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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.11 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2019

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2019v1p.61 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

A visão da adormecida no filme O espelho de Tarkovski

 

The vision of the sleeping woman in Tarkovski's film The mirror

 

La vision de la dormeuse dans le film 'Le mirroir' de Tarkovski

 

 

Marisa Terezinha Garcia de OliveiraI; Liliane Seide FroemmingII

IEspecialista em atendimento clínico (UFRGS). Mestre em Psicanálise Clinica e Cultura (UFRGS), Participante do grupo de pesquisa A psicanálise e a clínica na Universidade (UFRGS). E mail: mtgoliv@gmail.com
IIDoutora em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS) Professora Associada, Departamento de Psicanalise e Psicopatologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise Clinica e Cultura, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ramiro Barcelos, 2600, Bairro Santa Cecília, Porto Alegre, RS, Brasil. CEP: 90035-003. Telefone (51) 3308-5066. E-mail: lilianefroemming@gmail.com.br

 

 


RESUMO

O o ensaio de Starobinski La vision de la dormeuse, sobre a obra pictórica The Nightmare (Füssli, 1792), provocou-nos uma experiência de fluxo de elementos visuais de e para a cena da levitação de Maria no filme O espelho de Tarkovski (1974). Propomos que estcena seria uma imagem que se desdobra para além da sua própria visibilidade num campo de olhar em que condições de aparição da aura poderiam configurar-se como teorizado por Walter Benjamin. São discutidas aproximações entre a imagens poéticas de Tarkovski e sensações de déjà vu e reminiscências que Freud atribui ao contato com fantasias inconscientes produzindo angústia.

Palavras-chave: PSICANÁLISE; PESADELO; ANDREI TARKOVSKI; CINEMA; BENJAMIN; WALTER.


ABSTRACT

By reading Starobinski's text La vision de la dormeuse, an essay on the pictorial work The Nightmare (Füssli, 1792), caused an experience of flow of visual elements from and into the levitation scene of Mary, in Tarkovski's film The Mirror. We propose that that scene unfolds itself beyond its own visibility into a field of gaze in which conditions of appearance of the aura could be configured as theorized by Walter Benjamin. Approximations are discussed between Tarkovsky's poetic images and déjà vu sensations and reminiscences which Freud attributes to contact with unconscious fantasies producing anguish.

Keywords: PSYCHOANALYSIS; NIGTHMARE; ANDREI TARKOVSKI; CINEMA; BENJAMIN, WALTER.


RÉSUMÉ

L'essai de Starobinski La vision de la dormeuse, sur l'œuvre picturale The Nightmare (Füssli, 1792), nous a provoqué une expérience fluide d'éléments visuels de et vers la scène de la lévitation de Maria dans le film Le Miroir de Tarkovski (1974 ). Nous proposons que cette scène soit une image qui se déploie au-delà de sa propre visibilité dans un champ de regard dans lequel les conditions d'apparition de l'aura pourraient être configurées selon théorisé par Walter Benjamin. Des approches sont discutées entre les images poétiques de Tarkovski et les sensations de déjà vu et les réminiscences que Freud attribue au contact avec des fantasmes inconscients produisant de l'angoisse.

Mots-cles: PSYCHANALYSE; CAUCHEMAR; ANDREI TARKOVSKI; CINEMA; BENJAMIN, WALTER.


 

 

 

A ilustração de Füssli, The Nightmare (1791), retrata um sonho de angústia e inclui a sonhadora e seu sonho. Vemos a personagem dormir e vemos ao mesmo tempo aquilo que ela vê em seu sonho. O quadro equivale à narrativa do sonho de alguém, mas o sonhador seria também o pintor e com ele os que olham para o quadro e se tornam cúmplices do tratamento dado à figura feminina: deitada sobre o dorso recurvado, abdômen elevado, braços relaxados, com uma criatura a pressionar seu peito. As formas atribuídas a esta criatura sobrenatural são incontáveis: gato, macaco, pássaro, demônio.

