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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.11 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2019v2p.222 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

A dor do luto: perspectivas psicanalíticas

 

The pain of the mourning: psychoanalytic perspectives

 

El dolor del luto: perspectivas psicanalíticas

 

 

Clarice MedeirosI; Isabel FortesII

IProfessora do Curso de Psicologia e da Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico- Institucional da Universidade Veiga de Almeida, Doutora em Psicologia Clínica na PUC-RIO / E-mail: mdrsclarice@gmail.com
IIProfessora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq / E-mail: mariaisabelfortes@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo, examinamos o luto e, especificamente, sua relação com a dor. O luto é uma reação afetiva diante da perda do objeto amado e a sua elaboração requer a constatação de que dito objeto não existe mais, exigindo que toda a libido seja retirada das ligações com ele. A contrapartida disso é a tentativa psíquica de prolongar a existência do objeto perdido por meio do hiperinvestimento. Pensamos no caráter penoso e dolorido do luto como decorrente desta dupla via: a ruptura das associações referentes ao objeto perdido, cujo efeito contrário é o alto investimento libidinal na representação do objeto.

Palavras-chave: LUTO; DOR; OBJETO; PSICANÁLISE.


ABSTRACT

In this paper, we examine the mourning and specifically its relation to pain. Mourning is an affective reaction to the loss of the beloved object and its work requires the realization that it no longer exists, requiring that all libido be removed from the bonds with the object. The counterpart of this is the psychic attempt to prolong the existence of the lost object by means of its hyper-investment. We think of the painful character of the mourning as arising from this double path: the rupture of associations concerning the lost object, the opposite effect of which is the high investment in the representation of the object.

Key words: MOURNING; PAIN; OBJECT; PSYCHOANALYSIS.


RESUMEN

En este artículo, examinamos el luto y específicamente su relación con el dolor. El luto es una reacción afectiva a la pérdida del objeto amado y su trabajo requiere la constatación de que ya no existe, exigiendo que toda la libido sea retirada de las conexiones en el objeto. La contrapartida de ello es el intento psíquico de prolongar la existencia del objeto perdido a través de la hiperinversión. Pensamos el carácter penoso y dolorido del luto como consecuencia de esta doble vía: la ruptura de las asociaciones referentes al objeto perdido, cuyo efecto contrario, es la alta inversión en la representación del objeto

Palabras-claves: LUTO; DOLOR; OBJETO, PSICOANÁLISIS.


 

 

Introdução

Como sujeitos marcados pela finitude, a morte sempre atravessa o nosso caminho, como ameaça seja da morte de si mesmo, seja da do outro. Notamos que, clinicamente, os pacientes relatam com frequência a dor deixada após a experiência da perda da pessoa amada. Nas teorizações psicanalíticas, entretanto, encontramos recorrentemente o tema do luto como um ponto de partida para descrever o processo melancólico ou a depressão, de forma que são quase inexistentes as pesquisas que se dedicam exclusivamente ao trabalho de luto. Desse modo, observamos aqui um descompasso: apesar de a incidência clínica em torno do luto e das experiências de perda ser muito frequente e marcante, verificamos uma escassez de bibliografia específica sobre o tema.

No presente artigo, propomos levantar alguns elementos importantes sobre o processo de luto, examinando mais profundamente a relação que podemos estabelecer, a partir dos textos freudianos, entre luto e dor.

Iniciando com uma perspectiva histórica, observamos que, antes de Freud, o luto já fora objeto de estudo investigado por diferentes autores. Segundo Franco (2010), no século XVII, Robert Burton publicou o trabalho nomeado The anatomy of melancholy em que o autor defende que o pesar gerado por uma perda tanto poderia ser um sintoma, como a causa da melancolia, hoje entendida e denominada, pela psiquiatria, como depressão. Nos séculos XVII e XVIII, o luto era considerado como um perigo de morte e, para isso, eram prescritas medicações para quem fosse diagnosticado com luto patológico.

Foi no cenário das grandes guerras mundiais que novas visões sobre o luto se apresentaram. No período da Primeira Guerra, Sigmund Freud escreveu, em 1917, o artigo Luto e Melancolia, sobre diferentes efeitos psíquicos oriundos das vivências da perda. Já no cenário da Segunda Guerra Mundial, Abram Kardiner publicou, em 1941, o livro Traumatic neuroses of war, obra que aborda o sofrimento daqueles que foram expostos a situações de guerra e riscos de vida. Em 1944, Erich Lindemann descreve a situação de luto agudo e destaca os efeitos indesejáveis da repressão ao luto. Além disso, o psicanalista inglês John Bowlby tornou-se referência importante no campo psicanalítico para os estudos acerca do luto, tendo trabalhado como psiquiatra infantil durante a Segunda Guerra e também no atendimento de casos graves resultantes de neuroses de guerra. Inspirado nesta clínica, Bowlby desenvolveu a Teoria do Apego, explorando as primeiras experiências subjetivas entre pais e bebês e os efeitos psíquicos na criança da separação destes primeiros objetos como sendo verdadeiras vivências de luto. Suas duas maiores contribuições teóricas foram a compreensão sobre as diferenças individuais nas relações de apego e o conceito de cuidador como a base segura para o desenvolvimento emocional. Em ambas, a temática do luto foi um articulador central (Franco, 2010). Este tema voltou à baila nas últimas décadas, talvez, como indica Franco (2010), por algumas condições de vida na atualidade que se relacionariam com o luto, a perda e a separação. Dentre algumas dessas condições, poderíamos destacar: o envelhecimento da população, a extrema precariedade dos serviços públicos de saúde e o aumento das situações de morte em massa, que têm gerado nos indivíduos o recrudescimento dos sentimentos de incerteza e de desamparo. Não podemos deixar de destacar, também, o luto derivado dos movimentos migratórios contemporâneos, uma vez que o refugiado não apenas perde o seu país, suas referências e códigos simbólicos, mas comumente encontra hostilidade e exclusão nos países de destino (Rosa, Berta, Carignato & Alencar, 2009). Tais experiências apresentam-se como de difícil elaboração pelos enlutados, uma vez que estes muitas vezes não conseguem dar a elas qualquer sentido ou causalidade.

