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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.11 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2019

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2019v2p.132 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

O trabalho do filme1

 

The film-work

 

Le travail du film

 

 

Thierry KuntzelI; Tradutor: Amadeu de Oliveira WeinmannII

ITeórico do cinema, renovou a análise fílmica, por meio da remontagem das obras analisadas. Videomaker e realizador de instalações audiovisuais, dedicou-se, intensamente, ao cinema experimental. Ensinou semiologia do cinema e análise textual do filme na Universidade de Paris 1, no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (Paris) e na Universidade de Berkeley (Califórnia), dentre outras instituições
IIProfessor do PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura / UFRGS / E-mail: weinmann.amadeu@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo consiste em uma contribuição aos estudos do cinema, inspirada em A interpretação dos sonhos, de Freud. Nesse sentido, propõe desconsiderar a dimensão de espetáculo, a fim de abordar o trabalho de composição de um filme - o que faz mediante a decomposição, plano a plano, da sequência inicial de M (1931), de Fritz Lang. A fim de analisar uma trama de signos visuais e sonoros com modelos outros, que não os da linguística, sugere compreender um filme como escrita pictórica. Por meio do rearranjo dos significantes fílmicos, é possível realçar a Outra cena, que subjaz à narrativa.

Palavras-chaves: PSICANÁLISE; CINEMA; TRABALHO DO FILME; ESCRITA PICTÓRICA; OUTRA CENA.


ABSTRACT

This paper consists in a contribution to film studies, inspired by Freud's The Interpretation of Dreams. In this sense, we propose a disregard to the spectacle dimension of the film, aiming to approach its composition work - which is made through the decomposition shot-by-shot of Fritz Lang's M (1931) initial sequence. Aiming to analyze visual and sound signs of the plot with models different from linguistic ones, we suggest comprehending a film as a figurative script. Through the rearrangement of filmic signifiers, it is possible to highlight the Other scene that is subjacent to the narrative.

Keywords: PSYCHOANALYSIS; CINEMA; FILM-WORK; FIGURATIVE SCRIPT; OTHER SCENE.


RÉSUMÉ

L'article consiste en une contribution aux études cinématographiques, inspirée par l'Interprétation des rêves, de Freud. En ce sens, il propose de ne pas tenir compte de la dimension du spectacle pour aborder le travail de composition d'un film - ce qu'il fait â l'aide de la décomposition plan à plan de la séquence initiale de M (1931) de Fritz Lang. Afin d'analyser une trame de signes visuels et sonores avec des modéles autres que de la linguistique, il suggére de comprendre un film en tant qu'écriture figurée. À travers le réarrangement des signifiants filmiques, il est possible de mettre en évidence l'Autre scéne, qui sous-tend le récit.

Mots-clés: PSYCHANALYSE; CINÉMA; TRAVAIL DU FILM; ÉCRITURE FIGURÉE; AUTRE SCÈNE.


 

 

Introdução

Delimitada por uma abertura e um fechamento com a tela escura, a primeira sequência de M (1) constitui uma narrativa completa, cujo "resumo" poderia parodiar um conto infantil: "era uma vez, uma menininha que, no caminho de casa, encontra o homem de preto. A mãe, em casa, a espera - em vão. A menininha segue o homem de preto e, então, ele a mata". Essa micronarrativa opera uma disjunção, em relação ao filme que ela introduz: ela centra o interesse em Elsie e na Sra. Beckmann, fazendo intervir marginalmente o assassino e, de maneira ainda mais periférica, o policial e o cego - ainda que a estrutura actancial (2) repouse sobre esses três personagens.

Uma disjunção semelhante pode ser observada entre o plano 1 e o resto da sequência: a mulher e as crianças presentes são "indiferentes" para a história, mas a situam, exemplarmente, apontando seus pressupostos e desenvolvimentos futuros.

 

 

Essa leitura de um início de filme é o "filme" de um início de leitura: ela se inscreve em um projeto mais amplo de encontrar a produção de sentido na totalidade do corpus M. A dilatação do primeiro plano equivale à dilatação necessária da primeira sequência, em relação à continuidade do sintagma fílmico (3); na compressão dos outros vinte e seis planos, começa uma aproximação à prática semiótica própria ao filme, isto é, a seu trabalho de figuração – somente do ponto de vista da sequência, considerada como um texto fechado. Esse segundo momento, regressivo do ponto de vista da irrupção inicial dos códigos, assinala o caráter "moderadamente plural" do texto fílmico clássico (Barthes, 1970): as interpretações mais contraditórias podem ser propostas acerca de uma imagem não legendada, mas, se duas imagens se sucedem ou se a uma imagem se associa uma banda sonora, o livre jogo dos significantes restringe-se.

 

I. Descrever

1º) Após os créditos iniciais, que são exibidos sobre o desenho da letra "M", a tela permanece escura, ao mesmo tempo que ecoa, em off (4), uma voz infantil. Abertura no escuro: plongée (5) sobre um pátio onde crianças agrupam-se, em roda. No centro, uma menininha canta: 2º) "Espera, espera um pouco mais / Em breve, o homem de preto virá / Com seu machadinho / Ele te esquartejará". A menina aponta para uma de suas companheiras de jogo dizendo: "é tua vez!"; esta se retira e a canção é retomada; 3º) a câmera faz uma panorâmica sobre lixeiras amontoadas em um canto do pátio, sobe ao longo da fachada de um prédio miserável e para, enfim, sobre uma sacada onde se seca roupa. Uma mulher grávida, carregando um cesto, entra no campo visual pela esquerda e se debruça (contraplongée) (6). Ela grita, com um forte sotaque berlinense: "eu já proibi vocês de cantarem essa maldita canção! Me escutam, agora? (A si própria) Sempre essa maldita canção!". A mulher sai do campo visual pela esquerda; a câmera enquadra a sacada por mais alguns instantes.

Essa descrição do plano inicial de M, que pode ser lida como uma reconstituição do filme, que ela se limitaria a transcodificar o mais "fielmente" (precisamente, exaustivamente) possível, quer marcar, por seu recorte em vastas unidades lexicais (anotações 1º, 2º, 3º), o arbitrário de seu traçado ("descrever um círculo"): fingindo "desposar" o contínuo (7) do plano, ela o fatia, o (des)articula, o pré-interpreta (8).