Para Starobinski (1972), esse quadro é uma ilustração de um conceito de pesadelo ligada tanto à imaginação popular quanto à explicação médica que atribui ao pesadelo sensação de sufocação. A representação do sonho de angústia carregaria a convicção de seu destinatário, leitor ou espectador e seria uma imitação e não uma simples definição ou explicação. Um sonho bem imitado daria ao espectador o sentimento do déjà vu, da verdade onírica, da probabilidade na experiência do irreal, pouco importando se o pintor ou o poeta evoquem uma experiência pessoal original ou uma imagem literária. O déjà vu assim como a chamada fausse reconnaissance são ilusões em que buscamos aceitar algo como pertencente ao nosso Eu, nos diz Freud (1936/2010). Nesses momentos de déjà vu, algo que corresponde à recordação de uma fantasia inconsciente é tocado (Freud 1901/1996) - é uma experiência pessoal.

Assim como o sonho, as obras de arte figurativas imitam os objetos que representam, e fornecendo esta imitação, elas fazem outra coisa desses objetos. No Seminário 7, A ética da psicanálise, Lacan (1959-1960/1997) comenta que "quanto mais o objeto é presentificado enquanto é imitado, mais abre-nos ele esta dimensão onde a ilusão se quebra e visa outra coisa", renovando a relação com o real e "projetando uma realidade que não é absolutamente a do objeto representado" (p. 176). Seria talvez o despertar de uma nova realidade que "fulgura o chamado da memória do sonho" (Didi-Huberman, 2014, p. 193) e considera o que nos olha verdadeiramente no que vemos. Essa dimensão dialética da imagem, discutida por Didi-Huberman (2014) a partir de Walter Benjamin, atribui à obra de arte moderna o fato de não dever nem à novidade absoluta nem à sua pretensão de retorno às fontes, e de ser uma interpenetração do arcaico e do moderno. Essa dialética visual manifesta o poder de aura, que não é nem pura sensorialidade, nem pura memoração (Didi-Huberman, 2014, p.170).

 

 

Na obra de Füssli, a imaginação do pintor é submetida ao texto poético e aos objetos culturais pré-existentes. É o prolongamento de leituras e não de criações originais, sendo difícil discernir entre o que lhe pertence e o que pertence aos dados literários que ele interpreta. São as lembranças de Homero, de Shakespeare, que se tornaram figuras, nos diz Starobinski (1972). A obra passa da generalidade dos livros à particularidade da cena privada. Fussli transporta a objetividade do texto - ao qual a realidade resiste, conforme debate entre Goddard e Lanzmann citados por Motta (2016) - à subjetividade da visão de imagens - que podem depor sobre o real. Há prevalência do desenho sobre a cor, que é um dos aspectos essenciais da arte neoclássica ao pretender ligar-se aos mestres italianos do ideal (como Rafael, Miguel Ângelo e da Vinci), ou atingir a verdadeira fonte dos modelos helênicos. É a doutrina da nostalgia e da reminiscência que, para além de modelos culturais, deseja remontar às realidades eternas segundo a via sugerida por Platão e os neoplatônicos. O traço, o contorno, a perspectiva têm um papel capital por suscitar a reminiscência ou a fausse reconnaissance que nos faz experienciar o déjà vu onírico. Os objetos, as figuras, os lugares são representados em sistemas de relações insólitas que parecem compor o pano de fundo de nossos sonhos

A pintura The nightmare, de Füssli, evocou-nos a cena do sonho de levitação de Maria no filme O espelho (1974). Na cena, em preto e branco, para evidenciar um mundo segundo, sem seus atributos de realidade, privado do sol do dia verdadeiro, Tarkovski retira os acidentes da matéria como a cor, segundo a via sugerida por Platão (1963). As lembranças dessa outra realidade seriam as reminiscências obtidas não pelos sentidos, mas pelas ideias, e a demonstração da existência dessas realidades imutáveis contempladas antes do nascimento é desenvolvida no diálogo Fédon. A referência à outra realidade que não a do estado soviético, no tempo do governo stalinista, tenha sido talvez o motivo da recomendação do conselho artístico da Mosfilm(1) citada por Jallagueas (2017, p.30) de que "a cena metafórica da levitação da mulher é pouco convincente e deve ser removida".