 

 

Outro elemento relevante da vida atual é a carência dos rituais simbólicos de luto, organizadores da tradição cultural. Tal escassez diminui o campo da elaboração, gerando sentimentos de raiva, horror e choque, fazendo da perda, com frequência, uma experiência mais próxima do trauma do que do luto. A comoção da raiva em casos de situações de violência urbana ou morte em massa soma-se a uma experiência de luto na comunidade, que não seria restrito à família ou aos laços sociais mais próximos. Por essas razões, Franco (2010) defende a ampliação dos estudos sobre o luto, voltando-se especificamente a temáticas como: luto normal e luto complicado; formas de intervenção em luto; diferenças culturais, de gênero e idade; luto traumático; psicopatologia e fenomenologia do luto.

Sobre a atual concepção dos lutos traumáticos devido a situações de morte em massa, vale destacar as reflexões de Judith Butler (2015) sobre o luto possível em situações de guerra, elaboradas no livro Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Segundo a filósofa, faz-se necessário pensar nas mortes em massa que ocorrem nos contextos das guerras a partir da ideia de uma vulnerabilidade inerente à própria vida humana. Em outras palavras, todos nascemos precários, sendo a precariedade vista como "condição partilhada de vida humana" (Butler, 2015, p.19). Nesse sentido, a precariedade requer necessariamente a edificação dos laços sociais; ou seja, é justamente "porque um ser vivo pode morrer que é preciso cuidar deste ser para que ele viva" (p.20). Para dar estofo a essa tese, Butler propõe pensar na Comunidade, termo empregado para tratar o que estaria na base da vulnerabilidade e da perda. Assim, parte da ideia de que todos nós, de algum modo, perdemos algo ou alguém, ou somos afligidos pela possibilidade de vir a perder (pela doença, pela violência, etc.). Consequentemente, "cada um de nós se constitui politicamente em virtude da vulnerabilidade social de nossos corpos - como lugar de afirmação e de exposição" (Butler, 2015, p.46). Desse modo, observamos que a ideia de luto coletivo e social tem ganhado destaque na contemporaneidade devido aos enquadres de massacre e mortes que testemunhamos em nossos dias.

A partir desse breve panorama de pesquisas e publicações que se debruçam sobre o tema do luto, reiteramos novamente, portanto, a carência de bibliografia psicanalítica específica sobre o luto. Allouch (2004) destaca a ausência de um escrito exclusivo sobre o luto na obra freudiana, uma vez que o ponto de referência do principal estudo, Luto e Melancolia, é a melancolia, e não o luto. Se Freud comumente parte da clínica para elaborar um conceito ou uma teoria, não é isso que ele faz nesse texto, pois a especificidade do luto é inexistente no ensaio, uma vez que é sempre abordado a partir da problemática da melancolia. O que se apresenta como normal no trabalho de luto seria uma norma comum a todos, como processo naturalmente desencadeado pela perda.

Tentaremos, portanto, avançar sobre a problemática da dor no trabalho de luto, seguindo a perspectiva da psicanálise.

 

A morte, o luto e a sua dor

Freud não se eximiu, ao longo da consecução da sua obra, de relatar seus sofrimentos e perdas. Como poucos autores e criadores de teorias, teve a coragem de falar de sua história pessoal aos seus leitores. Assim, não é incomum encontrarmos, em seus escritos, revelações que fez sobre si, sobre seus pensamentos, seus sonhos e suas angústias. A morte atravessou a sua vida diversas vezes com a perda de pessoas amadas, sendo uma questão que ele frequentemente abordou. Afinal, ele também "matou e morreu em seus sonhos; temeu e acreditou morrer jovem (...); desejou morrer como um alívio para seu sofrimento" (Zaidhaft, 1990, p. 67), conforme encontramos em suas narrativas teórico-clínicas.