 

II. O espetáculo / o texto

Como falar, ao mesmo tempo, do jogo de luz, da estruturação da imagem, da expressão gestual e mímica da "mulher com o cesto", do tom de sua voz? A descrição busca, na profusão de materiais expressivos que o filme organiza, alguns elementos: "pode-se decompor o plano, mas não se pode reduzi-lo" (Metz, 1968).

Aquém, a descrição também se situa além de seu objeto, cuja complexidade linguageira é ignorada nas condições normais de recepção: o filme é consumido como uma história, sob efeitos mais ou menos compensadores (9) ou sob um modo aparentemente mais elaborado (crítica jornalística, cineclubes), como uma coleção de "temas" (a vida, o amor, a morte) - como significado. Rever o filme é levar em consideração o processo significante, é recusar a manipulação imposta pelo espetáculo e perguntar-se sobre como funciona essa manipulação.

Rever várias vezes um filme, porém, não muda sua ordem. Se, em um livro, posso circular livremente (parar, retornar, comparar dois enunciados, recensear as funções que dizem respeito aos diferentes actantes); no cinema, sou inevitavelmente submetido ao encadeamento das imagens e ao fluxo sonoro, a seu ritmo regrado. O filme e a narrativa desenrolam-se fora de mim, sem intervenção possível da minha parte.

"Ler"(10) um filme é intervir: assistir em câmera lenta ou pausar o movimento (a continuidade) para descobrir a imobilidade (a descontinuidade) que o sustenta (11), isolar os motivos visuais ou sonoros, confrontá-los ao retroceder o filme. "Ler" é ouvir-ver o filme como nenhum espectador pode fazer, é reescrever o espetáculo sob a forma de texto - é remover as camadas de opacidade referencial que ocultam o trabalho de significação.

 

III. Engrenar / debulhar (12)

A escolha do primeiro plano de um filme "clássico" - no qual não se coloca o problema da "suspensão do sentido" (13) -, com o intuito de resolver a questão de saber por onde começar, não deixa de formular um problema teórico, devido à "pletora" de signos lançados nesse plano: a análise deve focar, seletivamente, certos códigos, nos quais ela faria uma imersão, a fim de indicar sua imbricação, ou ela pode contentar-se com "inventariá-los", sem se preocupar com seu lugar (importância, papel) no texto global? "Em uma época na qual se desenvolve um fanatismo do 'visual' que beira a insensatez" (Metz, 1971, p. 24), vale a pena correr o risco de que se qualifique de "dispersão" essa abertura. O primeiro plano de M será percorrido, portanto, não com o objetivo de engrenar os códigos (visando à reconstrução de um sistema que permitiria ler o funcionamento fílmico global), mas a fim de debulhar alguns deles, em sua cintilação plural.

 

IV. (Des)inauguração da narrativa, unidade lexical 1

Tradicionalmente, só se leva em consideração a primeira imagem diegética, o que implicaria a ideia de que o filme começa com a aparição das crianças. Essa primazia do visual é icônica, mas mascara a retórica desse início de filme. Fazer ouvir a voz da menininha antes de dá-la a ver é dizer que o filme já começou ou, antes, que ele não vai, senão, recolher fragmentos (significativos) de uma história (de um real) que existiria fora, antes e depois dele.

Essa "desinauguração", observável desde o início da exibição dos créditos, participa de um código narrativo que, por certo, não é específico da linguagem cinematográfica: ela aparece tanto nos romances epistolares quanto nos "manuscritos supostamente reencontrados" e outras formas de "escamotear o signo", de que fala Roland Barthes (1966); mas essa desinauguração tem, no filme, um efeito retroativo que ela não teria em um texto literário. Se o filme começa antes da primeira imagem diegética, por que não remontar a seu começo efetivo - a aparição, na tela, do primeiro fotograma - e incluir os créditos e o título, na análise?

 

V. M

O branco do "M", destacado sobre o fundo negro de uma silhueta, abre uma questão que a tradução francesa contorna, de modo lastimável, pelo acréscimo de "o Maldito" ao título original. É preciso esperar o meio do filme para que a letra encontre seu lugar na narrativa, para que o vazio que ela havia inicialmente escavado seja parcialmente preenchido: ela intervém a título de marca - M(arkierung) - que um dos membros da quadrilha de criminosos traça com giz em sua mão, a fim de imprimi-la nas costas do assassino.

 

 

No entanto, o código hermenêutico não se encontra, até esse momento, neutralizado. Uma questão subsiste: por que "M"? A letra pertence, como inicial, a uma dupla rede textual constituída em diacronia, na obra de Lang, pelos M(abuse) (14), e em sincronia, no filme, pelo título original e os dois subtítulos definitivos, comportando todos a palavra M(úrder) (15), assassino. Em sua materialidade gráfica, "M" remete, através de O homem dos lobos (Freud, 1954) e da interpretação que lhe dá Serge Leclaire (1968), ao direito de jambage (16) - designação literal dos fantasmas do assassino. Nesse sentido, no plano que antecede â descoberta do "M" traçado com giz âs suas costas, o assassino contempla, em companhia de uma menina (possível futura vítima), uma vitrine de brinquedos. O enquadramento, realizado do interior da loja, é tal que o rosto de Peter Lorre se inscreve entre as pernas de uma marionete; a disposição desta, na medida em que suas cordas sejam puxadas, lembra, inequivocamente, a décima terceira letra do alfabeto, efeito acentuado pela presença, entre as coxas da marionete, de um pequeno "M" branco sobre um fundo escuro - reflexo?, fragmento de letreiro?, de toda forma, posto lá para fazer signo. O "M" enigmático do título, portanto, não encontra, jamais, uma "chave"; ele coloca, inicialmente - emblematicamente -, a questão do sentido: significante, nexo de numerosas cadeias significantes, ele é o lugar onde se articulam as leituras, que não cessam de expandi-lo.

 

VI. Sobre alguns códigos do visual

Participando de um código cinematográfico no sentido estrito (17), a abertura com a tela escura espelha sua contrapartida, o fechamento (plano 27, cf. infra): os dois procedimentos ópticos que enquadram a sequência permitem considerar a série de planos como um sistema textual relativamente fechado, destacável do sintagma fílmico global (18). Ao plongée sobre as crianças se oporá um contraplongée sobre a "mulher com o cesto" (unidade lexical 3): esses dois desvios â "norma" do enquadramento horizontal fizeram a fortuna das gramáticas cinematográficas, onde foram significados como: pequeno / grande, esmagado / esmagador, dominado / dominante. Essa grade interpretativa simplista (os significados mencionados qualificam a imagem ou sua denominação metalinguística?), impertinente mesmo no âmbito do filme clássico, pode ser tomada como indicação convencional de uma relação de forças, com a qual Lang jogará com humor um pouco depois, no diálogo do homem idoso de óculos com o "gigante" que o acusa de haver abordado uma criança na rua. Indicação convencional porque questionada, minada pela palavra na continuidade do plano.