São também reminiscências as causas dos sofrimentos dos histéricos, diz-nos Freud (2003), e Lacan (1959-1960/1997) aproxima os mecanismos do sofrimento histérico à produção artística caracterizada por uma organização em torno de um vazio, que permanece no centro. Para Lacan (1959-1960/1997), a produção artística procura a Coisa, o outro absoluto do sujeito, o impossível do real. De certa forma, há uma semelhança entre esse impossível e a reflexão de Tarkovski (2010, p.42) sobre a arte: "A ideia de infinito não pode ser expressa por palavras, ou mesmo descrita, mas pode ser apreendida através da arte, que torna o infinito tangível". Já a conduta histérica, tem por objetivo recriar um estado centrado pelo objeto, na medida em que esse objeto é de insatisfação, nos diz Lacan (1959-1960/1997, p.70). O sofrimento histérico resulta de recalcamento de representações incompatíveis e insuportáveis relativas ao trauma. Como não há representação psíquica do trauma/choque, as falsas lembranças, as reminiscências, tendem a provocam o sofrimento histérico.

Voltando ao filme, Maria dorme e levita com os cabelos soltos. Um tecido envolve seu corpo; braços e pernas estão desnudos. O marido, aparentemente em transe, a observa. Pergunta se ela se sente mal. As palavras ecoam, mas ele não as articula e responde como se falasse pelo pensamento. O diálogo dá-se através das ideias. Acima do corpo adormecido e suspenso de Maria, aparece um pássaro voando. No diálogo "telepático" entre o personagem do marido e Maria (1h 32' 50"-1h 33' 48"), as seguintes frases são ouvidas pelo espectador:

Não é nada, tenha calma, tudo vai se arranjar (voz masculina).
É pena que só te veja em momentos difíceis (voz de Maria).
Está me ouvindo? (voz de Maria)
Estou livre de peso (voz de Maria).
Estás bem, Marouska, te sentes mal? (voz masculina)

Na face da personagem do marido, reencontramos a expressão paroxística (em choque) da presença ante a ausência da adormecida, olhos femininos fechados, olhos masculinos abertos.

Starobisnki (1972) comenta na cena do pesadelo de Fussli, a face do cavalo que teria uma expressão paroxística e uma sobre presença que corresponde à ausência da adormecida. As oposições são assim marcadas: olhos femininos fechados, olhos do cavalo abertos, inexpressividade e expressividade. O cavalo vem de fora e força o espaço interior: a aparição da cabeça e do pescoço na fenda das cortinas é uma violação. Quanto ao corpo do cavalo, ele fica na noite exterior à cena do sonho. O paralelo entre o cavalo e o marido nos evoca o caso da análise de uma fobia num menino de cinco anos (Freud, 1909/2006), Hans, que ao organizar sua vida de fantasia, elege o cavalo, como substituto do pai e objeto fóbico relacionado à angústia de castração. A substituição do medo do pai pelo medo ao cavalo preserva a relação do menino com o pai. Já o estatuto do cavalo, segundo Lacôte (2012), é de objeto a tomado no real.

O sonho de Maria ocorre após a personagem ter sido colocada na contingência de decepar a cabeça de um galo para a janta da mulher do médico. Maria, então, fecha os olhos, numa expressão em que se misturam exaustão e horror pelo ato executado. Algo nesta cena poderia evocar a angústia de castração2. No início do plano seguinte, quem está de olhos abertos como que em choque é o personagem do marido, que faz parte do sonho de Maria, e aparentemente, também a vê sonhando.

Benjamim (1989), no ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire, ao opor experiência (real ou acumulada, sem intervenção da consciência) à vivência (evento assistido pela consciência), enfatiza o paradoxo de que emprestar aos acontecimentos um caráter de choque subtrai esses acontecimentos do contexto da experiência. O vivenciado como choque em sentido restrito e incorporado ao acervo consciente seria estéril para a experiência poética.