Morte e dor são, assim, temáticas que emergem nos primeiros escritos freudianos, mas não de maneira consistente e articulada. Em uma carta a Fliess, de 19 de abril de 1894, Freud conta estar sofrendo de uma série de sintomas e coloca em cena a ameaça de sua própria morte:

a mais violenta arritmia, tensão constante, pressão, ardência na região cardíaca, pontadas agudas descendo pelo braço esquerdo e uma certa dispneia: tudo isso, essencialmente, em ataques que se estendem continuamente por dois terços do dia; a dispneia é tão moderada que se chega a suspeitar de alguma coisa orgânica; e, com ela, um sentimento de depressão, que assumiu a forma de visões de morte e separação, em lugar do costumeiro frenesi de atividades. (Masson, 1986, p.67)

Dando sequência ao relato citado acima, ele expressa a aflição, para um homem da medicina, de passar dias enfrentando o desafio para alcançar a compreensão sobre as neuroses, sem conseguir chegar a saber se ele mesmo estaria sofrendo de depressão ou de hipocondria. Diante disso, procura a ajuda de Breuer, que infere o seu estado ao uso da nicotina, suspeitando que esta estava causando danos ao seu coração. Desconfiado do diagnóstico, Freud apela a Fliess, suplicando-lhe que lhe diga a verdade, demandando veementemente um diagnóstico definitivo: "suportarei com grande dignidade a incerteza e a expectativa de vida abreviada, ligadas ao diagnóstico de miocardite; ao contrário, poderia até tirar proveito disso, organizando o restante de minha vida e desfrutando integralmente do que me resta" (Masson, 1986, p. 68). A seguir, diz ser assustadora a eventualidade de uma doença crônica, já que teria que interromper as atividades ligadas ao seu trabalho científico. Em outra carta, datada de 16 de abril de 1896, Freud relata ter enxaquecas e ataques de medo da morte. Sobre isso, credita à morte devido a problemas cardíacos do escultor Victor Tilgner a responsabilidade pelos seus próprios temores.

Na carta de 29 de setembro de 1896, constata que seu pai parecia estar próximo da morte, pois apresentava um quadro de confusão e estava definhando ininterruptamente. Cerca de um mês depois, escreve novamente a Fliess sobre a morte do pai, narrando-lhe que:

Enterramos ontem o velho, que faleceu na madrugada de 23 de outubro. Ele se sustentou com bravura até o fim, como o homem inteiramente incomum que foi. No final, parece ter tido hemorragias meníngeas, ataques de sonolência com uma febre inexplicável, hiperestesia e espasmos, dos quais acordava, depois, já sem febre. O último ataque foi seguido de edema pulmonar e de uma morte serena. Tudo aconteceu em meu período crítico, e estou realmente muito abatido por causa disso. (Masson, 1986, p. 202)

Em missiva de 2 de novembro de 1896, o psicanalista demonstra seu pesar com a morte do pai, a quem era muito próximo. A situação de adoecimento do pai fora prolongada, a ponto de Freud exprimir que "na ocasião em que morreu, sua vida estava há muito terminada" (Masson, 1986, p. 203) e que toda sua história, seu passado, foi reavivado por tal acontecimento, revelando que se sentia agora "totalmente desarraigado" (Masson, 1986, p. 203). Mais adiante, ainda escreve que lhe falta ânimo e prazer de viver. Sente-se impelido a se ocupar de diversas questões após a perda do pai. E, em seguida, afirma experimentar uma intensificação, mesmo que temporária, de suas dores cardíacas.

Em 21 de setembro de 1897, escreve que, a partir dos seus sonhos, percebeu que havia saudado a chegada de seu irmão, um ano mais novo, com desejos hostis e um autêntico ciúme infantil. O falecimento deste irmão alguns meses depois seria o germe de suas fortes autorrecriminações. A partir de então, disserta sobre o desejo de morte dos filhos sentido pelos pais, temática bastante explorada nas cartas seguintes.

Aubert (2017) aponta outro acontecimento marcante: a morte de outro irmão mais novo de Freud, Julius. Em suas correspondências com Fliess, Freud começa a relatar suas enxaquecas e outras dores e claramente revela que se debruça nas pesquisas sobre a dor devido à sua condição pessoal: querer tratar as suas próprias dores. Seu interesse pessoal o impele a se engajar ainda mais neste estudo, quando encontra um amigo morfinômaco acometido por dor e de quem ele é muito próximo, Von Fleischl, que havia atingido os limites extremos do desespero por causa de suas dores. Desde então, Freud passou a dedicar-se ao exame sobre os efeitos do uso da cocaína para aliviar a dor. A empreitada leva-o a utilizar a cocaína e a afirmar que a droga era curativa e não causava os danos da morfina. A cocaína, segundo ele, era capaz de tratar de todos os seus males, por aumentar as faculdades mentais, a ampliação da resistência à dor e suprimir a fome, mas, tal como a morfina, também possuía efeitos antagônicos.