Além desses códigos "técnicos", a imagem veicula um código de composição, que se mantém como uma constante formal em todo o filme, e um código de ação, sobre o qual a sequência vai, em parte, funcionar. O primeiro corresponde a uma organização do espaço pictórico delimitada pelo enquadramento, em um momento preciso: a roda das crianças remete ao motivo da circularidade que M repete, constantemente, nisso que será nomeado o barrado (19), na unidade lexical 3. Quanto ao código de ação, esse momento põe o primeiro termo de uma oposição, que os planos seguintes desenvolvem, entre brincar e trabalhar, definindo, de um lado, as crianças - e a criança heroína da sequência, Elsie - e, de outro, as mães - e a mãe emblemática, Sra. Beckmann.

 

VII. Sobre alguns códigos do sonoro, unidade lexical 2

Na segunda unidade lexical, intervém a matéria sonora e musical que o cinema "falado" comporta. A canção infantil faz parte da esfera do lúdico (código referencial): ela autentica os personagens sobre a tela, atribuindo-lhes uma "experiência vivida" que o espectador não coloca em dúvida. A mensagem linguística abre o código narrativo no qual a sequência se centra: a espera. Espera angustiante, imediatamente situada em uma cadeia repetitiva ("Espera, espera..."), ela se dá como de curta duração ("um pouco mais") e como espera da criança; embora seja deslocada para a mãe, no restante da sequência, essa espera se diz preenchida (ela também é desejo: as crianças serão os únicos ajudantes do assassino) pela vinda do "homem de preto" (20), imagem tomada ao pé da letra, na primeira aparição do assassino. Quanto ao "machadinho", sua intervenção também não é inocente: seu gume cortante equivale ao das facas, em torno das quais a fantasia do assassino se constitui - como o testemunha a sequência na cutelaria.

Enlaçado ao código "narrativo" - a canção constitui uma espécie de matriz, na qual os elementos futuros do roteiro aparecem em germe -, o código de narração encontra-se mobilizado: a canção endereçada, na diegese, pela menina às outras crianças não é emitida senão por um receptor, o espectador, a quem ela mergulha, desde esse momento, na expectativa. A eliminação de uma criança no jogo lhe dá, assim, uma amostra da eliminação esperada: o crime. A canção é retomada: ela desdobra os códigos já expostos, exacerba a tensão; de modo indireto, ela anuncia a iteração dos assassinatos - uma vez que o reinício do jogo implica uma nova eliminação - e testemunha acerca da compulsão à repetição que caracteriza o assassino (suas declarações, durante o interrogatório final, são o signo alucinante disso).

 

VIII. O discurso "naturalizado", unidade lexical 3

A partir da retomada da canção, uma panorâmica inicia, conduzindo o olhar de uma cena a outra. A comutação (21) demonstra que uma tal "condução" não é inocente. Esse movimento de câmera poderia ser substituído por um plano do pátio sucedido por um plano da sacada; nesse caso, faltariam dois índices (Barthes, 1966): as lixeiras e a fachada do prédio (cujo significado deve-se buscar do lado de "miséria" e "tristeza"), nas quais se observa o jogo, no filme, de um código do cenário. Outra possibilidade: um plano do pátio, um plano das lixeiras, um plano da fachada, um plano da sacada. Revela-se aqui toda a significação do código cinematográfico; se, nessa segunda comutação, a soma de informações é, aparentemente, a mesma, dois traços se perdem: a pseudo-naturalidade do movimento (é "como por acaso" que a curva do percurso descobre os objetos lá) e o enlace entre as crianças e a mulher, tomadas em um mesmo espaço, para além da oposição entre os enquadramentos.

Discurso paradoxal sustentado por esse texto fílmico (mas o paradoxo é, talvez, comum a toda uma zona do cinema "clássico"), no qual os signos tanto se escondem quanto se oferecem como tal, no qual o trabalho apaga seus traços ao mesmo tempo em que os revela. Aliás, após o discurso "vergonhoso", reinstaura-se um discurso triunfante: a câmera, ao enquadrar a sacada antes da entrada da "mulher com o cesto", não tem o álibi da motivação (por exemplo: palavras off, cujo lugar de emissão a câmera teria buscado); ela indica ao espectador que "alguma coisa vai acontecer", ela suscita a ação. Além disso, o tempo morto permite o reconhecimento da composição da imagem - barrada, em toda sua extensão, por uma balaustrada - e de um motivo visual, do qual a sequência fará uso: a roupa que seca.

A mulher grávida, em quem se aliam dois signos que atravessam a sequência - a maternidade e a espera -, é portadora de um cesto, índice do trabalhar (em oposição a brincar, cf. código de ação), e relais (22) "natural" com o plano seguinte: antes de ser remetida à Sra. Beckmann, ela carrega a câmera consigo.

O "sotaque berlinense", índice de autenticidade, conota o "popular", o que é reiterado pela estatura da mulher, seu modo de andar, seu vestuário e até mesmo o timbre de sua voz. Além do significado global da mensagem linguística, a proibição, outras indicações são veiculadas: o "já começado" encontra-se desde o início do filme ("já" e "sempre"), o medo, marcado pela repetição ("maldita", "maldita"), a impotência da palavra ("me escutam, agora?").

Radical alteridade: as crianças não respondem. A mulher retira-se. A câmera demora-se sobre a sacada vazia e silenciosa, vazio e silêncio que, longe da densidade metafísica de Bergman, têm o peso de um suspense narrativo: a espera e a ausência estão inscritas no texto, não em uma interpretação do mundo.