Ainda segundo Benjamin (1989), a percepção sob a forma de choque característica da vivência impõe-se como princípio formal no cinema em função da apresentação de imagens de forma autoritária e fragmentada interrompendo a associação de ideias do espectador,

A poesia no filme de Tarkovski está fundamentada, entretanto, em uma experiência inconsciente de pensar por imagens que, segundo Freud (1923/2012, p. 26), estaria mais próxima dos processos inconscientes do que pensar em palavras, sendo também mais antiga Para reproduzir a lógica do sonho, a lógica da poesia, Tarkovski recorreu às lembranças que em alguma medida se aproximam das Lembranças Encobridoras nas quais "existe uma notável escolha feita pela memória entre os elementos da experiência" (Freud, 1899/1996 p. 290) vivida.As lembranças poéticas originam-se menos no que foi vivenciado do que no que foi fruto de um encobrimento, dissimulação. Dessa forma, Tarkovski dá mostras que a poesia do seu cinema pode estar fundamentada numa experiência, na qual o choque se tornou a norma, respondendo o questionamento de Benjamim (1989, p. 145) que encontrou em Baudelaire a sensação do moderno: elevar a vivência (do choque) à categoria de experiência.

Estar num sonho, ver-se no sonho e contar este sonho para alguém são atitudes que apontam a descoberta freudiana do descentramento do sujeito com relação ao Eu, algo que Tarkovski exprime com seu cinema de poesia, em especial na cena da levitação de Maria, que apresenta certa transcendência temporal e um fluxo de elementos visuais de e para a cena do pesadelo de Füssli.

Na interpretação de Starobinski (1972), seguindo sugestões de Freud e Jones, a ilustração de Füssli corresponderia à realização angustiante de um desejo incestuoso. O sonho de angústia, segundo Freud (1900/1996) na Interpretação dos sonhos, representa um desejo recalcado, mas com um disfarce insuficiente ou sem disfarce, acompanhado por angústia que o interrompe. Aí a angústia ocupa o lugar da distorção onírica (p. 690). Freud comenta que não há nada de contraditório na ideia de que a angústia possa constituir realização de desejo (p. 608). Seria ainda instrutivo também mostrar que se um sintoma é formado para evitar a irrupção da angústia (p. 609), um sonho também faria esse papel. Ainda nos diz que angústia neurótica provém de fontes sexuais.

Anzieu (1972) comenta um autêntico sonho de angústia "da mãe adormecida e dos personagens com bico de pássaro" que Freud tivera aos sete ou oito anos de idade e que somente trinta anos depois submeteu à interpretação. Na descrição freudiana, lê-se: Foi um sonho muito vívido, e nele vi minha querida mãe, com uma expressão peculiarmente serena e adormecida no rosto, sendo carregada para dentro do quarto por duas (ou três) pessoas com bico de pássaro e depositada sobre o leito (Freud, 1900/1996, p. 611). Este é o único sonho da infância de Freud descrito na "Interpretação dos Sonhos". A fonte cultural do sonho seria a Bíblia de Philippson, com ilustrações de deuses egípcios com cabeças de pássaros. Há associações de ideias sobre uma palavra grosseira de conotação sexual pronunciada pelo filho de um zelador, a visão do avô agonizante e finalmente uma interpretação do sonho a partir da elaboração secundária. O filho do zelador tinha o hábito de brincar com as crianças no campo em frente à casa. Chamava-se Phillippe, como um irmão mais velho de Freud, e pronunciara a palavra vögeln que designa o comércio sexual, semelhante a Vögel (pássaro) ilustrada pelas cabeças de pássaro. A expressão da mãe no sonho era como a do avô que alguns dias antes entrara em estado de coma. A interpretação por elaboração secundária é que a mãe morrera. Freud acorda e desperta os pais; a angústia cessa ao ver a mãe viva, mas pode trazer de volta, pelo efeito de supressão, um desejo obscuro, sexual que encontrou sua expressão no conteúdo visual do sonho. A criança que tem o sonho (Sigismund) não aparece no conteúdo manifesto, o que significa o interdito do incesto. Há apenas a mãe e dois (ou três) outras personagens. A Figura 15 da Bíblia de Phillippson que Freud recebera de seu pai, aos sete anos, representa o conteúdo manifesto do sonho.