A correspondência com Martha, sua esposa, revela o uso prolongado que Freud fez da cocaína, muito além das exigências do trabalho científico, uma vez que ela servia como alívio das dores. Escrevera, certa vez, que o estudo sobre a coca era para ele um allótrion, termo grego que significa o "o que é estranho a si próprio" (Roudinesco, 2016, p. 53), que ele quisera manter afastado de si. A investigação sobre a cocaína era para ele, ao mesmo tempo, um momento marginal e essencial. Para Aubert (2017), a cocaína resolve, além da dor, a questão de sua ambivalência sobre o seu engajamento com a medicina. Em uma carta a Ferenczi, Freud afirma sentir falta da paixão por ajudar e a razão disso seria a de que, até a sua juventude, não havia perdido nenhum ser amado. Essa seria para ele uma restrição que aumentava as dificuldades profissionais e pessoais em abordar a dor. Na opinião de Roudinesco (2016), o uso da coca foi o que possibilitou a Freud "fazer o luto da abordagem fisiológica em prol do estudo dos fenômenos psíquicos" (p. 53).

Dessa forma, podemos verificar nos testemunhos de Freud sobre a perda dos entes queridos ou diante da ameaça de sua própria morte uma referência constante ao tema da dor e uma preocupação permanente em ter condições tanto de pesquisá-la quanto de tratá-la. A dor se revela para ele como tema de grande desafio, sendo sempre abordada em concomitância com os temas do luto e da morte.

 

O trabalho de luto

Em Luto e Melancolia (1917/1996f), Freud lança luz sobre a melancolia, diferenciando-a do afeto normal do luto. Esse é o principal artigo da obra freudiana acerca do luto e, mesmo assim, vemos que o tema se situa, também aqui, mais como um ponto de partida para o desenvolvimento teórico do quadro da melancolia. Allouch (2004) explicita a importância do momento em que esse ensaio foi escrito. Trata-se de uma época histórica em que a perda não é mais um fato social que paralisa, mobilizando os viventes de maneira coletiva. Consequência disso, como já dito acima, é que o luto deixa de ser um acontecimento social, com rituais de elaboração de morte coletivos, o que lhe retira certa possibilidade de elaboração. A morte passa a ser marcada pelo pudor e pelo silêncio e ao enlutado, com seu sofrimento, é dado o lugar de uma patologia. Nesse contexto, Freud, então, propõe de saída pensar o luto como um afeto normal e não patológico, e opera uma virada nas concepções vigentes até o momento. Apesar dessa contribuição, Allouch (2004) não considera que Freud tenha escrito uma versão psicanalítica do luto, mas quis, a partir do luto, dedicar-se à melancolia, como explicita o título do manuscrito. Assim, o ensaio é marcado por paradoxos e obscuridade.

De saída, Freud (1917/1996f) considera o trabalho de luto um processo que deve ser concebido como absolutamente normal, e não considerado como condição patológica, como seria o caso da melancolia, porque pode ser superado após certo tempo. Ele descreve o luto como uma reação afetiva frente à perda de um ente querido. O trabalho de luto atravessa, por meio do teste de realidade, a necessidade de constatar que o objeto amado não existe mais, exigindo que a libido seja retirada de suas ligações com dito objeto. Aos poucos, esse trabalho é realizado, requerendo grande dispêndio de tempo e de energia. A contrapartida desse processo recai, porém, no movimento oposto: a tentativa psíquica de fazer perdurar, de alguma forma, a existência do objeto perdido. Para isso, cada lembrança e expectativa à qual a libido está vinculada é evocada e hiperinvestida, ao mesmo tempo que ocorre uma exigência de trabalho de desligamento de cada uma delas. Essa exigência encontra, contudo, uma barreira, uma vez que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo quando um substituto já emerge na realidade.

Essa oposição pode ser tão intensa que dá lugar ao desvio da realidade e a um apego ao objeto por intermédio de uma fantasia intensa, ou mesmo de uma psicose alucinatória carregada de desejo. O luto pode, assim, apresentar um caráter profundo ao manifestar-se como um estado de espírito penoso com a perda de interesse no mundo externo e da capacidade de adotar um novo objeto de amor, ou com o afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada ao objeto perdido. Dessa forma, a inibição e a perda de interesse do mundo externo decorrem do próprio trabalho de luto em que o eu se encontra absorvido (Freud, 1917/1996f).

Das proposições sobre o luto descritas por Freud, Allouch (2004) comenta que elas parecem ter um enredo simples: "era uma vez um objeto investido libidinalmente. Atingido pela morte, esse objeto adquire o estatuto de objeto perdido na realidade. Cabe, então, ao eu liberar sua libido desse objeto perdido" (p.67). O autor destaca, entretanto, um caráter problemático das formulações freudianas acerca do luto: a prova ou teste de realidade e a substituição do objeto como solução para o luto. Veremos esses argumentos a seguir.