 

IX. O fio da sequência

O "fio" da sequência, lento ao extremo no primeiro plano, pode desenrolar-se mais rápido agora, sem que seja "mimetizado" o movimento real do filme: a descrição, na medida em que a análise a apreende em sua totalidade, não restitui o tempo da narrativa, mas o "congela" (23), transforma o desenvolvimento sintagmático do espetáculo em um "quadro" sincrônico do texto - o que não exclui o reconhecimento posterior do movimento que o caracteriza. Os elementos escolhidos para a representação de M são-no em função de critérios de informação; trata-se de fornecer um digest legível, do qual serão eliminados ao máximo os termos técnicos (24) - e em função de certos recortes pertinentes: os lugares, as ações, os objetos.

2. Patamar da escada. A mulher entrega o cesto à Sra. Beckmann e limpa o suor da testa, suspirando. - A mulher: "você pode proibir cem vezes as crianças de cantarem essa m÷sica horrível, mas todo dia ela fere os ouvidos..., como se não estivéssemos suficientemente preocupadas com esse assassino!". - Sra. Beckmann: "enquanto elas cantam, pelo menos sabemos que elas ainda estão lá".

3. Cozinha. A Sra. Beckmann transporta o cesto para o fundo da peça e põe-se a lavar roupa em uma tina.

4. Cozinha. Plano mais próximo sobre ela lavando. Som off de um relógio cuco: a Sra. Beckmann levanta os olhos.

5. Cozinha. Plano do relógio que marca 12 horas. Ao som do cuco se mistura o badalar off de um sino.

6. Cozinha. A Sra. Beckmann endireita-se e limpa as mãos sorrindo.

7. Rua. O sino cessa de badalar sobre um plano da saída da escola (25). Uma menina (Elsie), que leva uma bola em uma rede, despede-se de seus colegas.

8. Rua. Elsie tenta atravessar a rua, mas um carro a impede. Um policial interrompe o tráfego.

9. Cozinha. A Sra. Beckmann arruma a mesa.

10. Rua. Elsie caminha quicando a bola na calçada.

11. Rua. Elsie joga a bola contra uma "coluna Morris". A câmera segue a trajetória da bola e enquadra um cartaz policial (10.000 marcos de recompensa. Quem é o assassino? Desde a segunda-feira, 11 de junho, encontram-se desaparecidos o estudante Klaus Klawitzky e sua irmã Klara, etc.); enquanto a bola rebate no lado esquerdo do cartaz, a sombra de um homem projeta-se sobre o lado direito. - O homem off: "tens uma bola bonita. Como te chamas?". - Elsie off: "Elsie Beckmann".

12. Cozinha. A Sra. Beckmann corta legumes em uma sopeira fumegante e depois levanta os olhos.

13. Cozinha. O relógio (enquadramento idêntico ao do plano 5) marca 12:20h.

14. Cozinha. A Sra. Beckmann coloca uma tampa na sopeira. Ruídos de passos off. A Sra. Beckmann precipita-se para abrir a porta.

15. Escada. Duas meninas sobem os degraus (contraplongée). - Sra. Beckmann off: "Elsie não retornou com vocês?". - As crianças: "não, não conosco... Elsie não retornou conosco".

16. Patamar da escada. A Sra. Beckmann olha, por alguns instantes, em direção ao alto da escada (off: barulho de passos das meninas). Após se inclinar sobre o corrimão, retorna para casa.

17. Rua. O homem compra, de um vendedor cego, um balão em forma de boneca; ele o dá a Elsie assobiando.

18. Cozinha. A Sra. Beckmann põe a sopeira em banho-maria. Barulho de campainha off: ela se precipita em direção à porta sorrindo. Um homem lhe oferece "um novo episódio" de seu folhetim, garantindo "suspense", "emoção" e "sensação". - Sra. Beckmann: "diga-me, Sr. Gehrke, você não teria visto minha pequena Elsie?". - O entregador: "não. Não era ela quem subia agora há pouco?". - Sra. Beckmann: "não, ela ainda não voltou para casa". - O entregador: "bem, ela certamente não demorará". A Sra. Beckmann hesita um pouco, após a partida do Sr. Gehrke, e, ato contínuo, inclina-se sobre o corrimão.

19. Escada. Plongée vertical sobre a escadaria vazia. Off, a Sra. Beckmann grita: "Elsie!".

20. Cozinha. A Sra. Beckmann, após entrar em casa, levanta os olhos.

21. Cozinha. O relógio (cf. planos 5 e 13) marca 13:15h. O cuco soa uma vez.

22. Cozinha. A Sra. Beckmann abre a janela e se inclina chamando: "Elsie!".

23. Escada. Voz off da Sra. Beckmann chamando, sobre um plano da escadaria vazia (cf. plano 19).

24. Sótão. Voz off da Sra. Beckmann chamando, sobre um plano do sótão deserto, onde seca roupa.

25. Cozinha. Voz off da Sra. Beckmann chamando, sobre um plano da mesa que ela havia arrumado para o almoço de Elsie.

26. Zona rural. A bola de Elsie entra no campo visual pela direita; ela rola por entre ervas e folhas e para no meio do quadro. Off, ressoa a voz atenuada da Sra. Beckmann.

27. Zona rural. O balão-boneca prende-se nos fios do telégrafo; o vento o leva, enquanto a Sra. Beckmann chama uma última vez: "Elsie!". Fechamento com a tela escura.

 

X. Figuração

Como analisar um "bloco" textual, no qual se articulam motivos sonoros e visuais, sem recorrer a um modelo que se reporte a "práticas semióticas outras, que aquelas das línguas verbais" (Kristeva, 1969a)? Tal modelo foi elaborado por Freud (1967), em A interpretação dos sonhos, com a noção de "trabalho do sonho", tradução de um texto latente em um texto manifesto. Essa operação - essa produção (26) - submete-se a uma exigência, a de levar em consideração a figurabilidade ("consideração para com os meios da encenação", na reformulação proposta por Lacan [1966, p. 511]): "de todas as conexúes possíveis aos pensamentos essenciais do sonho, as que permitem uma representação visual são sempre preferidas" (Freud, 1967, p. 296). O texto manifesto não deve ser lido como um "desenho" - nem o filme como um espetáculo -, mas como uma rede de significantes, de termos que figuram um termo ausente, uma cadeia de significantes, um significado em fuga.

