo do Outro. Trata-se de um véu de representação que recobre o objeto. Em outras palavras, o anteparo, ao fazer mediação entre o sujeito e o olhar, protege o sujeito deste último, velando o objeto que causa o desejo a partir de uma negociação que culmina em uma rendição do olhar. Estaria Francesca burlando essa negociação? Ou a efetuaria de modo peculiar?

Segundo Lacan (1964/2008, p. 181), o sujeito, "mais ou menos reconhecível, está em algum lugar, esquizado, dividido, habitualmente duplo, em relação a esse objeto que [...] não mostra seu verdadeiro rosto". Enquanto na relação escópica o mediador entre o sujeito e o objeto é a imagem gestáltica do corpo próprio; tratando-se do quadro, o mediador entre o sujeito e o ponto do olhar é o anteparo, a tela. Na medida em que o quadro entra em relação com o desejo, afirma Lacan (1964/2008, p. 109), "o lugar de um anteparo central está sempre marcado, que é justamente aquilo pelo que, diante do quadro, sou elidido como sujeito do plano geometral".

Quando não há anteparo, a Coisa se mostra sob a forma de olhares perseguidores, espectros, vozes sem corpo, sussurros... São os fenômenos que observamos na psicose. Nessa estrutura clínica, objeto não está perdido e retorna no campo da realidade: a tela falha e o olhar aparece no primeiro plano, sem nenhum recobrimento de proteção. Já na neurose, o mecanismo do recalque implica a perda do objeto, por isso, o olhar não possui consistência, substância; não aparece, não pode ser visto. Assim, o olho, órgão do aparato sensorial, e o olhar, zona de gozo, funcionam inversamente. O olhar situa-se atrás do objeto percebido, encobrindo sua opacidade e a ausência fundamental de (-phi). A fantasia (anteparo) esconde o objeto e impede a castração de aparecer.

Roland Barthes (2003), em seu ensaio A câmara clara, propõe que algumas fotografias são efeito de um processo de dessimbolização do objeto, já que libertam a imagem de qualquer significado profundo e situam-na na superfície enquanto simulacro. Há um elemento, que Barthes nomeia de punctum, que nasce da cena, mas é lançado para fora dela, como uma flecha. O punctum seria aquele ponto, em uma fotografia, capaz de desestabilizar o enquadramento representativo. Aquilo que rasga a cena, que fura os olhos, uma fratura na imagem especular. Nesse sentido, o punctum estaria mais próximo da mancha do que do véu.

Enquanto o véu esconde a presença do objeto, a mancha, intolerável, o desvela, pois denota sua presença, que irrompe quando é levantado o véu da beleza, última barreira diante do horror, como diz Lacan (1959-1960/2007). A função da mancha é incompatível com a manutenção da imagem narcísica que reveste o objeto a, pois torna aparente o ponto em que o sujeito não é quem olha, mas é olhado. Ao invés de esconder, a mancha denuncia a presença do objeto no campo escópico.

Por muito tempo, o objeto de arte esteve relacionado à bela forma, pregnância de uma imagem unificada, gestáltica, determinando totalidades. Unificação e idealização. Mas a arte contemporânea ultrapassou essa barreira e, com ela, outros limites, mudando radicalmente a função e as modalidades da arte em nossa cultura. A imagem especular, i' (a), deixou de governar a abordagem do objeto pulsional pela arte e é essa separação entre o ideal e o objeto que nos permite entrever o a sem véu. Trata-se do lugar onde a constituição da imagem mostra seu limite, lugar de angústia.

Foster (2017), ao abordar o que chama de "realismo traumático" na arte, defende que uma parte da arte contemporânea se "recusa a antiga diretiva de pacificar o olhar" (Foster, 2017, p. 136). E continua: "É como se a arte quisesse que o olhar brilhasse, que o objeto se sustentasse, que o real existisse, em toda a sua glória (ou horror) de seu desejo pulsátil, ou ao menos evocar essa condição sublime" (Foster, 2017, p. 136). O autor cita, como exemplo, as obras que produzem uma ilusão capaz de denunciar e quebrar a própria ilusão (como o efeito anamórfico do quadro Os Embaixadores, de Hans Holbein), ou a arte abjeta. Para Lacan (1959-1960/2008, p. 166) "o que buscamos na ilusão é algo através do qual a própria ilusão se transcende, se destrói, mostrando que está lá apenas como significante".

O objeto, situado normalmente atrás da imagem, objeto que deveria estar velado, é, então, apresentado como se não houvesse cena para encená-lo ou moldura de representação para contê-lo. Isto é representável? Certamente que não, a menos que seja instituído um modo muito particular de formalização da obra de arte, modo este que estamos buscando apreender com a artista em estudo. Francesca, ao recortar na imagem a borda de sua ausência, não se deixa submeter às formas fetichizadas do imaginário e desvela o que a ilusão especular tenta recobrir: a face opaca do objeto enquanto resto, dejeto, materialidade sem imagem, desprovido de estrutura de apreensão.