Primeiramente, Allouch (2004) questiona "a prova" de realidade. Será que é evidente que a realidade pode mostrar que o objeto amado não existe mais? Basta recorrer à experiência do enlutado que, quando se defronta com algo ou alguém que porta traços semelhantes ao objeto perdido, se vê diante "da abertura repentina e inesperada dessa possibilidade de reencontro, de um iminente abraço. Mas ele estaria vivo então!" (Allouch, 2004, p.71). Assim, o morto, do ponto de vista da realidade, longe de ser inexistente, é nomeado como um desaparecido. É esse o dado que a realidade tem para oferecer, ou seja, o morto como um desaparecido é sempre alguém que pode vir a reaparecer. Dessa forma, não é propriamente uma prova de realidade que estaria posta no luto, uma vez que "a verdadeira prova de realidade, o que a torna assim tão assustadora e rica na experiência é quando percebemos que ela não permite nenhuma prova." (Allouch, 2004, p. 72) Assim, para falar em "prova" da realidade seria preciso que ela fosse conclusiva e o que a experiência demonstra é que isso não acontece. Quando recebemos a notícia de que alguém morreu, frequentemente, advém a frase "não é verdade!". Então, trata-se menos da realidade e mais da verdade. Esse grito de "não é verdade" tem o alcance de marca inaugural que introduz o sujeito em seu estatuto de enlutado porque indica que a realidade é justamente aquilo de que o próprio sujeito não pode fazer provas, mas que emerge um questionamento.

Segundo Freud, após o teste de realidade, que, como vimos, é falho, há o retraimento dos investimentos objetais e o superinvestimento no objeto perdido, dando origem à psicose alucinatória do desejo. Esse é outro ponto que Allouch (2004) questiona. Sobre o fato de Freud chamar de psicose esse processo, o autor adverte que não se trata de uma entidade clínica, mas sim do desligamento da realidade. Com relação ao caráter alucinatório do desejo, retoma os escritos sobre a interpretação do sonho, em que Freud defende que o sonho é uma realização alucinatória do desejo, e para tanto, dedica-se a explorar mais uma vez o estatuto do objeto. Luto e Melancolia distingue três modos de existência do objeto perdido. Ou bem ele se desvia da realidade e mantém o objeto por meio de uma psicose alucinatória de desejo; ou bem ele respeita a realidade e segue o luto normal ou abre caminho para uma depressão; ou, ainda, dá origem à melancolia. A conclusão do autor, no que se refere à psicose alucinatória do desejo, é que investigar a relação de objeto nessa perspectiva implica conceber um ponto de mimese na relação com o objeto suscetível de trazer a satisfação, de permitir o cumprimento do desejo. Em outras palavras, a percepção da imagem do objeto vale pelo objeto. Essa relação mimética do objeto é ineliminável em Freud. Ora, se o objeto está perdido, seu reencontro, condição para obtenção de satisfação, só pode ser aquele de suas marcas perceptivas, as quais são repositórios vindos de experiências anteriores de satisfação. A psicose alucinatória do desejo seria capaz de encontrar, por sua operação específica, essa re-presentação do objeto, denunciando, mais uma vez, a inconsistência da prova de realidade.

Por fim, o último ponto explorado por Allouch (2004) é sobre a substituição dos objetos como "traço essencial da versão freudiana do luto" (p. 126). Se houver luto, o enlutado passará da experiência de desaparecimento de um ser querido ao reconhecimento de sua inexistência, tal como Freud demonstrou. No entanto, essa inexistência não pode estar no começo do luto. Se for admitida, ocorre ao final. A versão freudiana do luto não se limita a outorgar uma existência ao objeto perdido, ela vai indicar quando essa existência chega a seu termo, ou seja, quando o objeto substitutivo pode ganhar consistência. A solução é encontrada por Freud, então, quando um novo objeto, tão precioso quanto o anterior, se apresenta. A perspectiva da substituição orienta o percurso do luto. Para o autor, enquanto Freud coloca o caráter de substituível ao objeto perdido como a solução do luto, a experiência demonstra que "se perco um pai, uma mãe, uma mulher, um homem, um filho, um amigo, vou (...) poder substituí-lo?" (Allouch, 2004, p. 49), isto é, o questionamento de Allouch explicita justamente o caráter insubstituível do objeto.

Para Freud, o psiquismo pode ser tanto o lugar onde o objeto pode não estar perdido, onde ele vem a "existir", pelo tempo do luto considerado normal ou ainda indefinidamente no luto patológico, quanto o lugar onde o objeto pode ser reconhecido como perdido. Não se trata de uma perda seca do objeto, há nisso um romantismo, na visão de Allouch (2004). O caráter decisivo do objeto substituto é que ele se mostra como a resolução do luto, de modo que somente o investimento de tal objeto indica que o luto está cumprido. Enquanto isso não acontece, o objeto existe no psíquico; "quando o for, o objeto re-existe na realidade" (Allouch, 2004, p. 144). Na opinião do autor, a tese da substituição do objeto "é o cúmulo da versão romântica do luto, pois, apesar da

morte, para além da morte e, logo, na morte, ela promete a qualquer um a felicidade de um novo encontro com seu objeto" (p. 145). Consideramos interessante esta leitura que Allouch faz da noção de luto, pois vemos o quanto para ele o luto traz em si só algo do irremediável da perda, o que apontaria para uma visão mais trágica do luto.