Essa figuração não deve ser compreendida apenas - como o fizeram os leitores apressados de Freud - em termos de "equivalências" simbólicas entre objetos (chapéu = órgãos genitais masculinos), adjetivos (o "pequeno" = o sexo) ou em cenários mais complexos (decapitação = castração). A figuração modela a estrutura global do texto: ela traduz, na matéria específica do sonho, as relaçúes lógicas, "os 'quando', 'porque', 'como', 'embora', 'isso ou aquilo' e todas as outras conjunçúes sem as quais nós não compreenderíamos nem uma frase, nem um discurso" (Freud, 1967, p. 269).

É a pesquisa dos princípios de uma tal figuração "ampliada" que subjaz â "grande sintagmática da banda de imagem" estabelecida por Christian Metz (1968). A sequência inscreve-se, assim, no que concerne a sua figuração global, na categoria dos sintagmas alternados: "a montagem apresenta, alternadamente, duas ou mais séries de acontecimentos, de tal forma que, no interior de cada série, as conexões temporais sejam de sucessão, mas que, entre as séries, tomadas em conjunto, a conexão temporal seja de simultaneidade" (p. 130). São alternados espaços (o interior e o exterior), personagens em torno dos quais as relações se enodam (Sra. Beckmann e Elsie) e, mais sutilmente, ações (trabalhar e brincar), cuja (de)gradação paralela constitui um elemento dramático não negligenciável.

Ao mesmo tempo, no entanto, em que consiste em uma alternância, a sequência figura uma assimetria, uma vez que somente sete planos do exterior "respondem" a vinte planos do interior. A forma indica seu deslocamento: o drama não está do lado do efeito - a cena do assassinato -, mas do lado do afeto; a cena de espera.

 

XI. O interior

A espera é manifestamente encenação, na cadeia de planos do interior, pelo objeto ou, antes, pela privação de sujeito na imagem. À abundância (para um cinema narrativo centrado no personagem) de planos de objetos - sete sobre vinte e um (27) - acrescenta-se um segundo fator que chama a atenção do espectador: a repetição insistente do relógio (planos 5, 13 e 21) e da escada (planos 19 e 23), enquadrados de modo idêntico em cada uma de suas aparições. O que eles dizem é "evidente" (dá-se a ver): o tempo que passa (12h, 12:20h, 13:15h), o não retorno de Elsie, o vazio. Esses dois significados (que o termo espera poderia, precisamente, subsumir) encontram-se desdobrados, um na cadeia das ações, o outro na dos diálogos.

Planos 3 e 4: a Sra. Beckmann lava roupa. Plano 6: tendo soado o meio-dia, ela abandona a "sequência" lavagem para encetar a "sequência" preparação do almoço. Ela arruma a mesa (plano 9), prepara a sopa (planos 12 e 14) e põe a sopeira em banho-maria (plano 18). A redundância do significado "tempo" não é inútil, na medida em que a cadeia das ações ancora o filme no verossímil: os utensílios manejados pela Sra. Beckmann remetem a uma prática cotidiana (referencial); a sopa que esfria dá a ler o escoamento do tempo de uma maneira muito menos sistemática, muito menos marcada – portanto, muito mais "natural" – do que a série de planos do relógio cuco.

As falas, por sua vez, duplicam a cadeia "ausência", nos diálogos da Sra. Beckmann com a "mulher com o cesto", com as meninas que sobem as escadas e com o entregador. Se o primeiro desses diálogos (plano 2) traz uma informação ao espectador, ao transformar o "homem de preto" da canção em "assassino" - cuja existência diegética é, a partir desse momento, revelada -, ele, de fato, vale bem mais pela aparente banalidade de algumas palavras da Sra. Beckmann, lançadas como que "para dizer qualquer coisa": "enquanto elas cantam, pelo menos sabemos que elas ainda estão lá". Essa relação som-presença determina, textualmente e não "psicologicamente", os sorrisos da mãe escutando passos no patamar da escada (plano 14) ou a campainha da porta de entrada (plano 18); em negativo (silêncio-ausência), essa relação assegura o funcionamento dos últimos planos. Os dois outros diálogos não trazem informação alguma, além de uma expansão espacial da ausência: vindos do exterior, as meninas e o entregador cumprem o papel do mensageiro da tragédia clássica, mas de um mensageiro que não tem nada a dizer, cuja "mensagem" significa bem mais pelo ritmo lancinante de sua repetição do que pelo que ela é suposta "comunicar" (cf. planos 15 e 18). A fala não é privilegiada (28), ela não é mais do que um motivo - uma letra -, no tecido textual, uma figuração com o mesmo estatuto que os elementos visuais, "um elemento de encenação como os outros" (Lacan, 1966, p. 512). Seu efeito de "banalidade" vai no mesmo sentido das ações: reforçando a significação, ela, ao mesmo tempo, a naturaliza.

As três cadeias assinaladas - objetos, ações, diálogos - inserem-se em uma figuração exemplar: o espaço. Todos os planos de interior, do 2 ao 23, são encenados em dois cenários: a cozinha (a qual se liga o "tempo", pelo relógio e pela sucessão das ações) e a escada (vazia ou ocupada por personagens que indicam a ausência de Elsie). Se tomamos a porta do apartamento como barra de uma antítese paradigmática entre a esperança da espera e o desespero do vazio (a câmera nunca transpõe esse limiar), parece que nenhum nexo se estabelece entre os dois termos, até a "contaminação" final do sentido.

 

XII. O exterior

Se, por um lado, os três primeiros planos de exterior (7, 8, 10) fornecem pouca informação - a bola de Elsie como atributo não marcado e o policial "protetor" (29) -, por outro, o plano 11, forte nó textual, é o único de toda a sequência que pode ser comparado ao plano 1. A figuração que aqui se manifesta introduz, por sua complexidade, a problemática do deslocamento e da condensação, mais precisamente, do deslocamento a serviço da condensação.

Definido por Freud como descentramento (um detalhe aparentemente irrelevante do conteúdo manifesto pode valer por um significante forte do conteúdo latente), o deslocamento efetua-se, aqui, literalmente, no movimento da câmera sobre a trajetória da bola: a panorâmica ascendente é a figuração, o dar a ver, do enlace metonímico, por contiguidade espacial, entre a bola e Elsie. "Os deslocamentos que assinalamos parecem ser substituiçúes de uma representação por outra que lhe estava estreitamente associada; eles servem à condensação do sonho, visto que, desse modo, em vez de dois elementos, um só, que contém traços comuns a ambos, entra no sonho", escreve Freud (1967, p. 291-292), em A interpretação dos sonhos. A que serve o deslocamento do plano 11, senão para descentrar o olhar do espectador, para fazêlo deslizar de uma cena ("teatral": onde se movem os personagens) a Outra cena, na qual os objetos usurparam o lugar dos atores ou, em outras palavras - e de um modo condensado -, suas relações?

