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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.11 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2019

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2019v1p.113 

ARTIGOS LIVRES

 

(Im)possibilidade de investimento pulsional no trabalho: análise de um caso em clínica do trabalho

 

(Im)possibility of drive investment at work: a case study in clinical work

 

(Im)posibilidad de inversión pulsional en el trabajo: análisis de un caso en clínica del trabajo

 

 

Laene P. GamaI; Ana M. B. MendesII; Eliana Rigotto LazzariniIII; Fernando O. VieiraIV

IMestre do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. End.: SQN 205, Bloco C, Apartamento 303, Asa Norte - Brasília/DF. Cep: 70843-030. E-mail: laenegama@gmail.com
IIProfessora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. E-mail: anamag.mendes@gmail.com
IIIProfessora do Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. E-mail: elianarl@terra.com.br
IVProfessor do Departamento de Administração, Faculdade de Administração e Ciências Contábeis, Universidade Federal Fluminense. E-mail: prof.fernandovieira@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo trata da análise de um caso atendido pela escuta clínica do trabalho. O estudo tem como objetivo relacionar o investimento pulsional e seus destinos frente ao sofrimento vivenciado pelo trabalhador. O método utilizado está estruturado em três eixos: dispositivos para a escuta analítica, formação do clínico e supervisão. Os resultados indicam que novas formas de destino da pulsão devem ser encontradas para que o sujeito consiga investir naquilo que reconheça estar ao alcance de transformação.

Palavras-chave: TRABALHO; PULSÃO; CLÍNICA DO TRABALHO.


ABSTRACT

The article treats of a case, which was assisted by the Clinical Work listening. It has as main objective to relate the drive investment and its destinies to suffering experienced by the worker. The used method it is structured in three axes: devices for analytical listening, formation of clinicians and supervision. Results appoint new ways of drive destinies must be found, so the subject may invest in something that he realize that he can transform.

Keywords: WORK; DRIVE; WORK CLINIC.


RESUMEN

El artículo trata del análisis de un caso atendido por la escucha clínica del trabajo. El estudio tiene por objetivo relacionar la inversión pulsional y su s destinos frente al sufrimiento vivido en el trabajo. El método utilizado es la clínica del trabajo, estructurado en tres ejes: dispositivos para la escucha analítica, formación del clínico y supervisión. Los resultados indican que nuevas formas de destino de la pulsión deben ser encontradas para que el sujeto pueda invertir en aquello que reconozca estar al alcance de transformación.

Palabras clave: TRABAJO; PULSIÓN; CLÍNICA DEL TRABAJO.


 

 

 

O artigo tem por objetivo relacionar o investimento pulsional e seus destinos frente ao sofrimento vivenciado antes e após o adoecimento pelo trabalho. Parte-se do pressuposto de que o processo de adoecimento no trabalho é fruto de uma perversa organização do trabalho, considerados os modos de gestão regidos pela ideologia da excelência e do produtivismo, que imobilizam o sujeito quando este se depara com obstruções à realização do seu desejo no exercício profissional. Para fundamentar o argumento, utiliza-se a abordagem da Psicodinâmica do Trabalho e, de modo particular, construtos teóricos psicanalíticos sobre o corpo e o conceito de pulsão.

Compreender a impossibilidade de investimento pulsional é, portanto, um desafio que emerge desse atendimento, da demanda do sujeito que apresenta como queixa a vivência de "engessamento" do exercício profissional, por barreiras erguidas em um espaço laboral limitador. Na construção de seu histórico profissional, o sujeito adquire grande gama de conhecimento técnico e o emprega, ou pelo menos tenta empregá-lo, na minimização da dor alheia, através do exercício da medicina do trabalho. Atingir este objetivo, "cuidar do outro" no contexto do seu trabalho, ocorre principalmente através de emissões de relatórios técnicos profundamente substanciados sobre as causas de adoecimento dos pacientes periciados. Relatórios estes sistematicamente ignorados por sua instituição na figura do seu chefe imediato, que não reconhece o labor e a produção de conhecimento exigido na elaboração dos documentos e que não possui formação profissional compatível com as funções gerenciais que exerce.