 

A não representação da morte

Os paradoxos sobre o trabalho de luto e especificamente sobre a substituição dos objetos ao seu final levantados por Allouch (2004) encaminharam-nos para a questão da não representação da morte no psiquismo. Em Interpretação dos sonhos, livro considerado o marco da inauguração da psicanálise, Freud (1900/1996b) analisa os sonhos típicos de morte de uma pessoa querida, sempre acompanhados de tristeza. Estudando a hostilidade entre irmãos e o desejo de morte que pode surgir no espaço fraterno, pôde afirmar que o medo da morte não tem significado para as crianças, uma vez que para elas estar morto seria o mesmo que ir embora, ausentar-se. Os sonhos revelam, assim, para Freud, a não representação da morte no inconsciente. Tal concepção, muito anterior a Luto e Melancolia, reitera a proposta de Allouch em pensar que a morte é tomada pelo psiquismo como um desaparecimento, e como tal, o objeto pode sempre retornar.

Como podemos, então, pensar na não representação da morte? Rodrigues (2006) pontua que uma coisa é encarar a morte como algo inerente à vida, como um destino incontornável para todos os seres vivos. Outra, distinta, é pensar na realidade da morte individual. O autor questiona como um sujeito pensante pode vir a conceber um estado de não pensamento como a morte. A problemática toda está centrada não na morte como uma categoria geral e indefinida, mas no fato de que o sujeito, pensante, morre - "eu morro". Além disso, o fantasma de aniquilamento "ronda, envolve, fustiga e desafia todos os sistemas humanos de explicação do homem e do mundo" (Rodrigues, 2006, p. 18). Desta forma, "a morte não se limita a pôr fim à existência corporal. Ela destrói ao mesmo tempo o ser social investido sobre a individualidade física" (Rodrigues, 2006, p. 20).

A morte, nessa perspectiva, não é vista apenas como destruição do ser físico e biológico; mais do que isso, é a destruição do ser em sua relação intrínseca com o outro, como membro de uma cultura, conforme destacamos acima. O vazio instaurado pela morte é, antes de tudo, o vazio dessa perda relacional. A consciência da morte é importante como movimento de valorização da vida e de preservação de si e, na medida em que toca a individualidade, diz respeito também à coletividade, pois somos membros de uma cultura. Nenhuma experiência aproxima-se, contudo, do que de fato é o morrer, principalmente quando falamos da morte de alguém próximo, alguém a quem somos afetivamente ligados e com o qual se estabelece um vínculo ao mesmo tempo pessoal e coletivo, que se rompe. A morte do outro sempre evoca a morte de si e força o sujeito a pensar em sua própria finitude. E apesar de encontrarmos diversas tentativas de construções de saber, científico, religioso, dentre outros, para lidar com o enigma da morte, esta é marcada por um não saber que lhe é intrínseco.

Nos relatos sobre seus sonhos, Freud dá notícias desse não saber sobre a morte ao mostrar que, nos sonhos, não há menção da real mortalidade do falecido, ou seja, não existe, no sonho, o significado da morte. Em um sonho sobre seu pai, ele conclui que seu significado oculto seria o desejo de manter a imagem do pai como um ser grande e imaculado, inatingível mesmo após a sua morte (Zaidhaft, 1990). Os sonhos demonstram, portanto, novamente, como o teste de realidade é falho, uma vez que o objeto perdido permanece hiperinvestido no psiquismo e se apresenta como vivo para aquele que sonha. No sonho aqui mencionado, além de vivo, o objeto permanece idealizado.

Percebemos também, no manuscrito O inconsciente (1915/1996d), o lugar da morte para a humanidade como uma não inscrição inconsciente, uma vez que não há nesse sistema a lógica da negação e, além disso, ele seria marcado pela atemporalidade, isto é, pela suposição de eternidade. Com efeito, exatamente desta não inscrição decorreria a necessidade de toda a tarefa psíquica realizada pelo trabalho de luto. Este não é automático nem evidente, pois é necessário um esforço psíquico profundo, um intenso trabalho de elaboração psíquica, diante do não sentido da morte.

 

Uma distinção entre luto e dor?

Uma contribuição importante sobre o luto e sua dor está presente no texto Inibição, Sintoma e Angústia. Aqui, Freud (1926/1996g) distingue e designa mais detalhadamente os termos angústia, luto e dor, possíveis reações afetivas diante de uma perda. Com o desaparecimento do objeto amado, é possível a ocorrência do luto, da angústia ou da dor. O luto se daria quando ocorre a perda real do objeto; a angústia se situa como uma reação ao perigo da perda do objeto; e a dor seria uma reação real diante da perda. Vejamos mais detalhadamente tais distinções.

A angústia é descrita como uma reação a uma situação de perigo. Ela é ao mesmo tempo produzida e remediada pelo eu, que precisa realizar um ato psíquico que a abrande ou que a elimine. Mas qual seria o perigo que a angústia representa para o eu? Freud (1926/1996g) assevera que há algumas possibilidades: o perigo do desamparo psíquico quando o eu do sujeito ainda é imaturo; o perigo da perda do objeto até a primeira infância, quando o sujeito se acha na dependência de outros; o perigo de castração até a fase fálica; e o medo do supereu, até o período de latência.