Há ainda, um valor simbólico do pássaro para Freud (Anzieu, 1972), do abutre que ele vai encontrar em uma lembrança de infância e em um quadro de Leonardo da Vinci. Na coleção de antiguidades de Freud, Eva Rosenfeld (citada por Anzieu, 1972, p. 147) encontrou um deus egípcio com cabeça de falcão e um barco fúnebre, materializando as imagens de seu sonho de angústia. A lembrança de infância de Leonardo da Vinci, de um abutre que lhe fustiga os lábios com a cauda, significaria, segundo Freud (1910/2006), que a criança tinha conhecimento da ausência do pai e que se sentia solitária junto à mãe, simbolizada pelo abutre que, no antigo Egito, representava a maternidade. Freud (1910/2006) faz um estudo detalhado da obra Sant'ana e dois outros de Leonardo da Vinci (1513) e comenta que a tentativa de separar Ana e Maria, traçando o contorno de cada uma delas é infrutífera, pois estão fundidas entre si, como figuras mal condensadas de um sonho. Além disso, na roupagem de Maria, Oskar Pfister descobriu o contorno de um abutre, símbolo da maternidade, cuja cauda chega até a boca da criança que seria o próprio Leonardo.

Tarkovski apresenta uma grande predileção pelas obras de Leonardo da Vinci, abundantes no filme O espelho, por serem percebidas de forma ambígua ou contraditória, sendo impossível de falar da impressão final de seus retratos e mesmo se são simpáticos ou desagradáveis. Situam-se mais "além do bem ou do mal" (Tarkovski, 2010, p. 127).

Voltando à cena da levitação, perguntamo-nos: quem sonha? A mãe Maria, o marido, o cineasta, ou todos nós que vemos a cena? A mãe está livre de peso, o pai tem um semblante em choque, o pássaro sobrevoa a personagem que levita acima do leito e o cineasta ao filmar a cena, narra seu sonho como Füssli ao pintar The Nightmare.

Freud, em Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910/2006, p. 131), diz que a expressão mais comum, em alemão, para a atividade sexual masculina é vögeln ('passarear'). Nos sonhos, o desejo de voar representa verdadeiramente a ânsia de ser capaz de realizar o ato sexual, desejo que surge nos primeiros anos da infância. A partir de uma lembrança de Leonardo da Vinci, Freud comenta que estas surgem quando a infância acaba, sofrem então alterações e não são diferenciáveis das fantasias. Caberia aqui também apontar a primeira lembrança de infância de Tarkovski (2010), aos quatro anos de idade, descrita em Esculpir o Tempo: "Mamãe, veja ali um cuco!" (p. 29). Trata-se do pássaro que marca o tempo.

O sonho de levitação de Maria seria um sonho de angústia? A expressão do marido, em choque exigiria tratar a angústia da perspectiva da segunda teoria da angústia e sua relação com o trauma como fator desencadeante da angústia. Jorge (2017, p.201) comenta que Lacan retoma esta segunda teoria e associa à angústia "um sinal do real que invade a homeostase imaginária do eu". No seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Lacan afirma:

Não temos de buscar numa regressão a razão dos surgimentos imaginários que caracterizam o sonho. É na medida em que um sonho vai tão longe quanto pode ir, no âmbito da angústia, e que uma aproximação do real verdadeiro é vivenciada, que assistimos a esta decomposição imaginária, que é apenas a revelação dos componentes normais da percepção (Lacan, 1954-1955/ 1995, p. 212).

O que teria suscitado o desdobrar do olhar como pensamento entre as duas obras, o quadro de Füssli e a cena de Tarkovski, provocando uma sensação de déjà vu? Freud (1914/2012) designa este fenômeno de fausse reconnaissance e que é análogo, àqueles outros casos em que temos espontaneamente a sensação de já ter estado em certa situação, de já tê-la vivido (o déjà vu) sem que possamos validar essa convicção reencontrando na memória aquela vez anterior.