Sentir-se impedido de ajudar o outro pela prática profissional e, sobretudo, perceber a aplicação do seu saber desautorizado por alguém de formação considerada "inferior" à sua, leva o sujeito a prostrar-se imobilizado e a desenvolver vários sintomas. Sintomas traduzidos em afasias, enrijecimentos musculares, dentre outros sintomas corporais paralisantes. A composição e permanência desses sintomas levam-no a um longo período de afastamento do trabalho por motivos de doença.

Esses sintomas retornam vívidos na clínica, quando, por exemplo, ao verbalizar a sobrecarga de trabalho, sente imediatamente dores lombares, ou ainda quando perde a voz momentaneamente ao narrar momentos em que não conseguiu verbalizar ante a chefia imediata o absurdo do cumprimento de algumas exigências, consideradas pelo sujeito como desprovidas de qualquer embasamento técnico e sentido.

Para o desvelamento da problemática da pesquisa, a saber, a paralisação do sujeito frente às limitações impostas pelo trabalho, traduzida também em sintomas corporais, é preciso recapitular a definição de trabalho na psicodinâmica do trabalho. Para Dejours (2012a), trabalhar é preencher a lacuna entre o prescrito e o efetivo, o que o sujeito deve dar de si mesmo, para modificar aquilo que não funciona, quando todas as prescrições foram seguidas escrupulosamente. O encontro entre o prescrito e o efetivo é chamado o real do trabalho, que se deixa conhecer pelo sujeito em forma de fracasso, como algo desagradável, doloroso, como um sentimento de impotência, angústia ou ainda de raiva, decepção e desânimo.

Enfrentar o fracasso e inventar novos caminhos acaba por provocar transformações profundas no sujeito; transformações essas que não se limitam ao espaço físico da execução do trabalho. Dizem respeito a toda a sua subjetividade revelada e modificada no confronto com o real do trabalho, que resiste à vontade e ao desejo. É nesse confronto com o real, na impossibilidade de empregar sua subjetividade, ao sentir-se tolhido em um processo criativo particular na elaboração de seus relatórios, que o sujeito sucumbe à doença.

A construção da subjetividade só se experimenta na singularidade corpórea, que se diferencia no sujeito não somente pela afetividade, mas também pelos destinos possíveis a essa história singular. Tal movimento de permanente construção da subjetividade, que passa pelo registro corpóreo e afetivo, permite um vir a ser que implica o registro da saúde mental, conforme aponta Dejours (2004). O vir a ser, para Aulagnier (2002), indica o compromisso resultante da relação psique versus mundo, pauta-se em razões e desrazões escolhidas pelo sujeito e redunda em consequências na sua relação com o corpo, com os outros e com ele próprio.

O corpo, retratado pela psicodinâmica do trabalho, que aloja a subjetividade e é convocado ao trabalho, não é o corpo biológico, e sim o descrito pela psicanálise. O corpo que se experimenta efetivamente, engajado na relação com o outro, esse segundo corpo, que se constitui a partir do biológico, o corpo erógeno, resultante da experiência mais íntima de si e da relação com o outro. No caso em estudo, o processo de paralisação do sujeito, frente às imposições laborais, parece ser expresso por um corpo "engessado", em um circuito empobrecedor, que se sobrepõe ao erógeno.

Na busca da compreensão de como o trabalho aciona o corpo, Martins (2013) expõe que as pesquisas em psicodinâmica do trabalho demonstram que o chamado ao trabalho atravessa inevitavelmente essa experiência corporal e de sofrimento no confronto com o real. O corpo, instado pelas mudanças percebidas no ambiente como barulhos, cheiros, angústias, é mobilizado à busca de solução. A subjetividade é materializada pelo corpo erógeno o que implica em ação frente ao real do trabalho e permite transformar e dar visibilidade a processos biológicos, sociais, psíquicos e culturais há muito sedimentados pelo sujeito e constituídos pela sua subjetividade.