O cartaz da polícia autentica o "já começado" da narrativa dando â ameaça, perceptível nos dois primeiros planos, o peso de uma "realidade": nomes e endereços das crianças assassinadas, datas dos desaparecimentos. Mensagem linguística, ela também é um espaço pictórico que ocupa a quase totalidade da tela: os caracteres (preto sobre branco) servem de pano de fundo para o jogo entre a bola branca e a sombra negra. Esta sombra se encontra, assim como a bola, em posição deslocada, em relação ao personagem a quem ela pertence, mas o espectador não conhece esse de quem ela é a projeção. Uma vez que o enigma não é o semblante de M, pois o plano 17 revela os traços do assassino, a sombra participa apenas moderadamente de um código hermenêutico. Ela vale bem mais como condensação, em um único motivo visual, de uma série de signos de ameaça, por remeter ao código referencial do cinema "expressionista" alemão (30) e, anaforicamente, na narrativa, ao "homem de preto" da canção - dupla remissão sobre a qual pesa a inscrição redundante da palavra "Mõrder", na própria sombra. Ademais, um código simbólico se esboça, pois a sombra inaugura, através de uma cadeia de reflexos distribuída ao longo do filme (espelhos, vidros de vitrines), a "temática" do duplo, sobre a qual se fundará a defesa do assassino, no momento de seu processo.

A passagem do sujeito ao objeto, além da sobredeterminação que ela permite no registro visual, tem por função transformar o som in em som off. Evidência plena de consequências: as vozes tornam-se a marca, na banda de imagem, dos personagens situados fora do campo visual do espectador; a fala é delegada ao objeto, mas é o objeto que a determina (o que faz pensar que ela não é senão um motivo). Quando a sombra declara: "tens uma bola bonita", a insignificância do que é dito dá a ler - no jogo metonímico das duas cenas - o desejo do assassino, o deslocamento, em um registro anódino, de "tu és uma linda menina" ou "tens um corpo bonito". A censura, aqui, se encontra satisfeita (31); todos os elementos estão postos para o funcionamento implacável do fim da sequência.

 

XIII. A contaminação

Com os planos 17 e 18, as cadeias de planos de interior e de exterior - caracterizadas, até esse momento, pelo paradigma trabalhar / brincar - entram em ressonância, por meio de uma ação comum: comprar (no caso de Elsie, "fazer-se comprar", reflexividade ambígua). Assim, as palavras do entregador, no que concerne ao objeto da compra (o folhetim), valem, por retroação, para a compra que a precede - o que garante a esta o caráter de "suspense", de "emoção" e de "sensação". Essa primeira transposição, pouco marcada, anuncia a contaminação final das cadeias, a fratura e a confusão das figurações encenadas na sequência.

Os planos somente de objetos, disseminados pelo conjunto do sintagma, se encontram alternados com planos "ordinários", a partir do plano 19, impondo-se, totalmente, do plano 23 ao fim da sequência. No registro de sua figuração-imagem, eles permitem a invasão do termo "esperança da espera" pelo termo "desespero do vazio", na medida em que o sótão (plano 24) vem minar, subitamente, o dispositivo de oposição cozinha / escada - ainda mais que, nesse sótão deserto, seca roupa (recorde-se a primeira cadeia de ações da Sra. Beckmann, no apartamento). Uma segunda comunicação ocorre no plano 25, no qual é contaminada a segunda cadeia de ações da mãe - a preparação do almoço; o "vazio" ligado à escada entra, enfim, no lugar de onde a figuração inicial o havia excluído: a cozinha. A terceira conexão assegura, na esteira das outras duas, a junção dos planos de interior e exterior; estes fazem parte de uma série (23-27), uma vez que, como aqueles que os precedem, são fixos, breves, privados de sujeito e acompanhados pela voz off da Sra. Beckmann. O vazio, deslocado da escada à cozinha (onde a Sra. Beckmann continua esperando um possível retorno), agora é estendido para o exterior (onde se supõe que Elsie esteja); rigorosa progressão de uma forma que constitui - ela mesma - o drama.

Da mesma forma que a presença de objetos testemunha acerca da ausência do sujeito (32), a presença de uma voz (a da mãe, "aglutinando" os cinco ÷ltimos planos) dá a ler a ausência de outra (a de Elsie). Dois planos encontram-se, assim, carregados de uma intensidade particular: os planos 24 e 26. Ao remeter ao plano inaugural de M - a voz off das crianças, na sacada onde seca roupa, haveria de dar lugar ao silêncio (unidade lexical 3) - e às declarações da Sra. Beckmann, no plano 2 ("enquanto elas cantam..."), o plano do sótão tenta, em vão, "desfazer" a interdição inicial da "mulher com o cesto", ao suscitar a voz de Elsie. No plano 26, o "Elsie!" gritado pela mãe ocupa o lugar do "Elsie Beckmann", pronunciado pela menina no plano 11; ocupa o lugar, isto é, exclui, por si próprio, a possibilidade da presença de Elsie: privada de "sua" voz, em breve privada de movimento, o objeto perde os atributos do "vivo" que ele representava.

Paralelamente à des-figuração que opera na série 23-27, um dos códigos da narração inverte-se: o código dos olhares. Isso ocorre várias vezes no sintagma (nos planos 4 e 5, 12 e 13, 15 e 16, 18 e 19, 20 e 21); a cada vez - com uma inversão nos planos 15 e 16 -, uma troca de direção (da atenção) é indicada, no que concerne ao olhar da Sra. Beckmann: o plano que sucede é visto pelo espectador como pela personagem (33).

No plano 23, a escada é, presumivelmente (34), vista pela mãe, mas, no plano 25, nasce uma d÷vida quanto ao eventual "voyeur" diegético. A Sra. Beckmann supostamente não deveria procurar Elsie na cozinha; é, sem dúvida, o espectador quem se encontra lá, diante da mesa, enquanto ecoa, ao longe, o chamado da mãe. Na medida em que o espectador, até esse momento do sintagma, foi "conduzido" por uma identificação heteropática, é ele quem, de repente, trata de sustentar o olhar da Sra. Beckmann, quem, nos dois últimos planos, verá, interpretará, sofrerá, idiopaticamente, por ela.