Barthes (2012) compara uma imagem imóvel e as imagens do cinema. A tela do cinema seria um esconderijo, os personagens que saem dela continuam a viver: "um campo cego duplica incessantemente a visão parcial" (Barthes, 2012, p.23). No caso da imagem imóvel, no momento em que há punctum, um acaso que punge, cria-se "um campo cego", onde vive o personagem que sai da condição de borboleta fincada num painel. Trata-se finalmente de refletir sobre este "campo cego" ou um campo do olhar, que parece se aproximar do conceito de aura em Benjamin e da fantasia inconsciente freudiana. Silva (2013) chama de anacronismo a irrupção de memória temporal que ultrapassa a linha evolucionista da história da arte com diferentes tecnologias de representação de imagens que sobrevivem no tempo. A descrição desse método anacrônico decorre da experiência do fotógrafo Arthur Omar na sua reflexão sobre o processo criativo. No Afeganistão, ao retratar crianças brincando em um cemitério sufi, nos arredores de Cabul, encontrou-se com a estranheza absoluta, em um lugar perfeito para o surgimento de imagens fantasmas que sobrevivem no tempo. Das fotos obtidas, bem na borda de uma delas, chamou-lhe a atenção, em especial, a imagem de uma menina. Ampliou este detalhe da foto e com surpresa viu surgir uma imagem familiar "era uma menina de casaco marrom, lenço azul na cabeça e um brinco de pérola na orelha... Olhando para ele, sem que ele a tivesse percebido naquele instante vertiginoso em que a fotografia acontece". "Omar foi tragado", diz-nos Silva (2013, p. 59), pela experiência do tempo soprado de volta e pelo olhar da Moça com brinco de pérola de Johannes Vermeer (1665). Omar fotografou uma imagem sobrevivente no tempo segundo um atravessamento de elementos visuais, imagem que aparece, que lampeja em outros tempos, anacronizando a história. Passado, presente e futuro compartilham estas imagens atemporais, o que, em alguma medida, nos permite transpor esta característica e aproximá-las às imagens inconscientes e atemporais dos sonhos que, por sua vez, não são cronologicamente organizadas, e não são afetadas pelo tempo.

A obra pictórica de Füssli, The Nightmare (1792), comentada por Starobinski (1972) no ensaio La vision de la dormeuse, provocou na autora uma experiência de fluxo de elementos visuais de e para acena da levitação de Maria, no filme O Espelho (1974) de Tarkovski. Os cabelos de ambas as personagens adormecidas, os lençóis em desalinho, as outras duas personagens na cena, o macaco sobre a personagem de Füssli e o pássaro sobrevoando Maria são irrupções do imaginário que caracterizam o sonho e que tornam essas imagens anacrônicas, atemporais. A colocação freudiana, resgatada por Lacan é que o sonho demanda decifração, é um rébus e a interpretação seria a partir da elaboração secundária. Pressão no peito caracterizaria a angústia no quadro do Pesadelo, segundo Starobinski. No diálogo de Tarkovski, Maria diz que está livre de peso. A pressão no peito, e a ausência de peso seriam os significantes na cena do pesadelo, do sonho de angústia que articulam o imaginário e o simbólico. Já os olhares do cavalo e do marido apontam para o objeto olhar. Pode-se dizer, que "há um poder do olhar atribuído ao próprio olhado pelo olhante" que produz estranhamento e que é um aspecto da experiência da aura descrita por Didi-Huberman (2014, p.148). Seriam cenas que se desdobram para além da sua própria visibilidade num campo com condições de aparição da aura: "uma dupla distância, um duplo olhar (em que o olhado olha o olhante) e um trabalho de memória" (p.160).