A dinâmica desse corpo, que, ao adentrar o mundo do trabalho, leva todo o seu histórico subjetivado, exposto a novas provas e assim propenso a um movimento contínuo, merece, segundo Dejours (2012a), um estudo metapsicológico. Esse movimento de vir e ir, entre o corpo e afetivo, eminentemente metapsicológico por não se inscrever no campo da psicologia e menos ainda no da biologia (Birman, 2009), não seria o movimento pulsional?

Mendes e Araújo (2012), ao pensarem a dinâmica da ação do sujeito no trabalho, lançam, assim como Dejours, um desafio sobre a necessidade de desvelar o movimento pulsional no trabalho. O circuito pulsional descrito em Freud (1915/2004) encontra expressão na maneira singular pela qual o sujeito se organiza e o leva a diferentes destinos: a inversão no seu contrário, o retorno sobre a própria pessoa, o recalque e a sublimação.

O jogo pulsional, como tentativa de organizar a subjetividade, nos é revelado pela linguagem. O ato da fala para Fuks (2014) permite vir à tona aquilo que constitui o sujeito como eu, reconhecendo sua vida psíquica e, portanto as forças pulsionais. Na clínica do trabalho, a reconstituição da história do sujeito pela fala permite a construção de um discurso revelador do engate da subjetividade pelas exigências do mundo do trabalho.

A importância da compreensão dessa linguagem na clínica do trabalho ocorre justamente por remeter o clínico às formações do inconsciente presentes no discurso (Freud,1901/1996): esquecimento de nomes, falhas na linguagem e o humor. A importância dessas formações inconscientes é ampliada em Lacan (1965), quando afirma que o inconsciente estrutura-se como uma linguagem e revela a importância do surgimento desta no ser falante.

Na clínica do trabalho aqui desenvolvida, o espaço aberto para a construção e acolhimento da linguagem, em suas contradições, manifesto do inconsciente, foi exaustivamente ampliado, pelo uso dos dispositivos analíticos: análise da demanda, transferência e interpretação (Mendes, 2014). Essa ampliação permitiu revelar as condições de sofrimento do sujeito em primeiro momento interditadas, sem nomeação, pois se apresentavam inicialmente sem capacidade de serem subjetivadas.

Para melhor entender a importância de traduzir em palavras o sentimento de pavor e paralisia pelo qual o sujeito era tomado ao sentir-se impedido por seu chefe de aplicar o saber no contexto de trabalho, é preciso abrir parênteses para apresentar duas facetas do conceito de testemunho, descrito em Fuks (2014), que ajudam a compreender duas questões percebidas na clínica do trabalho: o engate do sintoma do sujeito pelo campo social (o mundo do trabalho) e a potência política expressa pelo discurso construído ao longo da clínica.

Duas facetas do que a autora chamou de testemunho, ou seja, a possibilidade de falar sobre um trauma, despertam o interesse para a clínica do trabalho. Em primeiro lugar, o testemunho como ponte entre o individual e o coletivo, o sujeito ao falar sobre aquilo que lhe é traumático pode estar revelando conteúdos não circunscritos apenas a ele, mas a todo um coletivo que com ele tenha algum "parentesco". A forma como o sujeito lida com essas forças, externas e pulsionais, não pode ser tratada como um fenômeno isolado, mas sim contextualizada em um momento histórico-social, a formatação do trabalho no mundo contemporâneo, responsável pelo cenário que lega uma "herança" a todos que dele participam.

A segunda faceta é a potencialidade em arrancar o sujeito da condição de passividade à qual estava até então sujeitado. Tal aspecto torna-se possível entre a passagem da condição narcísica, ser único, para a condição de ser social onde o outro habita. Aqui precisamos lembrar a "Metáfora do Pai", introduzida justamente quando o sujeito abandona a relação especular com o outro, permitindo-se, através da fala, deslizar da cadeia significado-significante e ocupar o lugar do desconhecido da diferença, portanto expressando e ampliando sua subjetividade pelo discurso.

