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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.11 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2019v2p.239 

ARTES

 

Ai Weiwei: artista e ativista

 

Ai Weiwei: artist and activist

 

Ai Weiwei: artiste et activiste

 

 

José Maurício Loures

Psicanalista, doutorando e mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida (RJ) / E-mail: mauricio.mauriciotl@gmail.com

 

 

Comentário crítico da exposição Ai Weiwei - Raiz*

“A relação do artista com o tempo no qual ele se manifesta é sempre contraditória. É sempre contra as normas reinantes, normas políticas por exemplo, ou até mesmo esquemas de pensamento, é sempre contra a corrente que a arte tenta operar novamente seu milagre.

” (Jacques Lacan)

Em outubro de 2018, foi inaugurada a exposição Ai Weiwei - Raiz, a maior mostra de Ai Weiwei já realizada, ocupando os 8.000 metros quadrados da Oca no Ibirapuera, na cidade de São Paulo. Desde agosto de 2019, depois de passar por Curitiba e Belo Horizonte, a exposição chegou às salas do Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro e do Centro Cultural do Patrimônio Paço Imperial.

Uma das obras em destaque na exposição é a instalação Sementes de Girassol1, formada por milhares de sementes de girassol confeccionadas artesanalmente em porcelana. As peças foram produzidas na cidade de Jingdezhen, ao norte da província de Jiangxi, uma região famosa pela produção de porcelana imperial. Embora aparentemente idênticas, as sementes são únicas, justamente por não terem sido feitas em uma fábrica com montagem em grande escala. O artista revela:

Na época em que cresci, [o girassol] era um símbolo habitual na representação do Povo, ele acompanha a trajetória do sol vermelho assim como as massas devem se sentir em relação à sua liderança. Punhados de sementes eram levados nos bolsos, para serem consumidos em todas as ocasiões, tanto casuais como formais. Muito mais do que um lanche, eram o ingrediente mínimo que supria as necessidades e os desejos mais essenciais. Suas cascas vazias eram os traços efêmeros da atividade social. O mínimo denominador comum da satisfação humana. Eu me pergunto o que teria acontecido sem elas. (Weiwei, 2019, p. 37)

 

 

Essa obra reúne temas recorrentes na produção de Weiwei: suas preocupações com os direitos humanos, a autenticidade, o papel do sujeito na sociedade e o desaparecimento da história cultural e material chinesa.

Em novembro de 2010, Weiwei ficou em prisão domiciliar depois de anunciar a organização de uma confraternização para o dia 7 de novembro em Xangai, onde pretendia denunciar a demolição do seu estúdio na cidade - ação ordenada e posteriormente executada pelas autoridades chinesas. Em 3 de abril de 2011, ele foi preso pelas autoridades chinesas quando embarcava para Hong Kong. Após 81 dias de prisão, Weiwei pôde voltar para casa, mas teve seu passaporte confiscado e foi submetido a um contínuo monitoramento com mais de vinte câmeras de vigilância ao redor do perímetro de sua casa-estúdio em Pequim.

Nessa época, o artista criou uma série de algemas elaboradas com materiais de grande importância cultural e estética na China, como o jade, muito valorizado na cultura chinesa, e a madeira, que tem uma longa tradição na criação de objetos e móveis. O emprego desses materiais na confecção da série Algemas subverte a função do instrumento comumente utilizado para detenção e custódia. Para Weiwei, "A arte consiste em nos guiar a formas mais arriscadas de experimentar e de nos expressar. Por isso é tão poderosa." (Weiwei, 2019, p. 85)

 

 

Quando esteve em prisão domiciliar, Weiwei anunciou também que começaria a colocar, diariamente, um buquê de flores na cesta de bicicleta do lado de fora de seu estúdio e fotografá-lo, compartilhando em seu site e redes sociais até que seu passaporte fosse devolvido. A obra Cesta de bicicleta com flores em porcelana refere-se a esse gesto do artista.

 

 

Em dezembro de 2015, depois de recuperar seu direito de viajar livremente, Weiwei foi para a ilha grega de Lesbos, um dos principais acessos à União Europeia, no qual centenas de pessoas de diferentes partes do mundo (principalmente Síria, Afeganistão e Iraque) têm arriscado suas vidas para se refugiarem na Europa. Para o artista:

Ser um refugiado significa que, onde quer que você esteja enraizado, ou é afastado, ou forçado a ir para outro lugar ou em outra direção. Somos todos refugiados. Certos momentos são mais extremos, ao passo que em outros momentos não nos damos muito conta disso. (Weiwei, 2019, p. 87)

Na ilha de Lesbos, Weiwei testemunhou os barcos de refugiados chegando à costa, e essas cenas o levaram a produzir o documentário Fluxo humano, lançado em 2017, que o fez viajar para 23 países, onde visitou 40 campos de refugiados, realizando mais de 600 entrevistas e filmando mais de 1.000 horas. Paralelamente à pesquisa e às filmagens, ele criou a obra intitulada Lei da Viagem (Protótipo B), que consiste em um barco inflável de 60 metros de comprimento com figuras humanas feitas de PVC reforçado.

 

 

Segundo Marcello Dantas, curador da exposição de Weiwei:

A história de Ai Weiwei ressoa de muitas maneiras a história da Argentina, do Chile e do Brasil, onde ditaduras produziram muito do trauma que nossos artistas ainda estão digerindo como fonte maior de suas criações. Superar traumas é um processo vitalício de dar corpo às memórias que nos assombram. Isto ocorre tanto no nível pessoal como no coletivo. (Dantas, 2019, p. 11)

Em um mundo carregado de totalitarismos, intolerâncias e ditaduras outras, mesmo as mais invisíveis, artistas como Weiwei buscam continuar pensando esse mesmo mundo, numa direção, contudo, contrária à corrente, acreditando no potencial de reinventá-lo. Ele aposta na arte e no seu poder de causar inconformismo, questionamento e desejo de mudança, na possibilidade de uma tomada de consciência coletiva contra o estado atual das coisas. Seu fazer artístico, que tem como núcleo gerador o caráter reflexivo, visa tocar a vida com a arte, reafirmando seu potencial de liberdade e de crítica - e esse é um primeiro passo para transformar e doar mais dignidade ao momento atual. O artista nos diz: "Meu medo mais profundo seria perder a consciência, perder minha capacidade crítica ou perder minha compaixão pela humanidade. Se eu não pudesse mais examinar a condição humana, a vida perderia seu brilho" (Weiwei, 2019, p. 81).

 

NOTAS

1. Weiwei nasceu em 1957, mesmo ano em que seu pai foi expurgado como "direitista", junto a cerca de 300 mil outros intelectuais que também foram punidos - em geral, enviados aos campos de trabalhos forçados. Mao Tse-Tung pretendia eliminar todas as pessoas com opiniões diferentes. O jovem Weiwei vivia com seu pai no campo de trabalho. Quando teve início a Revolução Cultural, eles foram levados para uma aldeia bem distante, permanecendo lá no período conhecido como Grande Fome Chinesa. A instalação Sementes de Girassol também remete aos cartazes de propaganda da Revolução Cultural, que retratavam Mao Tse-Tung como o sol e os cidadãos como girassóis, que se viram em sua direção.

 

Referências

Dantas, Marcello (Org.). Raiz Weiwei. São Paulo: Ubu editora, 2019.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 03/02/2019
Aprovado em: 10/10/2019

 

 

* Centro Cultural Banco do Brasil/Centro Cultural do Patrimônio Paço Imperial, Rio de Janeiro, 2019.

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