Se a cena do filme de Tarkovski apresenta semelhança às imagens dos sonhos, imagens inconscientes, atemporais, enganadoras e que retratam a realidade psíquica, ela poderia ser associada às imagens resultantes de uma memória involuntária teorizada por Benjamin (1989), a partir da obra de Proust. A memória involuntária, ao contrário da memória voluntária, sujeita à atenção, resultaria da experiência que combina na memória, conteúdos do passado individual e coletivo, aquilo que não foi vivenciado. Imagens resultantes da memória involuntária distinguem-se pela aura que possuem e que os olhos não se fartam de ver, apesar de produzidas por um dispositivo técnico. Aura é um espaçamento tramado do olhante ao olhado, um poder do olhar atribuído ao próprio olhado. "Perceber a aura de uma coisa significa investi-la do papel de revidar o olhar" (Benjamin, 1989, p. 140). Assim, as imagens da cena tarkovskiana poderiam ser investidas do papel de revidar o olhar, isto é, emanariam uma aura, que ao tocar-nos, ao olhar-nos, produzem um choque, a angústia do encontro com o real.

Finalmente, Lacan (1998, p. 393) acerca do déjà vu, comenta ser um choque súbito que assinala a entrada na consciência desse eco imaginário, produzido no interior do simbólico, no registro da rememoração, no tempo, de um ponto "que corresponde às formas imemoriais que aparecem no palimpsesto do imaginário, quando o texto ao se interromper desnuda o suporte da reminiscência" (p. 393).

 

Considerações Finais

O ensaio de Starobinski sobre a pintura The Nightmare, de Füssli, ensejou a produção de um texto sobre a cena do sonho de levitação de Maria no filme O espelho de Tarkovski, pois, ao contemplarmos a pintura, produziu-se a sensação de retorno da cena do filme.

O conceito de aura em Walter Benjamin foi utilizado para possibilitar um entendimento do que ocorreu neste reencontro inusitado.

Algo é evocado ao olhar a pintura, e o que retorna é uma cena cinematográfica que nos toca, que nos olha, produzindo um choque. A experiência do choque para Benjamin (1989) resulta da capacidade de uma imagem aurática atingir-nos, tocar-nos, uma imagem em que o olhado olha o olhante.

O déjá-vu e as reminiscências também falam de retorno de imagens, de realidades e situações que sentimos como já vistas ou já vividas e cujo reencontro nos perturba.

Para Freud (1914/2012), nos fenômenos em que podemos enxergar a chamada fausse reconnaissance, o déjà vu, algo que corresponde à recordação de uma fantasia inconsciente é tocado. Há, portanto, um toque, um contato e, talvez, poderíamos acrescentar, um choque.

Lacan (1998) atribui ao sentimento de déjà vu ser um eco imaginário que ao entrar na consciência, produz um choque súbito.

Associamos, assim, ao conceito de aura em Walter Benjamin, termos psicanalíticos de fausse reconnaissance e déjà vu para dar conta dos efeitos das imagens de Tarkovski que se desdobram para além da sua própria visibilidade e ao nos tocar, depõem sobre o real.

É instrutiva, em suma, a proximidade possível a ser estabelecida entre a função do sonho e a função do sintoma, em se tratando, especialmente, do sonho de angústia. Para a formação clínica, é fundamental o estudo dos sonhos e da arte.

 

Referências

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Recebido em: 21/08/2018
Aprovado em: 03/02/2019

 

 

Notas:
1. Mosfilm foi uma unidade estatal diretamente vinculada ao Goskino (Comitê Estatal para Cinematografia) e criada em 1923 (Jallageas, 2017, p.33). Esse conselho artístico, sob a censura stalinista da época (anos 70), exigiu a retirada justamente da cena de levitação no filme O espelho, por desviar-se da ideologia do partido. Atualmente, a Mosfilm continua a produzir filmes.
2. "Para Freud, é o conjunto de consequências subjetivas principalmente inconscientes, determinadas pela ameaça de castração, no homem, e pela ausência de pênis, na mulher. Para Lacan, trata-se do conjunto dessas mesmas consequências, na medida em que são determinadas pela submissão do sujeito ao significante." (Chemama, 1995, p. 30).

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