O manifesto da subjetividade permite ao sujeito um dinamismo psíquico que, na clínica do trabalho, o leva a entender que sofrimentos a que se possa submeter no dia a dia do trabalho podem ter outras saídas que não somente o quietar paralisado, o emudecer frente ao contato com o novo, possivelmente por reconhecer pontos identificatórios no que se apresenta como estranho, o entrelace entre o que é seu e o que provém de um contexto externo, o que leva o sujeito ao colapso por não conseguir nomear aquilo que lhe é estrangeiro.

Ainda em Fuks (2014), entretanto, na formatação do mundo do trabalho contemporâneo, pouco espaço resta para o exercício da diferença, isto é, para o desenvolvimento subjetivo. O discurso sobre a dinâmica do mundo produtivo e os indivíduos que o compõem encontra-se engessado a um padrão normatizador, que pouco ou nada permite revelar sobre o sujeito. Essa realidade provoca contradições, pois quanto mais um discurso exercita a uniformização, mais disforme tende a se manifestar ao não permitir a expressão do sujeito, o qual acaba por revelar-se ou retirar-se por intermédio de sintomas.

Um estudo clínico post mortem realizado por Dejours em 2005 revela o quanto o mundo do trabalho se utiliza das características peculiares do sujeito, apropriando-as ou renegando-as conforme forem os seus interesses, promovendo um desconhecimento do sujeito em relação a si próprio ao impor um modelo que o despersonaliza e afasta sua possibilidade de reconhecer-se. A história pela qual o sujeito se estrutura não pode ser considerada apenas como obstáculo ou valor mercantil a ser eliminado ou manipulado pela instituição, pois isso impossibilita o fortalecimento e a criação de novas subjetividades via trabalho.

Dejours (2012b) considera a possibilidade de o trabalho ampliar a subjetividade, pela condição de gerar novos registros de sensibilidade, antes inacessível ao sujeito. Pondera, entretanto, sobre a existência de um número elevado de empregos que se caracterizam pela imposição de tarefas que provocam constrangimentos organizacionais ao sujeito. Tais tarefas merecem, segundo o autor, o epíteto de tarefas antissublimatórias e, consequentemente, provocam efeitos dramáticos para o vir a ser subjetivo e para a saúde mental do trabalhador, por não permitirem o manifesto do sujeito.

O autor defende ainda que a transformação das particularidades individuais pelo trabalho via grandes esforços e um trabalho psíquico significativo garante a elevação dos poderes do corpo e da conquista de novos registros de sensibilidade e expressividade. Essa dinâmica resulta na realização de si mesmo e proporciona o processo sublimatório, um dos destinos da pulsão, mas é justamente esse caminho que parece cada vez mais impossibilitado pelos contextos de trabalho.

Diante do trabalho repetitivo sob o constrangimento do tempo e outros excessos tão comuns nos modelos de gestão contemporâneos, os trabalhadores desenvolvem, com frequência, estratégias de defesa destinadas a lutar contra o aborrecimento, contra a angústia de sentir sua capacidade de pensar deteriorada e contra o medo de não conseguir seguir o ritmo imposto pelo trabalho. Tal pensamento reflete o mal-estar com o qual o sujeito em estudo é confrontado diariamente no seu mundo do trabalho, ao perceber-se tolhido do movimento criativo da sublimação, um dos destinos pulsionais (Freud, 1915/2004), e refém do ritmo alucinado e empobrecido de tarefas cada vez mais mantenedoras de uma situação social massificante e excludente do indivíduo.

Pesquisar o movimento que o sujeito faz em seu espaço de trabalho, na tentativa de se reafirmar e ampliar sua subjetividade, é relevante para ampliação do conhecimento sobre as atividades psíquicas em jogo na relação trabalho - trabalhador e para a compreensão dos efeitos que esses espaços sociais provocam na expressão das forças pulsionais do sujeito. A dinâmica trabalho-trabalhar e a sua influência na saúde mental é indicada em inúmeros estudos em psicodinâmica do trabalho usando a clínica do trabalho como método.