Assim, todas as situações acima assinaladas podem ser determinantes para a eclosão da angústia e podem existir lado a lado. Com isso, Freud (1926/1996g) conceitua a angústia articulando-a à noção de castração, ao indicar que esta pode vir a ser a amarração central das angústias devidas às várias perdas. O tema da castração, desse modo, na medida em que ligado à angústia, ganha centralidade na obra ao ser polo possível de amarração simbólica das nossas perdas. Tendo isso em vista, a angústia passa a ser definida como um "sinal afetivo do perigo" (1926/1996g, p. 129), que pode, no caso da referida amarração, ser vivido pelo sujeito como o perigo da castração. Nesse viés, concebe-se a angústia, portanto, como uma reação à perda do objeto e a angústia de castração como o medo de sermos separados de um objeto altamente valioso.

Já em relação à dor, Freud (1926/1996g) a descreve como sendo uma reação real à perda do objeto amado, diferenciando-a da angústia, que seria uma reação diante do perigo da perda. Para explicar o processo da dor, faz-se necessário diferenciar a dor física da dor psíquica. A primeira seria oriunda de uma lesão ou uma doença e a dor psíquica, por sua vez, decorreria da perda do objeto amado e não seria fruto de uma lesão ou doença. A transformação de uma dor física em uma psíquica é possível, por meio da mudança do investimento narcísico para o objetal.

Apesar de tentar traçar uma distinção entre as duas, Freud (1926/1996g) pende sempre mais a conceber uma analogia entre dor física e dor psíquica: tanto uma representação do objeto quanto uma parte do corpo desempenham o mesmo papel quando investidas de um aumento de estímulo. Além disso, pondera que não é possível descartar o fato de que usamos o termo "dor" tanto para a dor psíquica, correlata ao sentimento de perda do objeto amado, quanto para a dor física.

Apesar do esforço freudiano em traçar uma diferenciação entre angústia e dor, para Pontalis (2005), as formulações apresentadas não tornam mais claras as distinções. Isso porque, primeiramente, angústia e dor são pensadas em relação ao mesmo determinante, a perda do objeto. Enquanto a dor seria a reação à própria perda do objeto, a angústia seria uma reação ao perigo dessa perda. Somente a sinalização de um perigo da perda serviria como baliza para diferenciar as duas. Além disso, em termos econômicos, as duas se aproximam. As condições econômicas são as mesmas na angústia e na dor, uma vez que elas são sempre um excesso, quer que se trate de um investimento nostálgico dirigido a um objeto perdido (angústia), quer se trate do investimento concentrado numa parte lesada do corpo (dor). Para Pontalis (2005), a diferenciação entre as duas está no fato de a dor ocupar o centro da cena psíquica até modificar toda a geografia corporal, mas sua origem permanece desconhecida. E, por isso, ele descreve de uma forma expressiva uma possível distinção: "tenho angústia, sou dor" (Pontalis, 2005, p.271).

O grande desafio para Freud no ensaio de 1926 parece, entretanto, ser a demarcação da diferença entre dor e luto. O luto ocorre quando, sob a influência do teste de realidade, exige-se que o sujeito se separe do objeto, uma vez que este não mais existe. Como escrevemos anteriormente, o teste de realidade é, contudo, um processo falho, uma vez que a representação do objeto permanece preservada. Com isso, a diferenciação entre dor e luto torna-se ainda mais nebulosa, principalmente porque ouvimos frequentemente, na clínica, sujeitos acometidos por dor quando perderam alguém. Para Pontalis (2005), fazer a diferenciação tendo como ponto de baliza a perda de um objeto é complicado, pois é notório que em psicanálise o objeto está irremediavelmente perdido e ele não pode ser reencontrado a não ser pela via da representação, o que torna o outro presente, como sendo ao mesmo tempo semelhante e diferente.

Mas, sobre isso, indagamos: se o objeto está perdido desde sempre e para sempre, porque o sujeito sofre diante da perda do objeto amado? Esse objeto é nosso elo ao amor, a todo amor, e, por isso, participa das representações e investimentos inconscientes. Acreditamos que, ao perder esse objeto, o estatuto do objeto real perdido se atualize para o sujeito, o que faz que a história das suas perdas seja materializada nos sofrimentos atuais.

Em Sobre a transitoriedade (1916/1996e), um texto contemporâneo a Luto e Melancolia, é apresentado o caráter enigmático do luto. A partir da distribuição da libido descrita em seu texto sobre o narcisismo, Freud considera que o próprio eu é fonte de investimento libidinal e, desde muito cedo, a libido é dirigida para os objetos. Se os objetos forem destruídos ou perdidos, como no caso do luto, a capacidade de amar (libido) será liberada e poderá encontrar novos objetos ou retornar temporariamente para o eu. Mas Freud comenta que há nisso um mistério: por que se separar do objeto é um processo tão penoso? A libido apega-se a seus objetos e não renuncia a seus investimentos, mesmo quando é possível encontrar um substituto. Esse é o luto. A libido apega-se com uma intensidade ainda maior ao que sobrou, fortalecendo o investimento.

 

A dor do luto

Retomamos, aqui, uma das questões que norteia o presente trabalho. De que forma o luto gera dor? Encontramos uma nota interessante escrita pelo tradutor da obra freudiana para o inglês, James Strachey (1996), em Luto e Melancolia, mostrando que o termo luto se traduz em alemão por trauer e em inglês por mourning, e, em ambas as línguas, pode significar o "afeto da dor como sua manifestação externa" (p.249), denunciando a relação entre luto e dor.