 

XIV. A repetição

Nos dois últimos planos, dá-se a ler e a reler a morte de Elsie: a ruptura que ambos instauram na figuração do exterior (o campo substitui a cidade) não é mais do que uma "evidência" suplementar. Considerando, porém, a repetição aí manifesta - a bola, o balão -,o desaparecimento de Elsie não é o único elemento significado elipticamente.

A bola não designa somente a criança, mas, também, o desejo do assassino (cf. plano 11). O balão comprado pelo assassino é uma repetição não redundante. Plongée versus contraplongée, movimento horizontal versus movimento ascendente: a bola e o balão figuram, metaforicamente, o esquartejamento decorrente de um gozo sádico, que encontra, na destruição do objeto, seu apogeu, ao mesmo tempo que seu fim (35).

"Hoje, quarta-feira, 9 de julho de 1504, às sete horas, meu pai morreu, às sete horas". Esse lapso de Vinci é comentado por Freud (1927), nos seguintes termos: "sem a inibição afetiva de Leonardo, a nota no diário poderia ter sido esta: hoje, às sete horas, morreu meu pai, meu pobre pai. O deslocamento da perseveração para o detalhe mais indiferente, a hora da morte, despoja, contudo, a frase de Leonardo de todo pathos e permite-nos, ainda, reconhecer que havia qualquer coisa a esconder e a reprimir". Portanto, o sexo e a violência (a violência sexual), recalcados pela censura (36), encontram, nessa repetição que os mascara e desvenda - de um modo deslocado -, sua força dramática. A reduplicação (Fontanier, 1968), que atravessa os diálogos e se difrata nos chamados da mãe, inscreve na imagem, sob a forma de "eco", seu pathos.

"Bilderschrift (37): não imagem inscrita, mas escrita pictórica, imagem dada não a uma percepção simples, consciente e presente da coisa mesma - supondo que ela exista -, mas a uma leitura" (Derrida, 1967, p. 323). Tomada entre o problema de saber como o significante pode desfazer-se, ao longo de cadeias associativas (plano 1), e fazer sentido, "pegar" (a sequência), essa leitura de M tentou encenar dois modos de trabalho: o engendramento, "mostrando que todo objeto tem um sentido obliterado, o processo de trabalho infinito que se gera nele" (Kristeva, 1969c, 286), e a estruturação do feno-texto (38) - a dinâmica dos motivos no plano e dos planos no sintagma, o jogo de contrapontos entre o sonoro e o visual. Se o primeiro sentido aqui atribuído ao termo trabalho constitui a perspectiva da leitura - a leitura por vir -, a passagem por um estado "estruturalista" parece impor-se também, na medida em que o cinema é ainda prisioneiro de resíduos analógicos: uma ofuscante "imagem das coisas" (39) impede de distinguir isso em que ela se inscreve a título de significante - uma trama textual, uma prática semiótica específica, uma figuração.

 

Notas

(1) M, 1931, primeiro filme sonoro de Fritz Lang. Ficha técnica, decupagem e diálogos em l'Avant-Scéne Cinéma, nº 39, 1964 [NT: em português, o filme tem o título M, o vampiro de Dusseldorf].

(2) NT: actancial é um conceito das análises de narrativas. Actante é o que executa ou sofre a ação narrada.

(3) "No filme, os signos são repartidos de acordo com uma densidade diversa; é o início do filme que tem, evidentemente, a maior densidade significativa" (Barthes, 1960 [NT: Kuntzel nem sempre fornece referências completas]). A "dilatação" em questão consiste no ato de desdobrar os elementos condensados.

(4) NT: denomina-se voz off aquela cuja fonte encontra-se fora do campo visual do espectador. Trata-se de uma voz diegética, isto é, imanente à narrativa. Nisso ela se diferencia da voz over, a voz do narrador que se sobrepõe à narrativa.

(5) NT: plongée - mergulho, em português - é o nome de um tipo de plano, que não tem tradução na nossa língua. A câmera foca os personagens e/ou objetos de cena, desde uma diagonal superior.

(6) NT: contraplongée é um tipo de plano, no qual a câmera foca os personagens e/ou objetos de cena, desde uma diagonal inferior.

(7) O plano é definido como fragmento contínuo, no descontínuo da montagem: "um pedaço de filme entre duas junçúes" (Martin, 1955), "elemento mínimo da cadeia fílmica" (Metz, 1968).

(8) "A descrição é, na realidade, uma primeira leitura" (Marin, 1970).

(9) Cf. as pesquisas psicossociológicas da Revue internationale de Filmologie ou la Civilisation de l'image, de Fulchignoni (1969).

(10) NT: em francês, o verbo visionner tem, entre outros, o sentido de assistir a um filme com um olhar crítico. Na falta de uma palavra em português com esse sentido específico, optamos por traduzir visionner por ler, uma vez que este verbo remete à comparação entre livro e filme, feita no parágrafo anterior, e vai ao encontro da proposta de Kuntzel de compreender um filme como um texto.

(11) Cf. o código do movimento analisado por Metz (1971).

(12) NT: engrener / égrener. O autor faz um jogo de palavras de difícil tradução. Engrener pode ser traduzido por engrenar, em um sentido mecânico (engrenagem), mas é também uma palavra do universo agrícola. Nessa acepção, refere-se ao ato de preencher com grãos (grains) o depósito de um moinho, a fim de triturá-los. Engraineur ou engreneur é o trabalhador rural encarregado de preencher com grãos o depósito de um moinho. Égrener é debulhar uma espiga, é promover a dispersão dos grãos.

(13) "Querer significar algo é o dever dos filmes destinados â juventude de amanhã": Fritz Lang, em Eibel (1964).

(14) O estabelecimento de um paralelo entre M e os Mabuse [NT: Dr. Mabuse, o jogador (1922), O testamento do Dr. Mabuse (1933) e Os mil olhos do Dr. Mabuse (1960)] extrapola os objetivos deste artigo; porém, assinalo, com o intuito de sustentar essa asserção, o retorno do comissário Lohmann (papel desempenhado por Otto Wernicke), em O testamento do Dr. Mabuse (1933).

(15) Múrder unter uns (Um assassino entre nós), Eine Stadt sucht einen Múrder (Uma cidade procura um assassino), Dein Múrder sieht dich an (Teu assassino te observa).