Estudos recentes apontam para a necessidade da ampliação da escuta analítica nas clínicas do trabalho brasileiras. Em pesquisa realizada por Merlo e Mendes (2009), sobre a metodologia da psicodinâmica do trabalho empregada no Brasil, foram apontadas práticas clínicas que, apesar de não seguirem à risca todos os passos do método original de Dejours, preservam o seu pressuposto, realizando algumas adaptações que fortalecem o campo da clínica no Brasil.

A realização em 2012 de uma clínica do trabalho com catadores de papel (Ghizoni, 2013) amplia a escuta do sofrimento no trabalho ancorada em dispositivos clínicos fundamentados na psicanálise e extrapola as bases do método original de Dejours (1992). É a primeira clínica coletiva que segue a metodologia desenvolvida no Laboratório de Psicodinâmica e Clínica do Trabalho da Universidade de Brasília - LPCT/ UnB (Mendes e Araújo, 2012) e confirma uma nova prática em psicodinâmica do trabalho brasileira. A ancoragem dos dispositivos analíticos, transferência, análise da demanda e interpretação (Mendes, Moraes e Merlo, 2014) ampliam a escuta na clínica do trabalho e permitem integrar o discurso do sujeito em um tempo que antecede a experiência do trabalho ao tempo vivido pelo fracasso no confronto com o real do trabalho, momento em que sua subjetividade é convocada.

O presente estudo registra o primeiro atendimento individual a um sujeito na clínica do trabalho que utiliza como estruturador da escuta clínica dispositivos de escuta analíticos e busca fortalecer a articulação dos saberes, psicodinâmica do trabalho e psicanálise como um passo importante para o avanço desse campo de conhecimento. Essa escuta favorece a mudança subjetiva do trabalhador que, ao construir a narrativa do seu sofrimento, o percebe em um contexto social e político (Mendes, 2014). A conquista dessa percepção aliada ao novo posicionamento do sujeito permite o desvelar de um sofrimento até então revelado como uma metáfora do sujeito, sintomas, e inaudível em espaços públicos.

 

Método

A clínica do trabalho aqui estudada foi iniciada em outubro de 2013 e encerrada em março de 2014, totalizando vinte e duas sessões. O sujeito atendido é Médico do Trabalho e exerce sua atividade profissional em uma empresa estatal de grande porte. A escuta foi realizada por um psicólogo clínico do trabalho e cada atendimento teve duração média de 50 minutos, uma vez por semana. A procura pelo atendimento foi espontânea no projeto clínica do trabalho do CAEP - Clínica de Estudos e Atendimento Psicológicos do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.

Os atendimentos foram gravados com o devido consentimento do sujeito e as sessões registradas em prontuários e em formulários próprios desenvolvidos no Laboratório de Psicodinâmica e Clínica do Trabalho - LPCT. Com o suporte desses registros, ocorreu semanalmente a supervisão dos atendimentos com duração de uma hora.

Os registros auxiliaram, ainda, na análise de conteúdo desenvolvida na etapa conhecida como Análise Clínica do Trabalho - ACT, descrita em Mendes e Araújo (2012). Consiste em uma técnica para organizar o material coletado nas sessões clínicas, orientado na qualidade e no significado do discurso e foi desenvolvida com base nos estudos realizados no LPCT.

Mendes (2014) enuncia os três eixos estruturadores do método: a. os dispositivos para a escuta analítica; b. a formação do clínico; c. a supervisão clínica.

 

Resultados

A partir da análise do material coletado, foram evidenciados três eixos temáticos, que são: i. Não reconhecimento do saber técnico; ii. O lugar da criação e iii. Função do trabalho.