A partir disso, podemos pensar na resposta para essa questão através de duas frentes que se conjugam. A primeira é notar que o alto investimento na representação do objeto perdido pode produzir o afeto da dor. Em 1914, em Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud associou a experiência da dor e da doença orgânica ao narcisismo, citando a célebre frase de Wilhelm Busch a respeito do poeta que sofre de dor de dente: "concentrada está a sua alma no estreito orifício do molar" (Freud, 1914/1996c, p. 89). Com isso, indicava que na dor e na doença orgânica (do mesmo modo que em todo sofrimento), o enfermo retiraria o interesse e a libido do mundo, concentrando-os no órgão dolorido ou doente. Aquele que é tomado pela dor e por um mal-estar abandona o seu interesse pelos objetos do mundo exterior, desde que elas não tenham relação com o seu sofrimento. A dor, nesse momento, é o paradigma do narcisismo, de modo que o retorno narcísico concentra a vida psíquica em uma parte do corpo.

A segunda frente pela qual podemos articular luto e dor na obra freudiana é pela leitura do ensaio Projeto para uma psicologia científica, em que que a dor é resultante do excesso. Após se dedicar ao problema da quantidade no aparelho psíquico, Freud debruça-se sobre a temática da dor, trazendo indicações fundamentais sobre sua economia: "todos os dispositivos de natureza biológica têm limite de eficiência e falham quando um limite é ultrapassado" (Freud, 1895/1996a, p. 358). Ele explica que o aparelho psíquico suporta certa quantidade de energia, mas somente até determinado limite. Quando esse limiar é ultrapassado, rompem-se as barreiras de proteção e ocorre "a experiência da dor". A partir dessa formulação freudiana, entendemos ser a dor uma ultrapassagem das fronteiras do princípio do prazer, consistindo em irrupção de grandes cargas de energia no psiquismo, de modo que "ela é o mais imperativo de todos os processos" (Freud, 1895/1996a, p.359). No caso da dor, os excessos de estímulos sobre o aparelho psíquico rompem as barreiras de proteção, fazendo com que ela seja efeito de uma "implosão" diante da qual o princípio do prazer não consegue mais manter a tarefa de regular o psiquismo.

Dessa forma, diante da perda do objeto de amor, não haveria proteção possível e a função do trabalho de luto é o de retirar o investimento do objeto perdido, mas para isso, o eu fica subsumido por essa tarefa e o efeito reverso pode ocorrer: o superinvestimento na representação do objeto. Observamos que o caráter penoso e dolorido do luto é decorrente dessa dupla via: a ruptura das associações referentes ao objeto perdido, cujo efeito contrário, uma vez que não abandonamos facilmente as ligações com esse objeto, é o alto investimento na representação do objeto. Desse modo, Freud (1895/1996a) comenta que "desfazer associações é sempre doloroso" (p.252) e que é adequado "chamar a disposição para o luto de dolorosa" por meio da "caracterização da economia da dor" (Freud, 1917/1996f, p. 250), tal como descrito no Projeto.

Assim, na experiência do luto, "o sujeito mergulha na vertigem da dor" (Lacan, 2016, p. 360) e encontra-se em uma relação peculiar com o objeto perdido. O luto é caracterizado por ser uma "perda verdadeira, intolerável para o ser humano, (que) lhe provoca um buraco no real" (Lacan, 2016, p. 360). A experiência intolerável que emerge aqui, esclarece Lacan (2016), não é o fato de o sujeito se deparar com a própria morte, mas a morte de um outro essencial para o sujeito. Essa perda constitui uma verwerfung, um buraco, mas no real, diferentemente da constituição da psicose, em que verwerfung é no simbólico, em que aquilo que foi rechaçado retorna no real. Esse buraco no real oferece o lugar em que se projeta precisamente o significante faltante. Trata-se de um significante essencial à estrutura do Outro, cuja ausência torna o Outro impotente para dar uma resposta. Lacan (2016) segue Freud, em sua aproximação do luto à psicose alucinatória, atestando que desse significante faltante podem emergir em seu lugar imagens ligadas aos fenômenos do luto. O trabalho do luto consiste na satisfação dada à desordem que se produz pela insuficiência de todos os elementos significantes em fazer frente ao buraco criado pela existência. É todo o sistema significante que é posto em jogo em torno do luto.

Finado o trabalho de luto, o eu pode voltar a ser objeto de investimento e a libido torna-se mais uma vez livre para reinvestir em novos objetos. Assim, por mais penoso que seja o trabalho de luto, ele cessa após um período de tempo, não devendo ser considerado nem prejudicial, muito menos patológico. Ao final deste processo de elaboração, o eu encontra-se mais livre, menos acometido pelas retrações e inibições afetivas que restringem o seu ganho de mundo. Apto, assim, para investir em outro objeto. Esta é, a nosso ver, a aposta efetiva que pode realizar o enlutado!

 

Referências

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Recebido em: 22/10/2018
Aprovado em: 18/08/2019

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