(16) Esse simbolismo é observável em certos alfabetos, nos quais o "M" é representado por pernas abertas, como em Menschenalphabet, de Flútner (1534) [NT: na sociedade medieval, o direito de jambage consiste no direito do suserano de "pôr a perna" no leito nupcial de um vassalo (jambe é perna, em francês)].

(17) Conforme a diferença fílmico / cinematográfico estabelecida por Metz (1971).

(18) "Certas 'sequências' de filmes, fortemente construídas e dotadas de relativa autonomia, oferecem ao analista uma unidade textual, da qual ele poderá buscar estabelecer o sistema" (Metz, 1971, p. 92).

(19) Fica em suspenso a questão de saber se os motivos significam (se inscrevem em uma trama simbólica, por exemplo) ou somente assinalam o pertencimento do filme a um sistema que o engloba, o "estilo" do diretor. Cf., sobre esse último ponto, as páginas consagradas por Eisner (1965) e Bellour (1966) a Fritz Lang.

(20) Sob "homem de preto" (Schwarzmann [NT: literalmente, homem preto]) afloram, como sob "M", diversas cadeias significantes: Haarmann (nome do assassino na canção popular, na qual Lang se inspirou), Grossman (assassino de crianças que Lang tinha em mente, durante a filmagem de M; cf. Cahiers du cinema, 179, junho de 1966) e o terrorífico "Homem de areia" castrador, Sandmann (Freud, 1933).

(21) Sobre as dificuldades da comutação de imagens, ler Metz (1968).

(22) Relais deve ser compreendido, mais do que em sua acepção cibernética, no sentido de vazio deixado em uma tapeçaria no momento de troca de cor (descontinuidade do texto) e preenchido a posteriori (pseudo-continuidade retórica).

(23) "Quando um crítico se ocupa de uma obra literária, a coisa mais natural que ele pode fazer é a 'congelar' (to freeze it), ignorar seu movimento no tempo e a considerar como uma configuração de palavras, cujas partes existem simultaneamente": Northop Frye (Fables), citado por Todorov (1970).

(24) Assim, o tamanho dos planos e os movimentos de câmera serão pouco considerados, ainda que eles pudessem constituir o eixo principal de outra leitura (cf., por exemplo, Bellour, 1969).

(25) NT: em uma versão disponível no Youtube, com legendas em português, insere-se, nesse ponto, um plano da Sra. Beckmann na cozinha, preparando o almoço, mas este plano não é mencionado por Kuntzel. Além disso, a segunda parte do que o autor denomina plano 7 parece compor com o plano 8 um único plano.

(26) "Intitulando um dos capítulos de A interpretação dos sonhos 'O trabalho do sonho', Freud levanta a cortina sobre a produção em si [...]" (Kristeva, 1969b).

(27) NT: o autor parece cometer alguns deslizes. No fim da seção anterior, afirma que "[...] sete planos do exterior 'respondem' a vinte planos do interior". No entanto, os planos de exterior são oito: 1, 7, 8, 10, 11, 17, 26 e 27. Os sete planos de interior, focados exclusivamente em objetos, são: 5, 13, 19, 21, 23, 24 e 25.

(28) Tal asserção vale apenas para este texto específico: a maior parte dos diretores lhe confia uma função explicativa, um papel de comentário onde são indicadas as "boas" leituras do filme.

(29) Este simples figurante revela, antes de tudo, a duplicidade das "forças da ordem": ele interrompe a circulação para que Elsie atravesse a rua sem perigo ou para que ela encontre seu assassino? A análise global de M deveria levar em consideração uma tão notável apresentação da polícia.

(30) A sombra de Nosferatu, no filme de F. W. Murnau (1922), a de Hagen, em Siegfrieds Tod, de Fritz Lang, ou a de Jack, o estripador, em Die Buechse der Pandora, de G. W. Pabst (1928), figuram, inequivocamente, a ameaça (Eisner, 1965).

(31) "Sabemos que ela [a deformação] é obra da censura [...]. O deslocamento é um dos procedimentos cruciais da deformação" (Freud, 1967, p. 266).

(32) Cf., em uma perspectiva ligeiramente diferente, o enlace que estabelece Jean-Paul Sartre (1943) entre o algo e o ninguém.

(33) NT: isso (o espectador ver do ponto de vista de um personagem) é o que se denomina plano subjetivo. Ele incita à identificação do espectador com a perspectiva do personagem.

(34) O código do olhar é regido pela verossimilhança, isto é, a visão do personagem diegético deve "fazer semblante de verdadeiro": a Sra. Beckmann se inclina; logo, o espectador vê a escada em um plongée vertical.

(35) Cf., de uma parte, o simbolismo do balão, do voo e da queda, estabelecido por Freud (1951), e, de outra, a figuração da oposição e da contradição, no sonho: "ele não as exprime, ele parece ignorar o 'não'. Ele distingue-se por reunir os contrários ou por apresentá-los em um ÷nico objeto" (Freud, 1967, p. 274).

(36) A partir do desvio imposto por essa instância, seria possível desenvolver uma analogia entre o aparelho psíquico e a produção fílmica?

(37) NT: palavra alemã utilizada por Freud, em A interpretação dos sonhos, com o objetivo de sustentar a legibilidade do sonho. Tradução: escrita pictórica, pictográfica ou figurativa; pictograma.

(38) NT: conceito proposto por Kristeva, em Semeiotiké. Trata-se do enunciado em sua materialidade, nisso diferindo do geno-texto, que consiste nos jogos subjacentes aos enunciados, que permitem a criação de uma multiplicidade de sentidos.

(39) "A figura nunca é 'capturada', senão pelo chamariz que ela propúe: uma imagem das coisas" (Schefer, 1969).

 

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Recebido em: 22/05/2019
Aprovado em: 11/07/2019

 

 

Revisão da tradução: Elisa Fernandes Rodrigues – professora de francês e mestranda em Letras / UFRGS.
1 Le travail du film foi originalmente publicado em Communications, volume 19, p. 25-39, 1972 (disponível em: https://www.persee.fr/doc/comm_0588-8018_1972_num_19_1_1279). Em inglês, The film-work foi publicado em Enclitic, v. 2, n. 1, p. 38-61, 1978, mas essa tradução não se encontra disponível on-line. Não encontramos tradução deste artigo publicada em espanhol e português.

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