Não reconhecimento do saber técnico

Uma das queixas do sujeito gira em torno do desinteresse da instituição por relatórios que ele desenvolve. A finalidade desses documentos é propor melhorias nas condições de trabalho do local assegurando a saúde das pessoas pertencentes à organização de trabalho periciadas pelo sujeito da clínica. O não reconhecimento desse trabalho provoca no sujeito a sensação de diminuição da autonomia profissional: "... a empresa quer calar... [seu nome]". Expressa a dificuldade em se portar em uma organização que não o escuta: "Eu não sei como começar ali. Eu vou passar para o lado do mal? Eu vou ser o quê? Improdutivo? Não estou tendo concretização das minhas ações".

No transcorrer do atendimento, o sujeito revela o impacto que tal situação lhe ocasiona, despertando nele um medo que, em suas palavras, nunca houvera sentido em outra experiência profissional, o medo de: "... perder sua ética, perder o seu modo de agir", ao ser tolhido. Discorre sobre a forma do surgimento desse medo, inicialmente pela decepção de não estar sendo ético "ao máximo" ao não assegurar em seus relatórios a real situação do periciado, já que regulamentos institucionais limitavam uma exposição detalhada dos acometimentos vividos pelos periciados da empresa.

O medo despertado no trabalho parecia vir recheado pela relação com o chefe: "... o criador e a criatura... a criatura por cima do criador". De fato, o sujeito preza o trabalho criativo, por isso a insistência nos projetos, e o que lhe parece insuportável é a negação de suas ideias por alguém que, no seu entendimento, possua limitações técnicas para avaliar o seu trabalho, já que considera a formação profissional dessa chefia incompatível para avaliar seu exercício profissional.

Apesar do medo que o acomete, aos poucos o sujeito vislumbra uma nova forma de exercer o seu trabalho. Essa possibilidade atrela-se, entretanto, a uma nova lotação, novo gerenciamento e com atribuições que lhe permitiriam "fluidificar" o seu saber. Sobre essa possibilidade afirma: "Eu quero costurar de um jeito diferente na... [fala o nome do novo setor aonde poderia ser lotado]" [...] "Eu tenho medo de ficar doente de novo, mas eu quero trabalhar, gosto de trabalhar".

Prossegue a discussão sobre a impossibilidade de aplicar os seus conhecimentos no ambiente de trabalho: "É duro (pausa) você pensa que chegou a um momento de sua autonomia e tem tudo podado". Prossegue questionando a empresa: "Por que não deixam melhorar as condições das pessoas?" Indigna-se porque não o consultam sobre as condições de trabalho, apesar de ser perito na área.

Parece refletir sobre algumas de suas características pessoais que influem no seu trabalho, tais como: a busca incessante por informações completas e exatas; o excesso de perfeccionismo, que pode conflitar com os interesses da organização, que parece perceber essas características como um problema e não como algo virtuoso: "...eu estou conseguindo ver (pausa), o que me falta delinear é o que o meu problema foi potencializado pelo trabalho, tudo bem que ele já existia, mas a empresa isola (pausa) o trabalho me imobilizou não me permitiu trabalhar em minha plenitude...".

 

O lugar da criação

Reafirma a vontade de voltar a trabalhar (estava licenciado por motivos de saúde), não mais naquele lugar, e sim em outro setor da empresa, em um lugar onde poderia fazer a pesquisa "ser criativa". Afirma que, no novo lugar, teria mais oportunidades para apresentar ideias, projetos e acrescenta que, no atual local de lotação, não pode ser criativo, não existe oportunidade de expressar o seu saber: "Tá difícil de engolir. É ruim quando a gente tem muito conhecimento (pausa) o fato que (pausa) se você não pode pensar você tem a voz abafada" (...) "Não me vejo trabalhando sem um objetivo criativo".

No transcorrer dos atendimentos, considera a possibilidade de exercer atividades externas ao ambiente do trabalho, que lhe possibilitariam exercitar o seu conhecimento, como por exemplo, dar aula (à época concorria a uma vaga de professor): "Estou vibrando para saber se serei professor...". Fala sobre sua identificação com outro ramo da medicina diverso ao seu e como se tem dedicado a esse trabalho, aperfeiçoando-o através de estudos e pontualmente atendendo alguns pacientes. Afirma que precisava prosseguir com o que lhe daria prazer: "A melhor herança é o conhecimento". (...) "Eu tenho que buscar o que me dá prazer estudar e aplicar isso".