Ao sair do campo da objetividade da representação realística, a artista penetra no campo da objetalidade, campo que muito interessa à psicanálise. E mostra-nos que há algo para além do duplo especular, essa imagem falaciosa, enganadora, que tende sempre a ser completa e perfeita. Aí está o caráter disruptivo e transgressor de sua arte, que é capaz de desestabilizar o enquadramento representativo de modo impreenchível, radicalmente singular e até mesmo brutal, "convocação pungente entre a ameaça e a poesia, a angústia e o prazer" (Rivera, 2013, p. 186).

Em seu Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, Lacan afirma: "É evidentemente por o verdadeiro não ser muito bonito de se ver, que o belo é, senão seu esplendor, pelo menos sua cobertura" (Lacan, 1959-1960/2008 p. 265). Diante do inominável, Francesca produz em suas fotografias um fenômeno estético que, embora provoque inquietação e estranheza, ainda assim, pode ser situado na experiência do belo - mesmo que uma beleza gélida, como a de Olímpia, personagem do conto de Hoffmann, O homem de Areia. A artista faz fratura na imagem, de modo que nos permite entrever o que deveria permanecer oculto: esse vazio que nos olha, nos concerne e nos constitui.

 

Considerações finais

Uma das principais características do pensamento do século XX foi livrar a noção de sujeito de certa ideia de egoidade, de identidade. É bem possível que, no centro de toda a discussão sobre a representação, estivesse em jogo a possibilidade de um conceito não substancial de sujeito, que não é mais dotado de profundidade psicológica (Safatle, 2006). Para que essa concepção de sujeito seja sustentada no campo da Arte, é necessário que, a todo momento, esta seja capaz de expor a ausência de substância do sujeito e de seus objetos, sempre opacos. A função do artista seria então a de impor desafios à sensibilidade comum, na contramão do universo de comunicação fácil da publicidade pelo seu impacto e visibilidade (Duarte, 2008).

Francesca Woodman teve a coragem de se ver desaparecer na imagem, de se fotografar como o nada, a subtração, a negação de si. Ao manipular o instante na fotografia, revelou, à sua maneira, algo da realidade não visual - intervalo que não se esgota no simples escoamento de uma duração restituível, mas sucessão irregular de fixações e ausências. Manejou sua máquina fotográfica percorrendo e explorando a realidade visível para, de repente, recortá-la, abrindo uma fenda, convocando-nos a refletir sobre como a imagem, paradoxalmente, pode tornar visível o que dela própria não o é - a presença invisível do objeto no campo da representação.

 

 

Há sempre um impossível de se ver, algo que está ausente no campo das aparências. As obras de Francesca problematizam a fotografia como reprodução estática da realidade, já que o seu trabalho, de algum modo, diz respeito à verdade como efeito de uma quebra de sentido. Se a imagem, devido ao caráter ilusório e alienante, sempre bloqueia a verdade, como ensina Lacan, é, contudo, a partir dela também que a verdade pode enunciar-se. No Seminário 23: o sinthoma (1975-1976/2007), Lacan interroga a relação entre o real e a verdade, e conclui com a afirmação de que o real é o que não possui sentido algum. O real diz respeito a um campo de experiências subjetivas que não podem ser devidamente simbolizadas - por isso, a relação que se estabelece entre o real e o traumático. Aliás, traumática também é a presença do objeto como aquilo que resiste à apreensão.

 

Referências

Alberti, L. B. (2014). Da pintura. São Paulo: Editora UNICAMP. (Original publicado em 1435)        [ Links ]

Amount, J. (2004). O olho interminável [cinema e pintura]. São Paulo: Cosac & Naify.         [ Links ]

Assoun, P-L. (1999). O olhar e a voz. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Barthes R. (2003). A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Didi-Huberman, Gs. (2010). O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Duarte, P. S. (2008). Arte brasileira contemporânea: um prelúdio. Rio de Janeiro: Silvia Roesler Edições de Arte.         [ Links ]

Freud, S. (2006). Introdução ao narcisismo. Em: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIV. (Original publicado em 1914)        [ Links ]

Foster, H. (2017). O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: UBU Ed.         [ Links ]

Krauss, R. (2014). O fotográfico. São Paulo: Gustavo Gili.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Original publicado em 1949)        [ Links ]

Lacan, J. (1995). O seminário, livro 2: os escritos técnicos de Freud, 1954-1955. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). Observações sobre o relatório de Daniel Lagache. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Original publicado em 1961)        [ Links ]

Lacan, J. (2008). OSeminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ].

Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: a angústia, 1962-1963. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ]

Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). De nossos antecedentes (1966). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Original publicado em 1966)        [ Links ]

Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma, 1975-1975. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ]

Laurent, E. (2016). O avesso da biopolítica. Rio de Janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

Machado, A. (2015). A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo: Gustavo Gili.         [ Links ]

Nipper, M. (2018). Life in motion: Egon Schiele/ Francesca Woodman. Disponível em: https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-liverpool/exhibition/life-motion-egon-schiele-francesca-woodman. Acesso em: 11 agos. 2018.         [ Links ]

Rivera, T. (2013). O avesso do imaginário. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Safatle, V. (2006). A paixão do negativo - Lacan e a dialética. Editora UNESP.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 15/11/2018
Aprovado em: 02/02/2019

 

 

Notas:
1) Trecho de anotação de Francesca Woodman, transcrito do documentário The Woodmans (2010), dirigido por Scott Willis.
2) Ibid. Ibidem.

Creative Commons License