 

Função do trabalho

Para o sujeito, o trabalho é um lugar para "sedimentar" conhecimento, portanto demonstra medo de "... as pessoas serem refratárias, não quererem saber mais". Reflete sobre um comportamento que lhe é próprio: comportamento "imperioso", de se isolar, quando o ambiente não utiliza tudo o que oferta, e de frustrar-se ao tentar prosseguir produzindo quando não é reconhecido. Avalia o seu retorno próximo, considerando que a licença médica chega ao fim: "Tudo se desmancha, quando percebe que está sendo insignificante no lugar que você precisa tirar sua sobrevivência. Eu queria voltar... para me sentir um profissional, ter resolubilidade, sentir-me útil".

O sujeito localiza em sua história infantil o fato que definiu a sua escolha profissional. Um acidente doméstico vitimou fatalmente um membro de sua família, o sujeito se recorda que não sabia o que fazer naquele momento, apesar de ter adotado algumas medidas e se pergunta se poderia ter feito mais pelo parente na hora do acidente: "... se eu soubesse mais...", cobra-se por não ter mais conhecimento à época. Afirma então que, depois de se tornar médico, fica muito atento aos erros no exercício profissional e segue os protocolos. Para o sujeito, se o médico não pode curar, deve tratar.

 

Discussão

Durante o atendimento, foram evidenciados os motivos no trabalho que levaram o sujeito ao adoecimento: a ordenação de tarefas que extrapolam o previsto para o seu cargo, subestimação por parte da chefia imediata do tempo necessário para os atendimentos, falta de adaptação ergonômica para dois aspectos: as atividades de trabalho rotineiras e suas limitações físicas anteriores à posse do cargo, não devidamente consideradas pela empresa.

Dentre esses fatores, entretanto, o que parece ganhar maior relevância para o sujeito é a falta de reconhecimento à expressão mais criativa do seu trabalho, os relatórios sobre o adoecimento do periciado. A elaboração desse relatório possuiu um significado para o sujeito que extrapola o lugar protocolar que a instituição pretendia conferir aos registros ali firmados.

O exercício de construção intelectual exigido para a elaboração do documento parece propiciar ao sujeito a oportunidade de exercer sua subjetividade, em relação ao que considerava o efetivo exercício de sua profissão: assegurar tratamento correto àqueles que dele necessitassem, utilizando todo o conhecimento que acumulou para aquele propósito.

Ao ter o seu saber técnico questionado por um chefe que pressupõe não possuir conhecimento para tal, parece remeter o sujeito a um ciclo confuso e violento onde "saber-não saber" se tocam, mas sobretudo se distanciam. Reconhecer e nomear a diferença permite o encontro de novos caminhos para o investimento pulsional e o desenrolar da subjetividade do sujeito.

Aos poucos, o sujeito percebe que não são apenas as tarefas que executa como médico perito, mas a sua própria pessoa que é atacada pela instituição. Não eram os elementos técnicos contidos nos laudos periciais ressaltados como responsáveis pelo nexo causal entre doença e lesão dos periciados. Para a instituição, na figura do seu chefe imediato, a responsabilidade desse nexo provinha da escrita do médico minuciosa, perfeccionista, aprofundada, pronta para ser engavetada.

Uma ocorrência do trabalho é personalizada na figura do sujeito, que passa a ser violentamente desencorajado a desenvolver seus relatórios e, portanto, desencorajado ao uso de um saber que adquiriu para cuidar dos outros. Reconhecer que a produção dos relatórios é motivo para ser atacado desperta medo no sujeito, medo de falhar. O reconhecimento de que os relatórios periciais são os motivos de ameaças no contexto do trabalho ocorre inicialmente parcialmente: o sujeito culpa-se por algo que possa ter feito de errado na elaboração dos documentos e não compreende que interesses do contexto laboral também corroboram para a desautorização dos documentos técnicos.

Uma nova leitura é possível após a articulação do discurso do sujeito na clínica e desmonta o modo alienado de conferir sentido somente àquilo passível de ser nomeado, a escrita perfeccionista, desconsiderando o que não é passível de apreensão: a falta de interesse da organização em revelar os processos de adoecimento produzidos em seu contexto de trabalho.

Ao procurar a clínica do trabalho, o sujeito o fez relatando uma série de sintomas, corporais em sua maioria. O seu corpo denuncia uma situação, como lugar de encenação entre o psíquico e o somático (Lazzarini & Viana 2006). Descreve dores que o enrijecem, que "engessam", dores lombares, que demonstram o peso do trabalhar, e amnésias que prejudicam o seu viver cotidiano. Sintomas que o obrigam a ingerir medicamentos, sem convicção, para lhe trazerem alívio e para recuperarem uma memória que lhe falta, o que por isso o impede de escrever a sua história. A sintomatologia apresentada corporificava-se na clínica quando falava da situação conflitante no trabalho, principalmente quando envolvia a chefia imediata.

Decifrar a manifestação dessa sintomatologia evoca a necessidade de compreensão da história do sujeito e o enlace de sua subjetividade pelo trabalho. A escuta na clínica do trabalho permite compreender que a escolha profissional do sujeito se deu diretamente na tentativa de aplicar conhecimento a favor de outro, e que atuar profissionalmente sem o saber cultuado paralisa o circuito pulsional, o levando ao processo de adoecimento que o afastou do trabalho.

Entretanto, o enredo dessa história precisa ser bem arrematado: o sujeito precisa ocupar o lugar do historiador defendido por Aulagnier (2002), para colocar plenamente em jogo suas forças pulsionais. O espaço da fala precisa ser inaugurado, para que o discurso seja preenchido pela linguagem. Essa mudança subjetiva é pretendida na clínica do trabalho junto ao reconhecimento de um contexto social e político que compõe o mundo do trabalho.

No mundo do trabalho, falamos de uma relação desigual, que sobrepuja as forças individuais aos interesses de um campo social que possui como principal norteador a manutenção do poder. Um espaço social no qual o outro se adentra pelo discurso do reconhecimento, mas esse discurso pode estar contaminado por interesses que em nada se referem ao sujeito, o que ajuda a compreender a dificuldade deste para redirecionar os seus interesses pulsionais.

Fica relançado o desafio de se buscar uma nova saída, norteada pelo caminho pulsional, que leve à construção de satisfações mais elaboradas que permitam colocar em seu devido lugar as exigências do trabalho contemporâneo e o seu potencial destrutivo ao sujeito. Novas formas de destino da pulsão devem ser encontradas e estimuladas para que o sujeito, em face de contextos de trabalho antissublimatórios, possa encontrar recursos que mantenham a sua vontade de investir naquilo que reconheça estar ao alcance de transformação, compreendendo ainda que, em organizações de trabalho enrijecidas, nem tudo é passível de transformação.

O sujeito aqui estudado não pôde preservar sua história em relação ao trabalho, não pôde aplicar o conhecimento que acumulou em suas atividades laborais em decorrência dos interesses da organização do trabalho. O que era próprio ao sujeito, a busca desenfreada por uma prática laboral pautada por conhecimentos minuciosos e até mesmo rígidos, poderia ter sido reconhecido pela organização de trabalho. A instituição preferiu explorar, não obstante, esse comportamento minucioso e altruísta em exigências que extrapolavam os limites de atuação do sujeito, bem como negar a contribuição singular do seu profissional, legando-lhe o lugar da assujeitação e não criação.

O presente estudo não tinha a pretensão de descrever a metodologia da clínica do trabalho individual e sua potencialidade política, bem como não se ateve aos modelos de organizações do trabalho antissublimatórias, tão em voga nos tempos contemporâneos, temas estes a serem explorados em estudos futuros.

 

Referências

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Recebido em: 24/10/2016
Aprovado em: 09/10/2017

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